“Meninos de Palhavã” ou “Real Colégio dos Nobres”, Destaque Agosto de 2016

“Meninos de Palhavã” ou “Real Colégio dos Nobres”, Destaque Agosto de 2016

Par de terrinas e travessas de porcelana da China de encomenda, realizadas a partir de um modelo europeu, pertencentes a um serviço de mesa – hoje em dia disseminado – tradicionalmente conhecido como “Meninos de Palhavã”.

 

Porcelana China de encomenda em Portugal

A chegada das primeiras porcelanas a Lisboa, diretamente da China, deve-se ao próprio Vasco da Gama. Embora no século XV já se conhecesse na Europa a porcelana da China – que chegava através da Rota da Seda -, esta porcelana era ao gosto oriental. É a partir do estabelecimento das rotas marítimas entre Portugal e a China que começam a chegar à Europa peças realizadas especificamente para o gosto ocidental. Os Portugueses foram os primeiros a comercializar porcelanas de encomenda ao gosto europeu, as primeiras das quais, destinadas à casa real (uma das mais antigas, o Gomil D. Manuel, está em exposição permanente na Sala das Porcelanas da Casa-Museu Medeiros e Almeida).

 

Desde logo aparecem também peças de temática cristã e com simbologia referente às ordens religiosas, nomeadamente aquelas com maior presença na China, como a sigla JHS relativa à Companhia de Jesus (siglas que podem ser observadas em várias peças da coleção) e a seguir as peças armoriadas encomendadas pelos nobres, inicialmente pelos vice-reis da Índia, governadores e navegadores e posteriormente por toda a nobreza. Na época do rei D. João V, com a riqueza vinda do descobrimento do ouro do Brasil, as encomendas florescem, e durante todo o século XVIII é comum a encomenda de serviços de mesa inteiros, – compostos por duzentas ou trezentas peças – por parte da nobreza e do clero. Estes serviços de mesa incluíam normalmente terrinas, travessas, pratos rasos, pratos fundos, outros pratos de diversos formatos para variados usos e peças de servir como molheiras e saleiros. Mais tarde surgem bules, leiteiras, açucareiros, taças, xícaras e pires, para além de peças específicas a cada encomenda.

 

Portugal, a seguir a Inglaterra, é o país que recebe maior quantidade e qualidade deste tipo de porcelanas, infelizmente muitas perdidas com o terramoto de 1755.

 

As peças da Casa-Museu

Estas quatro peças, duas terrinas e duas travessas, foram certamente executadas a partir de modelos europeus, o que era prática frequente na altura, sendo realizadas com base em desenhos e gravuras ou a partir de exemplares em prata ou terracota que eram enviados da Europa. Formariam parte de um conjunto muito maior, um serviço de mesa que poderia rondar até as três centenas de peças, algumas das quais podem ser hoje vistas em museus como o Victoria & Albert Museum de Londres (http://collections.vam.ac.uk/item/O75712/dish-unknown/), ou o Metropolitan de Nova Iorque (http://www.metmuseum.org/art/collection/search/201248), sendo que outras continuam a aparecer em ocasiões à venda em antiquários e leiloeiras.
A porcelana deste serviço, espessa e pesada, com vidrado azulado e ornamentação em azul com apontamentos de dourado, beije e vermelho, não é da melhor qualidade se a comparamos com outros exemplares que chegaram a Portugal na mesma época (o que não é surpreendente dada a enorme quantidade de encomendas de porcelanas nessa altura). Porém, a temática da sua decoração fazem deste um serviço muito peculiar e que tem levantado um grande interesse – e muitas incógnitas – por parte de estudiosos e colecionadores. As terrinas – em tudo idênticas – são ovaladas, de bordo ligeiramente recortado, base também recortada e inclinada para fora e assas em forma de pequenas cabeças de porco com orelhas em relevo e olhos delineados por traço inciso. As tampas são de encaixe, em forma de cúpula, e pega em forma de elemento vegetal estilizado. Sobre as duas faces principais, dois jovens soldados fardados ladeiam um almofariz de grande tamanho. Sobre o vaso, em letras entrelaçadas, um monograma que pode corresponder com as iniciais PFV ou JFV.

