Tapeçaria executada em Bruxelas (?) entre 1520 e 1530, em lã, seda, fio metálico dourado e prateado enrolado em fio de linho (?), representando o episódio bíblico de Maria Encontra Cristo no Caminho para o Calvário, inspirada na pintura Spasimo di Sicília de Rafael Sanzio.
A Pintura
Em 1515 – 1516, Rafael Sanzio (1483-1520) realiza para a decoração da igreja de Santa Maria dello Spasimo em Palermo, cuja construção se tinha iniciado em 1508, uma pintura representando Cristo carregando a cruz a caminho do Calvário. Na decoração da igreja participaram também, os seus alunos Giulio Romano (1499 – 1546) e Giovanni Francesco Penni (1496? – 1528).
Com uma história atribulada, a pintura foi transferida em 1573 para a igreja do Espírito Santo, local onde permaneceu até 1661 quando, Filipe IV de Espanha, Nápoles, Sardenha e Sicília resolve mandá-la para Espanha, sendo colocada na capela do Real Alcazar em 1663, tendo sido mudada para o palácio do Buen Retiro em 1734, após um incêndio do qual milagrosamente escapou, mas para onde volta em 1772. Em 1813, os exércitos de Napoleão levam-na para Paris, (tendo sido levantada a camada pictórica e recolocada sobre tela) onde fica até 1822, retornando a Madrid nesse ano, fazendo parte actualmente do acervo do Museu do Prado. Pode conhecê-la aqui: https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-works?searchObras=spasimo
Iconografia
Na génese da composição desta pintura está o episódio bíblico que retrata o momento de dor da Virgem, perante a queda de Cristo a caminho do Calvário.
O tema principal, se assumirmos a interpretação do teólogo e frade dominicano Tommaso de Vio Cajetan (1469 -1534) é o sofrimento angustiado da Virgem, perante o sacrifício de Cristo. Este encontro tê-La-ia feito desmaiar segundo a crença e devoção populares, no entanto, Rafael não parece transmitir esta situação extrema, representado Maria de joelhos desesperada (mas não desmaiada – spasimo), amparada por Maria Madalena, por Maria de Cléofas e por São João, tentando também Ela, ajudar Cristo. Pretende-se passar uma mensagem de esperança (na Ressurreição) e não de desespero por parte de Maria, (apesar de as figuras dos soldados empurrarem Cristo para a o Calvário) que através da Sua graça teria conseguido ultrapassar este episódio, com uma dignidade que se torna o centro da narrativa.
Esta proximidade entre a pintura e os ditames da obra De Spasmo Beatae Virginis Mariae de Tommaso de Vio Cajetan, de 1506 (identificada em 1982) revelam o conhecimento teológico de Rafael e a sua capacidade de os transmitir através da pintura. A sua representação deste acontecimento teve por base várias gravuras de outros artistas como: Albrecht Durer, Martin Schongauer https://www.nga.gov/global-site-search-page.html?searchterm=1968.17.1 e em particular Lucas van Leyden, que Raffaello “reconstituiu” e reinterpretou. A figura de Cristo assemelha-se muito à representação executada por este último em 1515, http://www.ngv.vic.gov.au/explore/collection/work/38252/ em particular no facto de, Cristo se apoiar numa pedra quando se vira para Sua Mãe.
Tal como a pintura, a tapeçaria representa este momento do Calvário de Cristo: a queda perante Sua Mãe. Junto à Virgem encontramos a representação de Maria Madalena assim como de Maria de Cléofas e São João. Cristo é ajudado por Simão Cireneu que lhe segura a Cruz tentando desta maneira aliviá-Lo do sacrifício. A cena desenrola-se às portas de Jerusalém onde várias outras personagens preenchem o espaço, prolongando-se o olhar até ao fundo onde se vê o Calvário. O cortejo é conduzido por um soldado romano a cavalo que empunha um estandarte onde se lê: SPQR correspondente a senatus populusque romanus – o senado e povo de Roma.
Tapeçaria da Casa-Museu
A tapeçaria que faz parte do acervo da Casa – Museu, terá sido produzida em Bruxelas entre 1520 e 1530, sendo a segunda transposição que se conhece, deste desenho para tapeçaria. A primeira foi encomendada pelo Cardeal Bernardo Dovizi (1470-1520) conhecido também como Cardeal Bibiena, cujos cartões estão atribuídos, por aproximação formal e estética ao trabalho para si realizado para a loggia do Vaticano (1516 – 1519) por Perin del Vaga ou Pietro Bonaccorsi (1501 – 1547) amigo e discípulo de Rafael (de quem o cardeal era amigo). A reduzida dimensão desta peça faz pressupor que esta, se destinou a figurar num altar aliás, como aparece referido aquando das cerimónias fúnebres do cardeal, estando colocada no altar da sua capela privada.
