A Casa-Museu possui expostas na Sala das Pratas três exemplares desta tipologia a que se chama salva e que têm as suas origens em peças da época dos descobrimentos portugueses.
A peça em estudo é uma salva em prata que, pela decoração da aba, corresponde à tipologia das salvas de “bastiães”, um dos temas mais divulgados no final da Idade Média e dos mais usuais em salvas portuguesas desta tipologia, conforme atestam os exemplares que ainda se conservam e a documentação existente.
No medalhão central, um brasão inacabado que poderia corresponder ao da família portuguesa Almeida (ou Mello).
Função e decoração das salvas:
Uma salva é, na descrição de Rafael Bluteau no seu Vocabulário Portuguêz & Latino, de inícios do século XVIII, “…a peça de ouro, prata, ou outra matéria, sobre que se serve ao senhor o vaso, em que há de beber”. Esta frase não só nos dá uma primeira descrição de como são este tipo de peças como também nos aproxima de um dos seus usos, o que é fundamental para compreender a evolução destas peças na sua forma e função.
Frequentemente referidas na documentação dos séculos XV e XVI, eram originalmente peças de aparato que poderiam cumprir duas funções: uma mais utilitária ligada aos rituais da mesa e outra de carácter mais simbólico como elemento decorativo e de ostentação.
Na sua função mais prática – tal como se pode ver na pintura “Última Ceia” de Gregório Lopes, da Igreja de São João Baptista de Tomar – a salva era utilizada para verter parte do vinho que havia de beber o senhor, para que fosse provado primeiro por um servente, de modo a evitar possíveis envenenamentos. Será de facto desta cerimónia, denominada “Tomar a Salva” – pôr o senhor a salvo – de onde parece derivar o nome da peça.
Na sua vertente mais decorativa, as salvas eram colocadas em prateleiras ou aparadores/escadórios para enfeitar a sala, sendo utilizadas como símbolo de riqueza do proprietário, daí a importância da heráldica que muitas vezes aparece associada a estas peças. Prova disto é a salva representada na “Apresentação da Cabeça de São João Baptista”, também de Gregório Lopes, onde, por detrás da mesa de Herodes, encontramos um aparador com dois jarros e uma salva brasonada em exposição.
À medida que a sua função original vai caindo em desuso – nomeadamente a função ligada à cerimónia da refeição – as salvas vão ganhando novos usos e, com eles, novas formas, sendo que na atualidade podemos ver o termo “salva” associado à inúmera variedade de pratos de tamanhos, formas, decorações e usos muito diversos.
Em relação à decoração das salvas de finais do século XV e inícios do século XVI, Joaquim Oliveira Caetano, no seu texto “Função, Decoração e Iconografia das Salvas” no Inventário do Museu Nacional de Arte Antiga, distingue diversos tipos, que podemos resumir em:
Nuno Vassallo e Silva, na obra sobre ourivesaria portuguesa de aparato, refere a importância das formas arquitetónicas, nomeadamente no último quartel do século XV, na ourivesaria portuguesa, e salienta também um conjunto de salvas “…com grandes superfícies polidas, sem ornamentação”, que seriam já da segunda metade do século XVI ou posteriores, ressaltando porém que este recurso: “…é uma constante na arte da ourivesaria, bem anterior aos séculos XV e XVI”, sobretudo quando se desejam peças utilitárias – este tipo de produção perdurou no tempo.
Leitura formal da salva da Casa-Museu Medeiros e Almeida:
Esta salva seria provavelmente uma peça de ostentação, ou muito excecionalmente utilizada, dado a sua superfície muito trabalhada, que aponta mais para a uma função decorativa e como símbolo de poder. Realizada em prata repuxada e incisa – provavelmente originalmente dourada, mas apenas restam disso vestígios na parte inferior -, com decoração organizada, como é habitual neste tipo de peças, em faixas concêntricas.
No centro elevado, rodeadas de uma cercadura de ponteado, gravam-se as armas dos Melos ou Almeidas com seis arruelas, de gravação muito esquemática, inacabada que pode inclusive ser resultado de uma alteração posterior à manufatura da peça na qual se tenha gravado o brasão do novo possuidor, prática muito comum e que em nada desvalorizava a peça.
As faixas em volta do medalhão central – que conformam três níveis descendentes separados por caneluras côncavas, pronunciadas e estreitas – estão decoradas consecutivamente com corda torcida, cartelas ovais, e motivos vegetalistas o que, para alguns autores, indicaria também uma decoração posterior já que está mais próxima da utilizada em finais do século XVI do que em inícios deste século. A transição entre este núcleo e a aba é feita por uma última canelura cercada por perlado relevado.
A aba está profusamente decorada mediante cinzelado. Nela, sobre fundo de videira, com cachos de uvas e folhas de parra, distribuem-se doze figuras em anárquica disposição: 6 homens-selvagens – criatura maravilhosa do imaginário tardo-medieval, com o corpo coberto de tufos de pêlo que deixam só livres a cara, mãos e pés -, 5 centauros – animal fabuloso meio homem, meio cavalo – com toga ou manto, e uma figura híbrida de homem-selvagem e centauro.
Algumas destas figuras envergam barretes ou capacetes, e ostentam outros objetos entre os que se misturam atributos próprios dos cavaleiros (escudo, arco), dos bispos (cruz, báculo, cálice) e outros elementos associados ao homem-selvagem, como grandes bastões ou ramos de árvore. Entre estas figuras e a vegetação aparecem também diversos animais (cães, aves, macacos) de difícil identificação dada a sua representação pouco realista.
