Conjunto de três pratos rasos de porcelana branca moldados com aba larga e achatada. Os pratos são decorados com pintura em grisaille realçada a ouro tendo ao centro representações de cenas da vida de Cristo. As abas são decoradas com cercadura de cartelas e enrolamentos vegetalistas ao gosto europeu. Os bordos lisos são rematados por filete de ouro.
Porcelana China de exportação
O conjunto de pratos integra-se na categoria de porcelana da China destinada ao mercado europeu, conhecida como ‘China de exportação’. Tal denominação esclarece o processo de fabrico já que as peças eram feitas na China, ao gosto do encomendante, segundo formas e decorações fornecidas, com o propósito de serem exportadas, não deixando porém de revelar a sua origem; a cultura chinesa.
A chegada dos Portugueses à China em 1513 despoletou um comércio entre a China e o Ocidente por mar, protagonizado por Portugueses, Espanhóis, Holandeses, Ingleses, Franceses e Suecos que viria a atingir o seu auge nos séculos XVII e XVIII. Entre outros produtos, destaca-se a porcelana chinesa que gerou grande apetência na Europa por se tratar de um material a que muito poucos tinham acesso e que não se produzia no Ocidente. A porcelana – que vinha sobrepor-se à corriqueira faiança – agradava pela delicadeza das formas e decoração, toque, brancura, finura, brilho, resistência ao choque e impermeabilidade.
Desde cedo que os comerciantes europeus se deram conta da capacidade dos artesãos chineses se adaptarem às mais variadas formas e decorações (os chineses exportavam peças para os países vizinhos desde longa data), tendo encomendado uma multitude de peças de diferentes tipologias tais como: formas chinesas com decoração chinesa, modelos islâmicos com decoração islâmica ou chinesa, modelos europeus com decoração ocidental (proveniente de estampas coevas) e formas europeias (réplicas de peças de faiança, metal ou mesmo prata) com decoração chinesa. A própria tipologia de ‘prato raso’ é totalmente europeia, sendo estranha à tradição da mesa chinesa que utiliza tijelas e taças.
A maioria das peças de exportação era produzida nos fornos de Jingdezhen situados na província de Jiangxi no sul da China, sendo que a pintura das peças tanto era feita localmente, como eram executadas peças deixadas em branco que eram enviadas para Cantão (único local na China a que os comerciantes estrangeiros tinham acesso), onde eram pintadas ‘ao gosto do freguês’.
A nível decorativo, para além das cópias fiéis de peças enviadas, foram as gravuras e outras publicações que serviram de inspiração aos pintores chineses principalmente a partir de meados do século XVII, quando cresce exponencialmente o número de encomendas feito pela Europa. A enorme quantidade de peças de porcelana chinesa decorada com cenas europeias testemunha a grande circulação de desenhos e gravuras ocidentais no território chinês. As estampas eram enviadas para serem copiadas pelos pintores chineses os quais – sendo a estética europeia totalmente alheia à sua cultura -, por vezes cometiam erros de interpretação, erros esses que vão caraterizar esta tipologia e que se traduzem na ausência da perspetiva (por desconhecimento da perspetiva linear utilizada na pintura europeia) e dos enquadramentos arquitetónicos e no uso erróneo da anatomia humana (nomeadamente a feminina), da expressão dos olhos, das vestes, das inscrições, etc.
A técnica ‘grisaille’
A técnica de pintura utilizada na decoração desta tipologia é conhecida como ‘encre de chine’ pois pretende imitar as gravuras feitas a tinta-da-china, ou ‘grisaille’ uma palavra francesa que deriva da palavra ‘gris’ que significa cinzento.
Trata-se de uma pintura monocromática feita sobre o vidrado, com recurso a finas linhas de contorno e de sombreados (mais ou menos aguados), a partir de esmaltes pretos ou castanhos-escuros, provenientes do manganês. São ainda caraterísticos desta pintura os detalhes avivados a ouro ou, mais raramente, a esmaltes coloridos (tons pastel) ou rouge-de-fer.
Esta técnica de pintura na porcelana, utilizada para copiar a estética das estampas, foi desenvolvida por Tang Ying – pintor de porcelana e famoso superintendente dos fornos de Jingdezhen entre 1736 e 1753 -, que resolveu o problema técnico após tentativas anteriores de introduzir, sem sucesso, a tinta-da-china (utilizada na pintura chinesa desde tempos remotos) na pintura da porcelana. O Padre d’Entrecolles, na sua carta de 1722, relata as dificuldades que, na altura, estavam a ter com a pintura a tinta-da-china que não pegava no corpo da porcelana, desaparecendo após a cozedura, contribuindo assim para estabelecer balizas temporais quanto ao aparecimento da técnica que surgiu pouco depois para colmatar essa dificuldade. As cartas do Jesuíta Xavier d’Entrecolles (1664-1741), datadas de 1712 e 1722, testemunham o processo de fabrico da porcelana da China – então desconhecido na Europa – já que o missionário se instalou em Jingdezhen, a região produtora de porcelana por excelência.
