Mesa-secretária de três níveis em madeira de carvalho revestida a ébano e marqueteria ‘premiére-partie’ (fundo escuro e decoração em latão) estilo Boulle de ébano e latão dourado, enriquecida com abundante aposição de bronzes dourados entre os quais sobressaem: figuras representando as estações flanqueando os conjuntos de gavetas do segundo nível e nos cantos da caixa do relógio; cabeças e mascarões de grotescas na entrada da fechadura, parte posterior do aro e no joelho das pernas; personificação da Fama no topo; placas ovais representando soldados honrando o novo Imperador; e representações de troféus militares. A destacar também a existência de quatro medalhões com esmaltes representando dois deles as armas dos Seymour e dois as armas dos Conway a ladear o escaninho central.
Integrado na secretária, e rematando o conjunto, um relógio de mesa de Peter Saphin, encimado pela personificação da Fama, figura feminina alada, sentada numa nuvem, tendo uma trompeta na mão direita e uma palma (desaparecida) na esquerda. Inscrição: P. Saphin / 59, Princes St., Leicester Sqre, London.
O segundo corpo esta composto por duas ordens de três pequenas gavetas, havendo mais uma fina, de cada lado por baixo destas disfarçada na decoração, ladeadas por cariátides representando as estações do ano: à direita o Outono e a Primavera e à esquerda o Inverno e o Verão. Ao centro um escaninho faz uma reentrância de decoração de moldes arquitetónicos, onde se escondem quatro gavetas de segredos (duas de cada lado), ocultas por portas laterais abertas através de mecanismo comandado por botão disfarçado nas cartelas com as armas dos Seymour-Conway.
Tampo em ébano liso, com filete de latão a toda a volta, retangular tendo os cantos da frente cortados, onde se abre uma só gaveta com puxador de mascarão em bronze dourado, repetido na parte de trás; seis pernas ligeiramente galbadas com pés em enrolamento, decoradas as duas da frente e as duas de trás com espagnoletes e as duas laterais com mascarões, assentes sobre plataforma de recorte idêntico ao do tampo, decorada com trabalho geométrico de florões inseridos em losangos que criam uma falsa perspetiva, e que por sua vez está assente em seis pés em bola achatada, de madeira, pintados de dourado (um solto). A marqueteria de latão dourado e tartaruga estilo Boulle que reveste a grande parte das superfícies desta secretária, segue modelos ‘beranescos’ (ao estilo do desenhador e gravador francês Jean Bérain); entre os diferentes temas destacam: - Representação de Minerva, com lança e escudo, na parte posterior do interior da caixa do relógio. - Servos mouros levando frutas a mulheres que asseguram compridos espelhos de mão no tampo do corpo de gavetas. - Personificação da abundância no centro de representações arquitetónicas entre os dois corpos de gavetas. - Macacos e pássaros nas frentes das gavetas. - Cabeças de Diana marcadas por ramos de oliveira, com dois cães na parte inferior e mascarão ladeado por cabeças de águia na superior, nos laterais do segundo corpo.
Origem:
A secretária da Casa-Museu fez originalmente parte de um par executado no século XIX, que, por sua vez, é cópia de um original francês, realizado cerca de 1715 para Maximiliano II Eleitor da Baviera (1662-1726). O móvel, anteriormente atribuído a André-Charles Boulle (1642-1732), é atualmente atribuído a Bernard I Van Riesen Burgh (1670-1732).
O par da secretária da Casa-Museu pertence à coleção da Wallace Collection em Londres (http://www.wallacecollection.org/) e o exemplar original encontra-se desde 1951 exposto no Museu do Louvre em Paris (http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=16557).
Encomenda:
Richard Seymour-Conway, 4º Marquês de Hertford (1800-1870) encomendou desenhos da secretária original – na altura na coleção do Duque de Buccleuch – quando esta foi exposta em Londres em 1853, e pediu ao marceneiro e comerciante inglês John Webb (22 Cork Street, Burlington Gardens, Londres), (ativo 1825 – 1860) – através do negociante de arte Edward Ruttler – a realização de um par (e de outros seis móveis), no qual só mandou mudar os escudos com as armas do Eleitor da Baviera pelas suas próprias armas.
Nota:
A secretária da Casa-Museu tem as costas inteiramente decoradas o que não sucede com o exemplar da coleção da Wallace. Não se sabe se a peça da Wallace está inacabada ou se se trata de uma especificação da encomenda desta secretária por se destinar a ser colocada num local com visibilidade a toda a volta (como é o caso da colocação na Casa-Museu que permite ver a parte de trás).
Historial:
Quando o 4º Marquês de Hertford morre, as secretárias e o resto dos seus bens são herdados pelo seu assistente e filho ilegítimo Richard Wallace (1818-1890) que continuará a coleção da família com novas aquisições.