Leitura iconográfica:
Como já foi descrito, o medalhão central desta salva exibe as armas dos Melo ou Almeida, rodeados de várias faixas de decoração que também podem ter sido alterações posteriores, pelo que para a leitura iconográfica nos centraremos na decoração da aba, isto é, na temática das salvas de “bastiães”, com o ‘homem-selvagem’ como motivo central.
O tema dos ‘homens-selvagens’ é conhecido na arte portuguesa – não só na ourivesaria como também na iluminura, no trabalho de talha e nas artes cénicas – desde finais do século XIV, e estender-se-á até ao século XVI.
No final da Idade Média, o ‘homem-selvagem’ era produto da idealização de uma criatura maravilhosa que habitaria em algum local longínquo (sempre representado como um local cheio de vegetação como podemos observar nesta salva), e que teria como base não só os bestiários medievais, como também os textos clássicos, os relatos mitológicos e até a própria Bíblia. Esta figura, a meio caminho entre um homem e um animal, coberto de pêlos mas a caminhar sobre duas pernas, será a personificação do mais primitivo do homem, com tudo o que isto trazia consigo: o irracional, o caótico, os instintos mais primários, e tudo isto, claro está, como contraposição a um mundo civilizado que procurava encontrar a lógica e o ordem na religião e numa rígida organização da sociedade.
Como resulta da observação das personagens representadas na peça da Casa-Museu, muitas vezes este intento de plasmar a visão que se tinha do mundo, resultava numa procissão de personagens nas quais o homem-selvagem podia aparecer ligado a outras figuras fantásticas – neste caso centauros – e animais fabulosos, numa disposição sem aparente ordem e que, às vezes, podia também ser de luta.
Neste singular cortejo, mistura-se o primitivo com os símbolos do mundo que se pensa racional e organizado aparecendo, como já vimos, atributos que fazem referência aos principais escalões da sociedade: os cavaleiros, a Igreja e o próprio rei.
Com o passar do tempo, esta iconografia do homem-selvagem foi-se enriquecendo com novas imagens de um mundo que estava a crescer a cada momento com novos descobrimentos, sendo que, com o conhecimento de seres reais, que habitavam lugares reais e identificáveis, e que podiam substituir esta figura idealizada e mítica, o homem-selvagem passara a personificar não tanto o homem primitivo e desconhecido, como tudo o que de mau há em cada um de nós, sendo que, segundo Joaquim Oliveira Caetano, “…o selvagem torna-se um mito interno, em vez de ser um mero mito exterior. A caçada e o combate ao homem selvagem simbolizam assim o combate aos seus instintos mais básicos e às suas pulsões primárias”.
Em Portugal, como já foi referido, as salvas de “bastiães” tiveram grande divulgação, sendo que se conhecem mais de uma dezena de exemplares, alguns semelhantes à salva da Casa-Museu, com as mesmas armas no medalhão central e apenas com pequenas variações no tamanho ou no número e colocação das figuras que decoram a aba.
Existem exemplares no Museu Nacional de Arte Antiga, no Palácio Nacional de Ajuda, na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva ou, fora de Portugal, no Museu Britânico.
Datação:
Dada a ausência de marcas ou punções a datação será sempre aproximada e realizada com recurso à documentação existente, à comparação com peças de características similares como as acima mencionadas e à observação das características que revelam determinadas técnicas de fabrico.
Estas salvas de “bastiães aparecem na documentação portuguesa desde meados do século XV e, nomeadamente, no início do século XVI porém, a existência de um número significativo de salvas muito próximas no seu desenho a esta e a presença de algumas incongruências técnicas que parecem diferir do tipo de trabalho realizado no século XVI, levam-nos a pensar que esta salva (bem como outras das acima referidas) poderiam ser cópias mais ou menos fiéis de um exemplar do século XVI.
Proveniência:
De acordo com a documentação da leiloeira, a salva pertenceu à coleção da família Herédia de Málaga, 1906; posteriormente à coleção do Dr. August J. von Borosini (1874-?) de Los Angeles, Califórnia, tendo sido adquirida por Medeiros e Almeida em leilão da Christie’s, Londres, de 10 de dezembro de 1958, lote 47, por £420, através do antiquário John Mitchell da John Mitchell Fine Paintings (25, Old Burlington Street) com quem o colecionador trabalhava frequentemente enviando os seus pedidos.
A CMMA agradece ao investigador Hugo Miguel Crespo as valiosas observações em relação a esta peça.
Samantha Coleman Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
BLUTEAU, Raphael, Vocabulário Portuguêz & Latino, Coimbra, Collégio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728
OLIVEIRA CAETANO, Joaquim, “Função, decoração e iconografia das salvas”, in OREY, Leonor (coord.), Inventário do Museu Nacional de Arte Antiga: coleção de ourivesaria, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1995
REBELO DE ANDRADE, Maria do Carmo, “Iconographic Narrative of stately silverware Portugal XV and XVI centuries”, in European Royal Tables, Lisboa, IPM, 1999
SANTOS, Reynaldo dos, QUILHÓ, Irene, Ourivesaria Portuguesa nas Colecções Particulares, 2ª edição, Lisboa, 1974
VASSALLO E SILVA, Nuno, Ourivesaria Portuguesa de Aparato. Séculos XV e XVI, Lisboa, Scribe, 2012
Desconhecido
Séc. XIX
Portugal
Prata repuxada, cinzelada e gravada
Diâmetro: 32cm Altura: 6cm / Peso: 1063 gr.