O acervo Medeiros e Almeida ainda nos revela agradáveis surpresas. Há uns anos “Esquecidos” em cima de um armário, “descobrimos” seis desenhos-aguarelas de Stuart de Carvalhais, assinados e datados (3) dos anos 20.
Tratam-se de desenhos-aguarelas humorísticos versando a temática dos automóveis, que “encontratam o seu caminho” numa coleção de um representante de marcas de automóveis britânicas, a Morris, a Riley e a Wolseley.
O Humor como iniciativa do Modernismo:
A entrada do Modernismo – enquanto movimento estético – em Portugal, deu-se “à boleia” do Humorismo. Desde meados do século XIX que nomes como Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) e Sebastião Sanhudo (1851-1901) tinham vindo a desenvolver o humor português apoiando-se numa mordaz crítica social e política, segundo as pisadas do estrangeiro que tem, no francês Honoré Daumier (1808-1879), um dos grandes precursores do Humor aplicado à expressão artística.
Nas artes plásticas o Modernismo teimava em tardar a entrada em Portugal, que vivia no panorama de um ensino subordinado à estética oitocentista e do domínio dos valores do realismo e dos naturalistas da segunda geração. No estrangeiro, porém, alguns portugueses destacavam-se já no campo do humor, como em Paris Stuart de Carvalhais que publica, em 1913, em revistas como o “Le Rire”, o “Ruy Blas” e o “Le Sourire” e em Munique Emmérico Nunes que colabora no jornal “Meggendorfer Blatter”.
Legitimado pela liberdade de expressão e vivendo o clima frenético do pós-Primeira Guerra Mundial, o humor visava os diferentes tipos sociais e as virtudes e defeitos do novo regime republicano, que assim se transformam em matéria-prima para os artistas.
Por todo o país surgem centenas de novos títulos de jornais e revistas que se tornam num veículo de experimentação para uma nova geração de desenhadores e caricaturistas como Stuart Carvalhais (1887-1961), Emmérico Nunes (1888-1968), Cristiano Cruz (1892-1951), Almada Negreiros (1893-1970), Jorge Barradas (1894-1971), António Soares (1894-1978) e Bernardo Marques (1898-1962) entre outros. Em 1911 estes artistas formam o “Grupo de Humoristas Portugueses” que expõe os seus trabalhos em salões na capital e no Porto, dando início a um processo irreversível de introdução do Modernismo em Portugal.
A arte de José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais:
Conhecido como Stuart de Carvalhais o autor nasceu em 1887, em Vila Real de Trás os Montes, e morreu em Lisboa em 1961, onde viveu desde os primeiros anos do novo século.
Na capital teve formação como aprendiz de pintura de azulejo no estúdio de Jorge Colaço (1868-1942) por volta de 1905, não se lhe conhecendo outra formação que não a da vida.
A sua estreia como caricaturista deu-se logo em 1906, no suplemento humorístico do jornal “O Século”. No ano seguintes iniciou o seu importante percurso na banda desenhada com “As Aventuras de Dois Meninos no Bosque” seguindo-se, em 1915, as famosas “Aventuras de Quim e Manecas” e a sua larga colaboração em várias revistas humorísticas como “A Sátira”, “O Zé”, a “Gargalhada”, a “Ilustração Portugueza” e o “Papagaio Real”.
Apesar de algumas estadias em Paris, onde conviveu com Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros e Santa-Rita, Stuart viveu sempre em Lisboa entre o sucesso, a instabilidade financeira e o alcoolismo.
Humorista, caricaturista, pioneiro da banda desenhada, pintor, ilustrador, designer gráfico, cenógrafo, figurinista, fotógrafo, decorador, realizador de cinema e ator, Stuart de Carvalhais, foi um artista multifacetado.
Nas artes gráficas experimentou materiais inesperados como papel de embrulho, tampas de caixotes, cartão, guardanapos – e também recorreu a materiais diferentes tendo utilizado para desenhar fósforos queimados, vinho, graxa e carvão, num sinal – ainda que involuntário – de uma certa vanguarda.