A única herdeira de Sir Wallace virá a ser a sua mulher Lady Wallace quem – à morte em 1897 – deixará à nação Britânica todos os objetos presentes em Hertford House – residência familiar em Londres onde hoje em dia se encontra a Wallace Collection, uma coleção de artes decorativas que reúne as peças mais importantes da família dos Marqueses de Hertford. O resto dos seus bens, entre os quais as rendas de Hertford House e o apartamento da rua Laffitte em Paris – onde se encontrava esta secretária -, são deixados a John Murray Scott, seu conselheiro desde a morte do marido. Este, por sua vez, deixará em herança o apartamento da rua Laffitte e o seu espólio, assim como 150.000 libras, à sua amiga Victoria, Lady Sackville, esposa do 3º Barão de Sackville, causando um grande escândalo na época.
Lady Sackville irá vender o apartamento e a coleção a Jacques Seligmann, um comerciante de arte parisiense que, em 1916, irá pôr à venda muitos dos objetos artísticos pertencentes a este apartamento nos Estados Unidos, onde o seu filho abre uma sucursal do negócio.
Biografias:
Richard Seymour-Conway, 4º Marquês de Hertford (1800-1870): filho do 3º Marquês de Hertford, cresceu em Paris ao cuidado de sua mãe, Maria Fagnani, filha ilegítima da Marquesa Fagnani. Após um breve período como membro do Parlamento e oficial de cavaleiro, retira-se da vida pública entregando-se por completo à coleção de obras de arte, paixão herdada da família do seu pai e à qual se dedicará com total devoção, constituindo o núcleo principal da atual Wallace Collection de Londres.
Sir Richard Wallace (1818-1890): filho ilegítimo do 4º Marquês de Hertford, para quem trabalhou como secretário, não teve direito ao título de Marquês que passará para um familiar afastado, adotando ele o nome de solteira da sua mãe. Após a morte do seu pai herda a sua coleção de arte, um apartamento na rua Laffitte em Paris, o Château de Bagatelle perto de Paris e as propriedades na Irlanda. Pouco depois comprará também ao 5º Marquês de Hertford a casa familiar em Londres, Hertford House, para onde se mudará até a morte do seu único filho, Edmond Richard, momento no qual se muda para Paris, tendo sido enterrado no panteão familiar do cemitério de Père-Lachaise. Dedicará os últimos 20 anos da sua vida a ampliar a coleção familiar com novas adquisições, mas também a diversas causas benéficas, nomeadamente durante o cerco de Paris pelas tropas prussianas e na Irlanda.
Lady Wallace (1819-1897): Julie-Amélie-Charlotte Castelnau foi amante de Sir Richard Wallace – a quem conheceu sendo ela empregada de uma perfumaria em Paris e de quem teve um filho em solteira – durante mais de três décadas, antes de finalmente casar em 1871, após a morte do 4º Marquês de Hertford. Sendo a única herdeira do seu marido, deixa no seu testamento a coleção de Hertford House à nação Britânica, um apartamento no Boulevard des Italiens em Paris aos seus netos e tudo o resto a John Murray Scott, antigo secretário de Sir Richard Wallace e conselheiro de Lady Wallace desde a sua viuvez.
Sir John Edward Arthur Murray Scott (1847-1912): vende Hertford House ao governo britânico para acolher a Wallace Collection, que abrirá em 1900, sendo ele um dos administradores. À sua morte deixará o apartamento da rua Laffitte e as obras nele existentes à sua amiga Victoria, Lady Sackville.
Lady Sackville (1862- ): era filha ilegítima de Lionel Sackville-West e de uma dançarina espanhola. Foi criada pela sua mãe, junto dos seus três irmãos, em França. Só irá a Inglaterra em 1800, onde anos mais tarde casará com o seu primo Lionel Edward Sackville-West, de quem terá uma filha, Vita.
Quando o seu íntimo amigo “Seery”, John Murray Scott, lhe deixa em herança um apartamento e £150.000, o escândalo será tal que terá de ser solucionado nos tribunais, convertendo-se num espetáculo para a sociedade da época. Ela ficará com o dinheiro e venderá o apartamento e o seu recheio a Jacques Seligmann & Co., uma galeria internacional de arte.
Proveniência:
Será nos Estados Unidos que Medeiros e Almeida compra a secretária, ao antiquário Pennington Museum Treasures, por USD 70.000, em 23 de setembro de 1976, mas esta não chegará a Portugal senão um ano mais tarde, já que antes será exposta na Universidade Estatal de Califórnia numa exposição chamada “Collection without walls: problems in Connoisseurship”.
Samantha Coleman Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
QUINTIN, Jeannine; Oeuvres d’Art Françaises Dans Les Musées Portugais, Alliance Française de Lisbonne, 2ª ed., 1986
Wallace Collection Catalogues, Furniture, Text with historical notes and illustrations, William Clowes & Sons Ltd., London
VILAÇA, Teresa; O Tempo Sob Medida, Centro Cultural do Banco do Brasil: Rio de Janeiro, Fundação Medeiros e Almeida, 2008Connoisseur, julho 1976
Burlington Magazine, dezembro 1976
A Collection without walls: problems in Connoisseurship, Universidade do Estado da Califórnia, 1976