Na borda, entre duas finas linhas que percorrem todo o perímetro, em letra manuscrita pode-se ler: “1776 SETE BARRO HE OUTRO OUNICORNIO”. A tampa apresenta em toda a volta, junto da borda, uma cercadura tipo cortinado, e na parte superior duas coroas reais fechadas e duas pequenas flores em cada lado da pega. As travessas são ambas ovaladas e de bordos recortados, sendo uma delas visivelmente mais pequena e profunda que a outra. Em relação à decoração, esta é semelhante à das terrinas, assim como com o resto das peças conhecidas pertencentes a este serviço. A ornamentação das quatro peças é realizada fundamentalmente a azul, salvo o cabelo castanho, as faces e mãos pintadas a beije e os lábios vermelhos dos soldados, cujas formas foram destacadas à pena. Presente também na base das terrinas, um filete contínuo a dourado, emoldurado a azul, seguindo os recortes das mesmas.

 

“Meninos de Palhavã” ou “Real Colégio dos Nobres”?

A peculiar decoração deste serviço de mesa, assim como a falta de qualquer documentação relativa ao mesmo, tem levantado ao longo do tempo diversas conjeturas em relação a quem seria o destinatário de tão particular encomenda. A teoria comummente aceite liga o serviço aos “meninos de Palhavã”, derivando daí o nome por que é tradicionalmente conhecido. Porém, desmontando as hipóteses anteriores, Nuno de Castro, no seu estudo de 1987, atribui o serviço a possível encomenda do Real Colégio dos Nobres, teoria que é hoje em dia maioritariamente aceite.

 

Os “meninos de Palhavã”

Os “meninos de Palhavã” eram os filhos bastardos varões do rei João V de Portugal (1689-1750), reconhecidos como tais em documento de 1743 (embora só publicado em 1752, já morto o soberano). Eram assim chamados por terem residido no palácio do marquês de Louriçal (hoje em dia Embaixada de Espanha em Lisboa), na zona de Palhavã, que na época pertencia ao Marquês de Pombal. Eram eles: D. António (1714-1780), filho de Luísa Inês Antónia Machado Monteiro; D. Gaspar (1716-1789), filho da religiosa Madalena Máxima de Miranda; e D. José (1720-1801), filho da religiosa Madre Paula de Odivelas.
No palácio de Palhavã resida Fr. Gaspar da Encarnação – também conhecido como Padre Govea ou Padre Reformador – que se encarregava da sua educação, sendo que todos eles continuaram posteriormente a sua formação no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra e viriam a ser, respetivamente, cavaleiro da Ordem de Cristo, arcebispo primaz de Braga e Inquisidor-mor. A atribuição do serviço em estudo aos meninos de Palhavã afigura-se pouco provável e falta de qualquer sustento. O Palácio de Palhavã foi sempre um palácio residencial, nunca servindo como colégio ou quartel, o que não se coaduna com o facto dos meninos representados neste serviço estarem trajados a modo de soldados. Tampouco, as iniciais do monograma – PFV ou JFV – correspondem a nenhum dos ditos meninos, assim como a frase “SETE BARRO HE OUTRO OUNICORNIO” não parece ter relação alguma com os filhos bastardos do rei D. João V.

 

O Real Colégio dos Nobres

O Real Colégio dos Nobres foi criado por decreto pombalino de 7 de março de 1761, com o objetivo de preparar aos jovens portugueses da alta aristocracia. O colégio foi instalado na antiga Casa de Noviciado da Companhia de Jesus, na Rua direita da Cotovia, em Lisboa. Para além da tradicional formação na área das humanidades clássicas, pretendia-se abranger também o ensino das ciências exatas, incluindo uma forte componente experimental, o que era algo completamente novo na altura em Portugal. Para isto foram contratados professores estrangeiros, assim como criadas as condições necessária para a existência de um moderno Gabinete de Física.

 