A tapeçaria da Casa – Museu aparece pela primeira vez referenciada em 1688, no inventário de Francesco Maria Balbi (1671 – 1747) descendente de uma família genovesa de ricos comerciantes de têxteis em particular de seda, veludo e lã, que também se dedicou à banca e à exploração de mercúrio, tendo estabelecido empresas e negócios em várias cidades europeias, entre as quais Antuérpia.
Desconhecendo-se quem terá encomendado a tapeçaria, esta poderá ter sido pertença do seu bisavô Nicolò Balbi (1506 – 1549) que criou e consolidou a fortuna, o que permitiu aos seus descendentes um desafogo financeiro que mais tarde resultou na construção de vários palácios (Gio Agostino, Giacomo e Pantaleo Balbi, Colégio dos Jesuítas e o palácio real) em Génova, na via Balbi e na atribuição de títulos nobiliárquicos ao longo do século XVII, tendo-se tornado numa poderosa e influente família da cidade.
Tal como a tapeçaria pertencente ao cardeal Bibiena, esta segunda versão poderá ter sido igualmente realizada a partir de um cartão atribuído a Perin del Vaga, mas neste caso, com base na tapeçaria de Bibiena e não na pintura como terá sido o caso da primeira versão.
A atribuição da autoria deste cartão é meramente circunstancial, prendendo-se com o facto de Perin del Valga ter habitado Génova entre 1528 e 1538, (na sequência do saque de Roma pelas tropas do imperador Carlos V e onde decorou o palácio de Andrea Doria) podendo eventualmente a tapeçaria ter chegado a esta cidade neste período.
Apesar de no inventário de Francesco Maria Balbi se encontrar referida esta atribuição, continua a não haver, no entanto até momento, confirmação documental para a mesma.
Nas duas versões a transposição para tapeçaria sofreu algumas modificações, face à pintura: o traje do soldado que puxa Cristo por uma corda surge aqui com uma túnica vestida e não casaco e calças como na pintura, o soldado que empunha uma lança apresenta -se com um capacete, enquanto que Simão Cireneu não veste calças.
A cercadura é decorada por enrolamentos vegetalistas sobre fundo dourado, nos quais se entrelaçam pássaros de diversas espécies. A sua autoria tem sido atribuída ao longo do tempo pela historiografia, a Giovanni da Udine (1487 – 1564) aluno de Rafael e que também participou na decoração dos aposentos de Bibiena no Vaticano, nomeadamente na loggia e loggetta, onde usou enrolamentos vegetalistas (com animais) semelhantes aos da cercadura da tapeçaria. É exactamente na cercadura que as duas tapeçarias diferem, apresentando-se a da Casa – Museu em posição invertida face à de Bibiena. Para além desta diferença, de referir ainda que os símbolos alusivos à família Bibiena e as armas cardinalícias desapareceram.
Tapeçaria
A tapeçaria é um objecto têxtil que resulta de uma técnica de tecelagem. Tem uma função não só decorativa e de aparato “contando histórias coloridas”, mas essencialmente prática, protegendo do frio os espaços onde era colocada, criando um ambiente acolhedor.
Produzida em conjuntos temáticos que podiam ir dos quatro aos vinte elementos, fazendo sentido a sua leitura e uso decorativo em conjunto (armação) mais do que individualmente, apresentando em geral cada elemento grandes dimensões. Assumia ainda um papel de aparato e status social pois, o seu elevadíssimo custo apenas permitia o acesso de alguns. Tinha ainda a característica de poder (e) ser transportada, mudando frequentemente de lugar, acompanhando o seu proprietário quando por exemplo este mudava de residência ou ainda ser deslocada em função de cerimónias religiosas, como casamentos, baptizados e funerais ou eventos de carácter oficial numa demonstração de poder e riqueza. Foram também, durante séculos o presente diplomático por excelência. Designadas informalmente por “frescos móveis do Norte”, podiam ser transacionadas ou empenhadas como um bem valioso, em particular as que continham fio de ouro.
A partir do Renascimento, a Bíblia e os seus heróis assim como, a mitologia clássica (com a representação de virtudes heroicas) eram a temática decorativa mais popular mas não a única, havendo também representações de factos e figuras históricas e a partir de um pouco antes de meados do século XVI, a representação de jardins e paisagens campestres nas quais se integram harmoniosamente elementos arquitetónicos “abertos” (como pérgulas) e figuras humanas, designadas por “verdures”.
A partir de finais do século XV, surgem as cercaduras com motivos diferentes do campo da tapeçaria propriamente dita rematando-a, (até aí a não havia separação ou diferença decorativa no términus). No início do XVI há uma preferência por motivos decorativos vegetalistas, florais e de frutos, onde pululam pássaros e outros pequenos animais.
Técnica
A tapeçaria é uma técnica de tecelagem que resulta num tecido feito a partir do cruzamento de fios colocados num tear (teia) por fios de trama. Deverá ser tecida manualmente num tear, em fio de lã, tanto na teia como na trama, dada a sua flexibilidade, resistência e facilidade de tingimento. Na trama também poderá ser incorporado fio de seda (em exemplares de dimensões mais reduzidas) o que dá profundidade aos motivos decorativos. Na sua execução poderá ainda ser incluído fio metálico, por vezes de ouro ou prata.
