O conjunto escultórico evoca a passagem bíblica do ‘Regresso do Egito’, a obra que representa a Sagrada Família como caminheiros, integra-se na corrente de produção erudita de imagética do século XVIII, dominada pela encomenda de escultura devocional em madeira de produção oficinal e traduz na sua linguagem formal os valores da corrente artística em vigor na época em Portugal; o Barroco.
A escultura portuguesa no séc. XVIII – antecedentes:
Para se compreender a escultura do século XVIII, é essencial entender as condições que, na centúria anterior, deitaram as bases para uma produção de imagética devocional em grande escala, de cariz italianizante. A produção escultórica do século XVII vai-se condicionar a um novo elemento – o retábulo monumental de madeira entalhada e dourada. Já divulgado em Portugal pelo trabalho dos flamengos, e retomado pela decoração maneirista, o retábulo que invadiu os alçados de igrejas e conventos, com resultados espetaculares, vai, no dealbar do século XVIII, deixar de ser decorado com pintura e dando lugar a uma nova tipologia decorativa; a escultura de vulto em diálogo com o enquadramento arquitetónico.
Nos retábulos que se vão adornando com motivos naturalistas e geométricos e de revestimento dourado de grande efeito decorativo – onde se reconhecem afinidades com a arte dos entalhadores castelhanos do séc. XVII (não esqueçamos a união das coroas ibéricas), abrem-se nichos, edículas e peanhas de maior ou menor desenvolvimento decorativo, que vão ser o suporte destas imagens e conjuntos escultórios, criando espetaculares e sumptuosos efeitos cénicos em todo o tipo de edificações religiosas, das mais humildes igrejas aos mais ricos conventos.
À luz das emanações programáticas da Contrarreforma que faz da arte sacra o seu veículo de propagação, a produção de imaginária está condicionada por pressupostos de natureza mais religiosa do que estética, procurando dar vida e exprimir sentimentos como o êxtase, o martírio, o sofrimento e as angústias da morte. As temáticas mais usuais são os temas da Paixão de Cristo, os Mariológicos e os hagiográficos pelo exemplo que contêm.
A escultura portuguesa no século XVIII:
Pode-se considerar que houve uma escola de escultura portuguesa, ativa desde o último terço do século XVII, esta produção proto-barroca, caracterizada pela prática oficinal, desenvolveu-se junto aos estaleiros de igrejas e conventos – veja-se a obra dos monges barristas de Alcobaça, o núcleo do Mosteiro de Arouca, e os do Porto, Coimbra e Lamego. No século XVIII, as imagens enriquecem-se de policromia e decoração a ouro, sofrendo influência da produção castelhana e andaluza sem, porém, evoluírem para o híper- realismo que irá caracterizar a produção vizinha. Paralelamente, a estética italiana de matriz clássica, já conhecida dos artistas portugueses desde o século XVII pela importação de obras de Bernini, pela ida de pensionistas para a academia fundada por D. João V em Roma, bem como pela importação de estátuas para o Convento de Mafra, confirmou a vertente italianizante da estética setecentista portuguesa.
Na escultura devocional do séc. XVIII continua a dominar a madeira, salvo na dos mestres estrangeiros que utilizam o mármore. As madeiras preferencialmente empregues na escultura sacra e talha dourada (bem como para o mobiliário), foram o carvalho (mais no século XVII), o castanho e o louro, espécies autóctones portuguesas, preferidas pelas boas características como suporte de policromia. Após a imagem ser esculpida, é aplicado o receituário decorativo da época: revestimento com uma camada preparatória composta de várias demãos de uma mistura de gesso (por vezes cré) e cola, sobre a qual se aplica a policromia bem como o trabalho de estofado, puncionado e eventual pintura a pincel. A escultura barroca recorreu muito à técnica de estofado para os panejamentos, pelo carácter realista e pelo toque decorativo valioso que imprime às esculturas, simulando o uso de ouro maciço – o termo vem da palavra italiana stoffa, que significa ‘tecido rico’. O material utilizado é a folha de ouro, com a qual se recobriam as superfícies que pretendiam imitar tecidos aplicando-se de seguida os pigmentos que, depois de secos, eram raspados, criando luxuosos efeitos ao deixar sobressair o ouro subjacente.
O sentido decorativo das obras aumenta, assistindo-se à união da religião com a estética – contemplação não só do Bem, mas também do Belo – visando uma certa teatralidade afetiva e emocional. É um período que se caracteriza por mais realismo do que imaginação.
Leitura formal:
A leitura formal, técnica e estética é muito prejudicada pela falta da maior parte da policromia e estofado originais. O trabalho escultórico/plástico é de talhe fino e cuidado e o movimento dos panejamentos bem conseguido. O estabelecimento de autoria é impossível perante as dificuldades apontadas e pela falta de investigação mais desenvolvida e de um corpus nacional que pudesse estabelecer a existência de mestres e oficinas. O conjunto terá sido possivelmente realizado para o nicho de um altar ou retábulo pois o apuro escultórico do reverso das esculturas não é o mesmo verificado na parte da frente já que não fica exposto ao olhar. A apresentação da obra in situ, estaria certamente acompanhada de um drapeado ou de um nicho marmoreado, para produzir o efeito cénico preconizado pela imaginária barroca.