Através do desenho gracejou e criticou sendo, por excelência, o cronista do seu tempo e da sua cidade – Lisboa. O seu reportório de tipos alfacinhas e do bas-fond lisboeta é conhecido tendo imortalizado as burguesinhas, as flausinas, as costureiras, as fadistas, os pregoeiros, os bêbados, os polícias, os artistas, os atores, os políticos…
A atividade constante deu a Stuart uma grande mestria de traço, que lhe permitiu variar de registo à sua vontade, evidenciando-se na sua obra um desejo de liberdade, de criação e uma enorme apetência experimental muitas vezes longe das convenções materiais e estilísticas.
Ao analisarmos o seu trabalho surgem linhas, manchas, texturas e cor que se conjugam para transmitir os conteúdos formais e plásticos, lendo-se, para além de um sentimento profundo, uma pesquisa séria, uma busca dos processos de representação, de algo novo e sem paralelo na altura. As suas marcas mais comuns são o traço a tinta-da-china, despojado, grosso e descontínuo e o uso do preto e branco bem como a inexistência de pormenores, de fundos ou de perspetiva, criando leituras claras e simplificadas.
Análise iconográfica:
O universo iconográfico do desenho-aguarela em análise é o dos tipos sociais lisboetas tão caros ao artista: uma mulher elegante e um polícia bêbado.
Sendo o automóvel uma relativa ‘novidade’ nos anos 20 da centúria de novecentos, a interferência no quotidiano – provocada pela ‘democratização’ do seu uso – vai ser grande e, como tal, geradora de costumes e comportamentos sociais.
A Stuart, agudo observador do quotidiano, não lhe passam despercebidas as novas situações que nesta obra analisa à luz do seu espírito observador e carregado de humor.
Um dos desenhos da coleção representa uma elegante senhora, deitada no chão parcialmente debaixo de um carro a observar a engrenagem do automóvel, compõe um novo tipo, o da mulher emancipada, surgida como produto do pós-guerra, dos chamados ‘loucos anos vinte’, que já conduz sozinha o automóvel e apesar de elegante e vestida à moda, não hesita em tentar resolver a situação de apuro.
Com este tipo o autor faz uma crítica velada às poses de uma burguesia emergente, muito ‘ruidosa’ na maneira de viver. O curto vestido deixando as elegantes pernas à vista, calçadas com meias até ao joelho, mostra o que até então não era hábito nas senhoras da sociedade.
A propósito de pernas, o próprio autor refere um episódio passado em Paris em que andou à zaragata por ter pintado os “membros locomotores” de uma jovem no parque Monceau. Apesar da desavença, Stuart confessou: “…Mas não tive emenda e, confesso, em desenhar pernas sou um reincidente.” (citado por COTRIM, 2006, p.18, que refere um artigo na revista Eva de dezembro de 1952: “Stuart conta-nos alguns episódios da sua vida boémia”).
O pequeno chapéu pousado no chão – acessório obrigatório da moda feminina dos anos 20, usado como mote de embelezamento e sedução mas também de autonomia – é do modelo cloche (em forma de sino) e seria certamente complemento do novo penteado curto, chamado à la garçonne, também este símbolo da nova e moderna mulher representada na aguarela.
Por outro lado, o polícia, figura típica do tecido social, que não sofre o mesmo tipo de evolução é conotado com o ‘bronco’ e bêbado como se pode aferir nesta situação em que, atónito, observa a mulher pois leva ambas as mãos à boca num gesto de incredulidade e estupidez.
Retratado com o inevitável bigode, nariz batatudo e as bochechas ruborizadas, denuncia a ida à ‘tasca’ e um pouco de álcool a mais, o que não ajuda à compreensão da cena que presencia. A esquadra a que o guarda pertence, identificada pelo nº37 na divisa do colarinho da farda como sendo a Serafina, também concorre para a tipificação pretendida pois este era um bairro popular lisboeta, um meio pobre e marginal, a que o próprio artista pertencia.
Formalmente esta composição desenvolve-se apoiada num traço simples e na utilização de aguarelas polícromas e tinta-da-china sobre cartão não tendo como suporte, desta feita, o desenho integral a preto e branco a que tanto o artista recorreu.
A característica formal geral é a inexistência de cenário, sendo a situação retratada o único motivo, recurso habitual na obra de Stuart. A composição não tem título nem legenda, algo também incomum na obra do artista.