Poderá ser executada em dois tipos de tear diferenciados: o alto e o baixo liço. No alto liço o tear deverá estar com a teia posicionada na vertical enquanto que no baixo liço (movido a pedais) esta deverá ser colocada na horizontal.
O motivo decorativo era desenhado a carvão em papel (várias folhas coladas) ou em tecido à escala natural sendo este “cartão” colorido e depois cortado em tiras de duas folhas cada (cada folha representa uma secção vertical do desenho) e só então, colocadas por baixo da trama ou por trás do tapeceiro, conforme o tear fosse de baixo ou alto liço, sendo substituídas à medida que o trabalho ia evoluindo (sempre do avesso). Os cartões eram em geral propriedade da oficina de tapeçaria, sendo reutilizados para reproduzir novas séries ao longo de grandes períodos de tempo, não havendo, no entanto, grandes variações na sua execução, excepto nas cercaduras que podiam ser actualizadas segundo o gosto da época em que eram produzidas (ou até mesmo reutilizadas a partir de outros conjuntos), podiam no entanto, circular entre cidades e / ou oficinas dificultando assim a identificação da origem das peças. A transposição para os cartões permanece na maior parte dos casos, trabalho de especializados autores anónimos.
A largura do tear corresponde à altura da tapeçaria depois de terminada, devendo esta ser “rodada” num ângulo de 90º para ficar na posição correcta aquando da sua colocação.
Em geral eram produzidas em conjuntos designados tecnicamente por armações, contando cada tapeçaria um episódio de um determinado tema, sendo pouco usual a execução de apenas uma peça isolada, como no caso da tapeçaria da Casa-Museu.
Dependendo da largura do tear (altura da tapeçaria) podiam trabalhar diversos tapeceiros em simultâneo no mesmo tear. Num conjunto, várias tapeçarias podiam ser feitas ao mesmo tempo, (em geral duas ou quatro dependendo do tamanho da armação) mas não todas em simultâneo, por forma a não “bloquear” uma oficina apenas com um cliente.
BB – Bruxelas / Brabante
Bruxelas enquanto centro produtor de tapeçaria da nova estética trazida pelo Renascimento, emerge aquando da encomenda (1515) de Leão X, dos Actos dos Apóstolos com cartões de Rafael, cerca de 1515 -1519. Tradicionalmente, considera-se que esta encomenda inaugura um novo ciclo na produção flamenga, ao transpor para tapeçaria o tipo de pintura que à época se realizava em Itália e na qual a arquitectura clássica está presente, enquadrando figuras “em movimento”, sobre fundos perspectivados, tão ao gosto do Renascimento.
A tapeçaria tecida para o Cardeal Bibiena (e consequentemente a da Casa-Museu) exactamente no mesmo período, igualmente a partir de um trabalho de Rafael Sanzio, integra este ciclo inicial de produção, não sendo por isso, de desconsiderar a sua importância neste contexto. As tapeçarias terão pois sido produzidas na região de Bruxelas, em atelier por identificar, não possuindo marcas.
Para evitar a fraude na execução das tapeçarias, em Bruxelas na sequência de uma ordem de um magistrado, a partir de 16 de Maio de 1528 torna-se obrigatório a aposição de uma marca da cidade, tecida de um dos lados da tarja, assim como da oficina ou do encomendante no outro lado, nas peças aí produzidas, com tamanho superior a seis varas (1 vara flamenga = 69 centímetros). As marcas deveriam ser registadas em livro próprio, junto da guilda dos tapeceiros da cidade. A marca de Bruxelas devia apresentar um escudo vermelho entre dois B’s maiúsculos, referindo-se à província e à cidade (Brabante e Bruxelas).
A legislação foi ratificada por um édito imperial em 1544 (e promulgada em 1546) também para todos os centros de produção dos Países Baixos, que também deveriam apor a marca do tapeceiro. Antes das peças saírem da oficina, deveriam ser inspecionadas por representantes da guilda. Estas medidas tornaram-se assim determinantes para a identificação da origem das tapeçarias.
A falsificação das marcas previa penas corporais e a expulsão da guilda.
Proveniência
Manteve-se na posse da família Balbi até 1892.
Entre 1892 e o leilão da Christie’s não se conhece o paradeiro da tapeçaria que poderá ter chegado a Inglaterra, adquirida por algum aristocrata que tenha viajado a Itália no âmbito das viagens do Grand Tour.
Adquirida em leilão da Christie’s, Londres, de 13 de Maio de 1965, lote 117, por £ 10.000 através do antiquário londrino Ronald A. Lee.
Em 2002 a tapeçaria foi emprestada para uma exposição temporária no Metropolitan Museum de Nova Iorque : “Tapestry in Renaissance Art and Magnificence”. A tapeçaria do Museu do Vaticano não foi emprestada para a referida exposição por estar ao uso de Sua Santidade o Papa, num oratório nos seus apartamentos privados.
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
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