O Museu expõe, num dos topos do salão do casal Medeiros e Almeida, duas das obras mais importantes de pintura do acervo, dos irmãos flamengos Brueghel: Jan, conhecido como o “O Velho” e Pieter II, conhecido como o”O Novo”. Tratam-se das obras mais antigas da coleção de pintura. A obra em estudo é datada de 1606.
Neste óleo do grande pintor flamengo Jan Brueghel, o Velho, assistimos a uma cena campestre retratada com grande minuciosidade, na qual contemplamos grupos de figuras; homens comendo, bebendo ou descansando, camponeses atarefados junto às suas carroças e dois viajantes, que efetuam uma paragem junto a uma hospedaria e que solicitam alojamento e refeição bem como a troca de cavalos e alimento dos animais. À direita, num alto, um moinho de vento em destaque e, no horizonte, uma aldeia onde se evidencia a torre da igreja.
O contexto – a paisagem nórdica:
Durante a maior parte da história da pintura ocidental, a paisagem era simplesmente o cenário, o fundo, para uma cena narrativa desvinculada desta. As primeiras paisagens autónomas estão provavelmente ligadas com a representação dos meses e das estações do ano nos livros de horas. No fim do século XV e durante o século XVI a paisagem começa a ganhar protagonismo na obra de alguns pintores nórdicos, como no caso de Joachim Patinir (1408-1524) ou Pieter Brueghel o Velho (c.1525-1569), que se esforçam na representação pormenorizada de elementos naturais pintados a partir de anotações tomadas na própria natureza, embora as paisagens finais destes autores sejam ainda completamente idealizadas.
Será no século XVII que a pintura de paisagem se consolida definitivamente, com a tradição nórdica como base e a influência trazida por todo um grupo de pintores que tinha viajado e estudado a pintura italiana, nomeadamente, o seu uso da luz.
Na opinião de Teresa Posada Kubissa, conservadora do Departamento de Pintura Flamenga e das Escolas do Norte do Museu do Prado, “Jan Brueghel o Velho (será) a figura-chave na consolidação da paisagem como género pictórico autónomo” (2013, p. 34), com ele, a paisagem deixará de funcionar como pano de fundo, suporte da cena central e passará a ser uma paisagem real, mais ou menos idealizada, na qual se desenvolve a narrativa.
Embora seja comumente aceite o nascimento da paisagem como género pictórico nos Países Baixos no século XVII, há que ter em atenção que estas paisagens eram, salvo raras exceções, paisagens habitadas onde existia uma forte narrativa – fosse esta mitológica, bíblica, uma descrição dos afazeres do campo, da vida no bosque, etc.-, sendo que a paisagem per se, como imagem estética para a contemplação da natureza, só se desenvolverá mais tarde.
A obra:
No início do século XVII, num momento politica e socialmente convulso para os Países Baixos, a facilidade na realização de viagens entre diferentes pontos era fundamental. A vida no campo continuava a ser o grande motor de subsistência e os camponeses precisavam de fazer chegar a sua mercadoria às aldeias e cidades, os comerciantes tinham que se deslocar aos mercados locais para vender os seus artigos e os mensageiros deviam levar o correio de uma localidade para a outra.
É assim que Jan Brueghel o Velho, na obra “A Paragem”, exposta na Casa-Museu, foca a sua atenção na representação dos diferentes afazeres à beira de um caminho junto a uma hospedaria, retratando com grande minuciosidade as diversas atividades e personagens próprias que se encontravam nestes lugares na altura, desde os dois homens em primeiro plano que param a sua cavalgada para conversar enquanto um terceiro lhes oferece água para beber e um pedinte se aproxima deles, até à troca e alimentação dos cavalos, o descanso a meio da viajem, o carregamento das carroças, etc.
O arranjo de variadas figuras numa estrada que se afasta na distância é uma fórmula que aparece já na obra do seu pai, Pieter Brueghel o Velho, que ele adapta trabalhando os diversos planos, como está patente nesta obra, atendendo à escala das figuras e à gama cromática utilizada: cores mais quentes no primeiro plano, com predominância dos castanhos, tons esverdeados no plano intermédio e azuis e cinzas para o plano de fundo. Outra característica cromática usada pelo autor, nesta e noutras pinturas semelhantes, são os apontamentos a vermelho nas roupas das figuras que integram os diferentes grupos, recurso que faz viajar o olhar do expectador por toda a superfície do quadro para descobrir a riqueza de ações que se estão a desenvolver simultaneamente e que Brueghel regista com inigualável preciosismo.
Neste tipo de obras a paisagem e a pintura de género coabitam, sendo que a paisagem já não é totalmente idealizada e que o retrato do quotidiano popular é fidedigno, embora esta cena a que assistimos como espectadores não seja um documento real de um momento concreto, mas sim uma composição baseada na observação do real e reformulada no atelier.