A composição é concebida num só plano e conseguida com poucos traços (estrutura do carro e rodas) cabendo à aguarela delinear, pela cor, a carroçaria, o vestido da jovem e ainda a figura do guarda.
A paleta é reduzida, sendo quatro as cores utilizadas; vermelho, azul e castanho da aguarela e o negro da tinta da china. A grande mancha vermelha do carro anima a composição sendo a sua fonte de luz, bem como o brilho dos pormenores, a tinta da china como o capacete empresta grande força ao desenho e faz oscilar o olhar do espectador entre as rodas do carro, o volante e o chapéu do polícia. O azul horizontal do vestido da jovem, liga-se com o azul vertical da farda do polícia, fazendo o desenho ser percorrido por relações de olhares apressados que captam assim a realidade num instante. O horizonte é apenas sugerido por uma linha horizontal interrompida pelo automóvel, não havendo qualquer fundo ou cenário.
A situação retratada torna-se humorística, não só pelo exagero da tipificação dos personagens, mas pelo olhar agudo que revela sobre dois ‘tipos’ tão díspares, provenientes de mundos diferentes, mas que coabitavam na Lisboa dos anos 20.
A falta de título ou texto elucidativo não se faz sentir pois a situação fala por si, auto esclarece-se, tendo o espectador a imediata perceção do alcance humorístico da composição, de acordo com Pacheco (1987, p.17): “…é de leitura imediata, como só a rua sabe ser.”
Com o seu desenhar, Stuart estabeleceu uma relação íntima entre a Palavra e a Imagem como a da aguarela em análise que encerra e traduz os modos e o mundo do artista, mostrando porque ele foi um vanguardista.
Proveniência:
O desenho-aguarela humorístico hoje pertencente ao espólio da Casa-Museu, decorava, juntamente com outros seis (um desaparecido), as paredes da sala principal do stand de automóveis ‘A. M. Almeida’, pertencente ao colecionador Medeiros e Almeida, situado na Rua da Escola Politécnica, nº 39, em Lisboa.
Quanto à proveniência dos mesmos, visto não existir qualquer documentação nos arquivos da FMA, levantam-se duas hipóteses; a da encomenda ao artista pelo colecionador para o recém inaugurado stand de automóveis (1923) – hipótese plausível tratando-se da temática e datação dos desenhos -, ou a da simples compra oportuna, num salão de pintura ou exposição da época como as da Sociedade Nacional de Belas Artes, que Medeiros e Almeida frequentava com regularidade.
A aquisição para a coleção terá sido posterior a 1927, data de três das seis obras.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Nota: O texto é ilustrado com pormenores do desenho em análise e com imagens dos outros cinco desenhos humorísticos pertencentes à Casa-Museu da mesma autoria e proveniência.
Por ocasião da exposição biográfica de António de Medeiros e Almeida, os desenhos foram restaurados (set 2011 – jul 2012).
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
COTRIM, João Paulo – Stuart A Rua e o Riso. Lisboa: Assírio & Alvim, El Corte Inglés, 2006
FOYOS, Pedro – Stuart Inédito, Lisboa: Diário de Notícias, 1989
FRANÇA, José Augusto – História da Arte em Portugal, o Modernismo (Século XX). Lisboa: Editorial Presença, 2004
PACHECO, José – Stuart Carvalhais e o Modernismo em Portugal. Lisboa: Vega, 1987
PACHECO, José – Stuart Carvalhais O Desenho Gráfico e a Imprensa. Lisboa: Apigraf, Associação Portuguesa Indústrias Gráficas T. Papel, 2000
PACHECO, José – Stuart 1887-1987 Centenário do Nascimento. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1987
RODRIGUES, Paulo Madeira, MOITA, Irisalva da Nóbrega (colab.) – Vida e Obra de Stuart Carvalhais. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1982
SOUSA, Osvaldo, MARCOS, Luís Humberto – 150 Anos de Caricatura em Portugal. Porto: HUMORGRAFE/AMI – Associação Museu da Imprensa, 1997
Stuart de Carvalhais (1887-1961)
1927, Anos 20
Lisboa, Portugal
Tinta-da-china, aguarela
Comp. 47,3cm. x Alt. 30cm.