A pintura a grisaille foi particularmente popular na Europa entre 1740 e 1780, conhecendo-se todo o tipo de peças pintadas com cenas religiosas, mitológicas e do quotidiano civil. Nos anos oitenta o gosto pela porcelana grisaille caiu em desuso.
A tipologia
O conjunto é tradicionalmente formado por quatro pratos representando cenas da vida de Cristo; a Natividade, a Crucificação, a Ressurreição e a Ascensão. Pensa-se que a tipologia decorativa tenha origem em encomendas holandesas, destinadas à comemoração das festividades religiosas representadas. Apesar de existirem diversos exemplares das três primeiras cenas em museus e coleções particulares (em conjunto ou em peças individuais), a representação da ‘Ascensão’ é mais rara, sendo unicamente conhecida em versão com esmaltes polícromos se bem que se pense que possam existir exemplares em tinta-da-china (um exemplar acessível em: http://www.cohenandcohen.co.uk/sold-teabowl-and-saucer-DesktopDefault.aspx?tabid=6&tabindex=5&objectid=399108&categoryid=12756).Raras são também as três primeiras cenas em esmaltes polícromos. Para além de pratos, existem outras peças com a mesma decoração em serviços de chá e de chocolate como leiteiras, frascos de chá, taças, covilhetes, chávenas e pires.
A decoração
Durante muito tempo especulou-se quanto à identificação iconográfica desta tipologia; sendo certo que a inspiração eram estampas europeias, não se conhecia a sua matriz pelo que se relacionava com o grupo de ‘porcelana jesuíta’ assim chamado por congregar peças de temática cristã. Foi só em 1997 que o investigador holandês Christiaan Jörg, curador no Museu de Groningen (ver bibliografia), teve contacto com uma bíblia do século XVIII comprada numa feira da ladra por um colecionador de porcelana da China, na qual se identificaram as gravuras que serviram de fonte para esta tipologia. Baseando-se a classificação de porcelana ‘jesuíta’ nas muitas encomendas de porcelana da China decoradas com simbologia cristã feitas por esta e outras ordens religiosas, ao ter sido encontrada, para este caso, uma fonte luterana, a classificação caiu por terra, espantando muitos investigadores.
As cenas que decoram os pratos são pois tiradas de gravuras de autoria do ilustrador, gravador e poeta holandês Jan Luyken (Amesterdão, 1649-1712) que gravou diversas bíblias e outras obras de cariz religioso. Entre as várias edições que utilizaram as estampas de Luyken com cenas do Novo Testamento (realizadas em 1680) e do Antigo Testamento (realizadas em 1712), encontra-se a Bíblia Luterana – Nederduytse Bijbel – publicada originalmente em 1750, em Amesterdão.
Em 1734 foi publicada uma bíblia luterana em octavo (oitavada) que, devido ao baixo custo, se tornou muito popular; sendo muito utilizada pelos marinheiros e viajantes pela facilidade de transporte, era conhecida como ‘Bíblia dos marinheiros’. Terá sido a partir destes exemplares que as cenas foram copiadas. Tendo esta tipologia sido copiada até ao século XIX, as chapas de impressão em cobre, devido ao uso, foram sendo restauradas e replicadas, o que explica pequenas diferenças que existem nos desenhos das peças.
O termo ‘octavo’ relaciona-se com o formato da publicação. Em termos gráficos, cada folha original de impressão podia ser dobrada de 1 a 64 vezes, resultando em tamanhos diferentes conhecidos como: folio = 1 dobra (4 páginas de impressão), quarto = 4 dobras (8 páginas de impressão), octavo = 8 dobras (16 páginas de impressão), 12, 16, 32… Os vários cadernos eram posteriormente cosidos dando origem ao livro.
As encomendas destes conjuntos, originalmente destinadas ao mercado holandês, eram feitas tanto diretamente pelos mercadores holandeses instalados no entreposto de Batávia (hoje Jacarta), como pela VOC (Companhia das Índias Holandesas), a qual guarda mesmo registo de uma encomenda (mais tardia) de 22 serviços de chá feitos a partir de um prato reenviado em 1778 para a China. O destino seria o mercado luterano dos Países Baixos bem como a província católica de Brabante e outros países europeus.
É de notar que, tal como estes, geralmente os exemplares existentes têm poucos sinais de abrasão (normalmente causada pelo uso), o que leva a considerar que estes pratos seriam vistos como elementos decorativos, provavelmente para expor nas festividades religiosas correspondentes.
Os pratos da Casa-Museu
As estampas de Luyken têm como título a passagem bíblica a que fazem referência incluindo também uma passagem do referido episódio à laia de legenda (as estampas estão acessíveis nos dois documentos de Christiaan Jörg).