Nesta pintura o autor destaca ainda alguns elementos fundamentais para a sociedade da época como a torre da igreja que vislumbramos ao fundo e que preside e vigia a povoação – o que não é fortuito num momento no que as lutas políticas se tinham tornado também disputas religiosas -, e o moinho de vento à direita, marca fundamental na paisagem dos Países Baixos e motor do desenvolvimento económico.
Na primeira década do século XVII, Jan Brueghel o Velho realiza diversas pinturas cuja temática e composição se desenvolvem em torno de um caminho, destacando-se a obra de 1603 “A rua da aldeia” (no Kunsthistorisches Museum de Viena) em que a localização e as personagens são semelhantes à obra da Casa-Museu, variando apenas ligeiramente na perspetiva adotada.
O autor:
Jan Brueghel (Bruxelas, 1568-Antuérpia, 1625) chamado o Velho para o diferenciar do seu filho, também pintor, ou de Veludo pela sua perícia a reproduzir texturas, ou Brueghel das Flores pela sua mestria em pintar flores – é sem dúvida um dos mais importantes pintores flamengos do seu tempo. Filho do também pintor Pieter Brueghel o Velho, e irmão de Pieter Brueghel o Novo, pertence a uma família de grande tradição pictórica.
Com apenas um ano fica órfão de pai e aos dez anos perde também a sua mãe. Ele e os seus irmãos Pieter e Marie irão então viver com a sua avó Mayken Verhulst, viúva do artista Pieter Coecke van Aelst e ela própria pintora miniaturista, sendo com ela que os irmãos Brueghel terão a sua primeira aprendizagem.
Ao contrário do seu irmão, Jan viajou em diversas ocasiões, sendo a sua pintura influenciada por estas viagens, nomeadamente pela sua estadia em Itália (Nápoles, Roma e Milão) entre 1590 e 1596. Estabelecido em Antuérpia, em 1602 é nomeado deão da Guilda de São Lucas – corporação de grande importância na época que agrupava os pintores e outros artistas -, e em 1606 pintor da corte dos Arquiduques.
Uma das grandes temáticas tratadas por Brueghel será a pintura de paisagem – sejam estas paisagens cenário de cenas mitológicas, bíblicas ou de género -, embora também tenha sido muito reconhecido pelas suas pinturas de flores. Durante o seu percurso colaborará com outros artistas, nomeadamente com o seu amigo Peter Paul Rubens, com o qual pinta em colaboração, entre outras, a obra “Adão e Eva no Paraíso”, na qual Brueghel se ocupa da pintura do fundo, das flores e dos animais e Rubens das figuras.
Embora não se conheçam nomes concretos de seus discípulos diretos, com a exceção de Daniel Seghers, é inegável a sua influência nos seus filhos Jan e Ambrosius e no seu neto Jan van Kessel, assim como em outros pintores dessa geração.
A proveniência:
Esta obra pertenceu à coleção da Baronesa Angela Burdett-Coutts (1814-1906), que em 1837 se converteu na mulher mais rica de Inglaterra ao herdar a fortuna do seu avô, grande parte da qual dedicou à beneficência em diversas áreas.
Posteriormente formou parte da coleção da Viscondessa Bertie of Thame, Lady Feodorowna Cecilia Wellesley (1838-1920), sobrinha-neta do Duque de Wellington.
Em 1955 esteve exposta na exposição “Mestres Flamengos e Alemães”, na Eugene Slatter Gallery (30 Old Bond Street, Londres), onde foi adquirida por Medeiros e Almeida a 10 de Maio.
Samantha Coleman-Aller
Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
BENEZIT, E.; Dictionnaire critique et documentaire des Peintres, Sculpteurs, Dessinateurs et Graveurs, Librairie Gründ, France, 1961, vol. 2, p.171
ERTZ, Klaus; Jan Brueghel der Ältere (1568-1625), DuMont Buchverlag, Colonia, 1981
FRANCO, Anísio; Realidade e Capricho. A pintura Flamenga e Holandesa da Fundação Medeiros e Almeida, Fundação Medeiros e Almeida, Lisboa, 2008
MITCHEL, Peter; Art of The Western World. Dutch Painting, Paul Hamlyn Ltd, Londres, 1964
POSADA KUBISSA; Teresa, Rubens, Brueghel, Lorrain. A Paisagem Nórdica do Museu do Prado, INCM, Lisboa, 2013
WINKELMANN, Gertraude; Blumen-Brueghel, Verlag M. DuMond Schauberg, Colonia, 1968
WOOLLWTT, Anne T. e van SUCHTELEN; Ariane, Rubens & Brueghel. A Working Friendship, Getty Publications, L.A., 2006
Jan Brueghel, o Velho (1568-1625)
1606
Flandres, França
Óleo sobre cobre
Alt. 17,8 cm x Larg 24,1 cm