Formalmente, o conjunto escultórico é composto por três figuras de vulto, talhadas em grande escala em medidas maiores do que as habituais. O suporte é madeira de carvalho e as peças receberam policromia e estofado bem como as técnicas de esgrafitado e puncionado, que revelam a sua qualidade técnica, mas das quais só restam vestígios. As três imagens assentam individualmente em peanhas facetadas.
Comum ao grupo é o movimento impresso pelos panejamentos que ocultando as anatomias – segundo a fórmula corrente -, induzem mediante o relevo, a presença tridimensional da forma. O movimento das vestes é dado pelas dobras curvilíneas, as mangas e o pregueado largo, que, criando linhas sinuosas e curvas e claros e escuros, caem fluidamente parecendo agitados pelo movimento.
A carnação – fingimento da pele (normalmente uma mistura de branco de chumbo e vermelhão ou mínio) é a técnica que mais se mantém, talvez por ser aplicada diretamente sobre a camada preparatória. Assim se verifica nos rostos, pescoços, mãos e braços, sendo as áreas proeminentes como os narizes, as mais prejudicadas, quanto à restante policromia e estofado, os vestígios existentes concentram-se em sítios menos expostos como o interior das pregas e dobras.
Análise iconográfica:
No âmbito da Contrarreforma, a partir de 1600, tornam-se numerosas as representações da infância de Jesus – Natividade, Adoração dos Magos, Sagrada Família, Fuga para o Egipto, Menino Jesus Salvador do Mundo… – temáticas agora revestidas de novas formas, inspiradas nos Evangelhos, nos Apócrifos bem como em obras como em obras sacras como “Meditationes Vita Christi” de Pseudo-São Boaventura.
O grupo de três personagens é identificado como a Sagrada Família; Maria é reconhecida pela beleza, serenidade e recolhimento do rosto, pelo olhar maternal que dirige ao Seu Filho, pelo gesto da mão esquerda de proteção para com o Menino (como quem vai dar a mão) e pelas roupagens, longas, fluidas e de cabeça velada que indicam a sua condição feminina e de castidade. José é identificado pela sacola que carrega ao ombro, de onde espreita um martelo; o símbolo da sua profissão e o Cristo Menino, pela gestualidade pois, com a mão direita, faz característico gesto de bênção com dois dedos da mão levantados. A identificação da passagem bíblica como o Regresso do Egito – depois da morte de Herodes um anjo diz a José para regressar a Israel – Mateus 2, 19-23 -, deve-se aos atributos que os três personagens ostentam envergando o traje de caminheiros que inclui uma capa, o chapéu de abas reviradas, o bordão e as cabaças de transporte de água, seguras nos bordões da Virgem e do Menino e ao facto de o Menino, com cerca de sete anos, já pela mão, caminhar no meio dos pais.
Os santeiros trabalhavam inspirando-se em estampas que circulavam na Europa, divulgadas pela Flandres e Alemanha, que eram a fonte do repertório temático e iconográfico segundo as orientações tridentinas. No caso deste grupo escultórico, a inspiração seria numa estampa similar à que aqui se apresenta da autoria do holandês Schelte a Bolswert (1586-1659), um gravador das obras de Rubens e Van Dyck.
Le Retour de l’Egypte, Schelte a Bolswert (1586-1659)
Proveniência:
Desconhece-se a proveniência da obra que foi incorporada no acervo da Casa-Museu em data desconhecida e sem qualquer documento de suporte, levando a acreditar que se tenha tratado de uma compra/aquisição a um antiquário ou um particular realizada em Portugal. Sabe-se, no entanto, que em 1966 o conjunto já pertencia ao acervo da Casa-Museu pois foi emprestado a um galerista para figurar no 3º Salão de Antiguidades de Lisboa realizado na FIL.
3º Salão de Antiguidades de Lisboa
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
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MOURA, Carlos; História da Arte em Portugal, O Limiar do Barroco, Volume 8, Lisboa: Publicações Alfa, Sarl, 1986
PEREIRA, Paulo (dir.), História da Arte Portuguesa, Do Barroco à Contemporaneidade, Terceiro Volume, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995
RODRIGUES, Dalila (coord.), Arte Portuguesa Da Pré-História ao Século XX, CARVALHO, Maria João Vilhena de, CORREIA, Maria João Pinto, A Escultura nos Séculos XV a XVII, Vol. 7, Lisboa: Fubu Editores SA, 2009
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SERRÃO, Vítor; História da Arte em Portugal, O Barroco, Lisboa: Editorial Presença, LDA., 2003
Autor Desconhecido
2º quartel séc. XVIII
Portugal
Madeira policromada, estofada e puncionada
Alt. 123cm. (Nossa Senhora) / Alt. 95cm. (Menino Jesus) /Alt. 124cm. (São José)