Natividade / Adoração dos Pastores (Lucas 2: 6-20) – A cena pintada no fundo do prato representa ao centro o Menino Jesus deitado numa manjedoura, enfaixado e com uma auréola dourada, rodeado pela Virgem Maria sentada, São José, os Reis Magos e pastores. Por trás da cena espreitam as cabeças de dois bovinos bem como um cesto com palha. Em primeiro plano representa-se um burro deitado e alguns arbustos que se prolongam até ao horizonte. O pintor chinês copiou a cena com alguma minúcia, respeitou a disposição dos personagens, não sem evitar alguma ingenuidade no desenho, nem conseguir imprimir perspetiva à cena. Comparando com a estampa, o cenário arquitetónico que enquadra a cena não foi repetido pelo pintor, limitando-se este a semear alguns arbustos como paisagem. Alguns pormenores, como a auréola, um vivo na manjedoura e a cabeçada do burro, estão realçados a ouro.
A cercadura deste prato, que denuncia também a influência ocidental, pintada nos mesmos tons com cartelas, cornucópias, enrolamentos vegetalistas, fitas e flores, sugere a comparação com uma série de gravuras de elementos decorativos barrocos do arquiteto e gravador alemão Paul Decker (1676-1713), por sua vez inspiradas em desenhos franceses de Jean Bérain (de 1710), utilizadas exclusivamente na porcelana austríaca Du Paquier sendo este motivo conhecido como ‘laub und bandelwerk’ (folhas e laçaria). A manufatura Du Paquier foi fundada em 1718 sendo a segunda fábrica a produzir porcelana de pasta dura na Europa a seguir à manufatura alemã de Meissen. As cópias feitas China de modelos e decorações destas manufaturas provam a existência de influências recíprocas, conhecidas como ‘torna viagem’.
Crucificação (Mateus 27: 35-50) – Neste prato representa-se a Crucificação de Cristo que surge na Cruz, coroado de espinhos e com auréola, entre os dois ladrões. No topo da cruz de Cristo, a inscrição colocada pelos soldados: INRI (Iesus Nazarenus Rex Iodorum – Jesus de Nazaré Rei dos Judeus). Por detrás das cruzes agrupam-se a Virgem Maria, São João e outros personagens. Sentados em primeiro plano, quatro centuriões jogam aos dados as vestes de Cristo.
De pé, outro soldado prepara-se para trespassar o lado de Cristo; trata-se do futuro São Longuinho ou Longino (do latim Longinus, palavra de raiz grega que significa ‘lança’). Segundo a tradição, ao trespassar Cristo com a lança, o Santo Sangue respingou para os olhos do soldado que ficou imediatamente curado de uma grave doença ocular. Tendo-se convertido, abandonou o exército romano dedicando-se à evangelização na Cesareia e Capadócia. Foi preso, torturado e morto defendendo a sua fé.
Tanto o desenho como a cercadura têm alguns detalhes realçados a ouro, o que empresta riqueza à decoração no entanto é notório o desconhecimento do artesão chinês no que diz respeito a um pormenor mandatório na tradição da pintura ocidental; realçar a ouro a auréola de Cristo (no primeiro prato, por acaso, a auréola está pintada a ouro).
Ressurreição (Mateus 28: 1-4) – A cena pintada neste prato mostra ao centro Cristo Ressuscitado em ascensão erguendo-se do sepulcro, com auréola e envolto por raios e nuvens. À esquerda, sentado sobre a pedra do túmulo, um anjo do Senhor observa os soldados assustados que caem inanimados. Atrás das nuvens, no horizonte, surgem três pequenas figuras que observam a cena. Em alguns exemplares, estes personagens são substituídos por arbustos apesar de aparecerem na gravura original; trata-se de um erro ou mesmo de uma interpretação deliberada do pintor chinês.
A cercadura deste exemplar é diferente dos outros dois sendo composta por enrolamentos vegetalistas, fitas e pequenas flores. Este motivo decorativo é possivelmente inspirado em desenhos do pintor francês François Boucher de 1730. Conhecem-se cerca de oito cercaduras diferentes nestes conjuntos de pratos.
Proveniência
O conjunto de pratos foi exposto pela casa Antiguidades António Costa no 1º Salão de Antiguidades de Lisboa (stand nº 27), que teve lugar na Feira Internacional de Lisboa e que decorreu entre 16 de Março e 3 de Abril de 1963.
As peças foram adquiridas pelo antiquário Alexandre Fernandes, da Antiquarium, Lisboa para Medeiros e Almeida, ao abrigo de uma colaboração existente entre os dois, sendo que Alexandre Fernandes tinha fundos de Medeiros e Almeida para comprar peças e se este se interessasse, ficava com elas, senão o antiquário vendia-as na sua loja.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
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Catálogos de exposição
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Webgrafia
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http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arasi_0004-3958_1962_num_9_1_892
1740-1750
China
Porcelana, China de exportação, pintura a grisaille e ouro
Diâmetros – Natividade: 22,8 cm / Crucificação: 22,9 cm / Ressurreição 22,8 cm