Apesar dos esforços realizados, apenas três quartos de século após a sua formação, e depois de anos de degradação das condições, o Real Colégio fechou as portas a 4 de janeiro de 1837, por se considerar que a instituição não estava “…em harmonia com a Constituição Política da Monarquia, em razão de ser seu instituto uma escola privilegiada”. O edifício foi herdado pela Escola Politécnica de Lisboa, mas é destruído num incêndio em 1843, construindo-se depois no local o atual edifício da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. No seu estudo de 1987 Nuno de Castro fundamenta a atribuição deste serviço ao Colégio dos Nobres de Lisboa, apoiando-se em vários aspetos referentes à decoração e às inscrições presentes nas peças. A data de 1776 seria assim uma referência ao 10º aniversário da abertura do Colégio, que teve lugar a 19 de março de 1766 com presença de toda a família real e a corte. As iniciais do monograma poderiam ser associadas, segundo fossem interpretadas como P.F.V. ou J.F.V., à Padroeira Fidelíssima Virgem – numa alusão à padroeira da instituição, Nossa Senhora da Conceição -, ou a José Faro e Veiga, que foi diretor e inspetor do Real Colégio. Ainda segundo Castro, o almofariz presente na decoração, assim como a frase “SETE BARRO HE OUTRO OUNICONIO” estariam relacionados com o facto de o Colégio ter um dos melhores laboratórios de Física Experimental da Europa (sendo o “barro” o cobalto terroso que provavelmente era analisado no laboratório e a palavra “unicórnio” seria uma referencia à pureza e pedra mineral). Finalmente, a presença dos dois militares que guardam o almofariz estaria perfeitamente justificada por se tratar de dois jovens colegiais guardando o instrumento de trabalho. Para além destas duas teorias existiram outras à volta deste famoso e misterioso serviço. O Dr. Fausto de Figueiredo associou as iniciais do serviço com as de Paulo Fernandes Viana, 1º Barão de S. Simão, porém este só nasceu em 1804, pelo que seria extemporâneo em relação à data de fabrico do serviço. O pai do 1º Barão de S. Simão tinha o mesmo nome – e, portanto, as mesmas iniciais -, mas não há qualquer indício que ligue a sua pessoa à decoração destas porcelanas.

 

Outro mito relacionado com estas peças é o que afirma que o caulino com o qual teria sido feito o serviço teria sido enviado de Portugal para a China. Esta afirmação é em todo absurda se tomamos em atenção que a Real Fábrica de Vista Alegre, que tinha sido fundada por alvará régio de 1 de julho de 1824 com o propósito produzir porcelana, vidraria e estudar processos químicos, só começou a fabricar porcelana dez anos depois, a partir do descobrimento de caulino na região de Ovar. Antes disto em Portugal só se tinham conseguido produzir pequenas peças – em tamanho, qualidade e quantidade – em porcelana aproveitando vestígios de caulino encontrados em algumas argilas, o que era de todo insuficiente para a realização de um serviço completo.

 

Proveniência:

Uma das travessas (FMA 442) e a terrina mais funda (FMA 441) foram compradas, junto com outras peças da coleção, por António Medeiros e Almeida na Henrique Soares Antiguidades, na Rua do Alecrim 64-68 em Lisboa, a 31 de outubro de 1945. Quase 15 anos mais tarde, Medeiros e Almeida adquire uma segunda travessa pertencente a este conjunto (FMA 439) na leiloeira Soares & Mendonça Lda., na Rua Luz Soriano 52, Lisboa, em leilão de 21 de maio de 1959.

 

Da outra terrina (FMA 440) não existe qualquer registo de compra.

 

Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

Bibliografia:

BEURDELEY, Michel, Porcelaine de la Compagnie des Indes, Friboug: Office du Livre, 1962

CARVALHO, Rómulo de História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa, Coimbra: Atlântido, 1959
CASTRO, Nuno de, A Porcelana Chinesa e os Brasões do Imperio, Porto: Civilização, 1987 M
ARQUÊS DE RIO MAIOR, O Real Colégio dos Nobres, separata dos nºs 8 e 9 da Revista Municipal, Lisboa: Publicações Culturais da Câmara Municipal, 1942
MENDES DO AMARAL, Abilio., O “Padre Govea” e os meninos de Palhavã, Lisboa: Separata de OLISIPO, Boletin do Grupo de Amigos de Lisboa, nºs 127-128, julho-dezembro 1969
TEIXEIRA LEITE, Jose Roberto, As Companhias das Índias e a Porcelana Chinesa de Encomenda, Salvador: Fundação Cultural da Bahia, 1986
VV.AA. Os Caminhos da Porcelana. Dinastias Ming e Qing, Lisboa: Fundação Oriente, 1998
VV.AA., Do Tejo aos Mares da China. Uma Epopeia Portuguesa, Palácio Nacional de Queluz, Musée des Arts Asiatiques – Guimet. – Queluz : P.N., 1992

Artista

Desconhecido

Ano

Dinastia Qing, reinado Qianlong (1736-1795), 1776

País

China

Materiais

Porcelana vidrada e pintada

Dimensões

Terrinas (2): Alt. 22 cm x Comp. 33 cm x Larg. 24 cm; Travessa: Alt. 5,3 cm x Comp. 37,8 cm x Larg. 30,2 cm; Travessa: Alt. 3,5 cm x Comp. 41,5 cm x Larg. 35,7 cm

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Destaque