A coleção de leques da Casa-Museu Medeiros e Almeida:
A coleção de leques da Casa-Museu Medeiros e Almeida é constituída por mais de duzentos leques – entre os quais se encontram leques chineses e europeus, ventarolas, leques brisé, leques cabriolé, etc. – dos quais só três estão em exposição permanente (dois no Quarto e um na Sala do Lago).
Devido à impossibilidade de, neste momento, ter o grosso da coleção em exposição permanente, ou de realizar uma exposição temporária de maiores dimensões, e devido aos constantes pedidos por parte do público da Casa-Museu de dar visibilidade a esta parte do nosso espólio, optamos por criar núcleos temáticos e, através de pequenas mostras, ir dando a conhecer este fabuloso conjunto de leques.
O que é um leque?
Dado a variedade de formas, tamanhos, materiais e usos que o leque tem adquirido ao longo da história, torna-se difícil definir o que é um leque. De forma geral o leque é um objeto que serve para oferecer frescura através da movimentação do ar, mas também serve para afastar insetos, resguardar os olhos do sol, esconder a cara dos olhares indiscretos, atiçar o lume, etc. O leque foi usado como objeto de culto – como no caso do flabelum, leque usado na liturgia cristã durante a eucaristia, ou em missas solenes ou procissões papais –, mas também como objeto de sedução, desenvolvendo-se toda uma linguagem de leques usada pelas damas no século XIX, ou como símbolo de nobreza e requinte.
No Oriente o leque servia para mostrar o estatuto de um oficial e foi inclusivamente usado como arma, mas também podia indicar estoicismo; os condenados quando caminhavam para a sua execução abanavam vigorosamente um leque. Hoje em dia o leque é mais usado como elemento decorativo, como adorno, ou como objeto de coleção.
A origem do leque:
Não existe uma data ou local certo para a origem do leque, de facto, poderia afirmar-se que o leque, entendido como objeto que serve para movimentar o ar, existe desde que existe o Homem. Os primeiros leques seriam simplesmente grandes folhas ou plumas com que as pessoas se abanavam.
Conhecem-se representações de leques em peças egípcias de 3000 a.C., sabe-se que na China o leque é uma tradição milenária e que gregos, etruscos e romanos também usaram leques desde muito cedo. É provável que tenha havido uma origem paralela do leque no Oriente e no Ocidente, sendo que no Oriente a sua evolução deu lugar a novos usos e formas que se estenderam rapidamente pela Europa a partir do século XVI. Sendo que a verdadeira origem do leque é muito disputada e incerta, surgiram ao longo do tempo diversas lendas e mitos a ela associados. Segundo a mitologia clássica Cupido, deus do Amor, teria furtado uma asa a Zéfiro, deus do vento, para poder abanar e refrescar Psique, a sua bela amada, enquanto esta dormia.
A versão chinesa une a origem do leque com a figura de Kan-Si, bela donzela filha de um poderoso mandarim que, durante um baile, tirou a máscara incomodada com o calor e, como estava proibido que a filha de um alto funcionário mostrasse em público a sua face, serviu-se desta para se abanar e, ao mesmo tempo, cobrir o rosto, tendo o seu gesto sido imitado pelas outras damas. No Japão conta-se que, no século VII, um artesão da corte do Imperador, uma noite de primavera, observou o voo de um morcego e, fascinado pelo mecanismo das suas assas, decidiu copiá-lo fabricando assim o primeiro leque dobrável.
O leque ‘mandarim’:
Os leques aqui expostos são os chamados leques mandarim, também conhecidos como ‘leques de cabecinha’, leques ‘China trade’, leques de ‘Cantão’ ou leques das ‘cem’ ou das ‘mil faces’ (esta última designação provém duma má tradução do chinês em que cem e mil fazem referência a numerosas caras e não ao número concreto). Existem registos de leques mandarim já em finais do século XVIII, mas será em meados do século XIX quando, no seio do prolífico comércio de exportação entre a China e a Europa, que estes atingem maior popularidade, continuando a ser exportados até finais do século, mas de forma geral, com menor qualidade.
A designação ‘mandarim’ faz referência ao título dado na antiga China aos altos funcionários, sendo que existiam duas categorias; a civil e a militar, cada uma das quais dividida em nove graus. Aplicado a peças chinesas, o termo ‘mandarim’ foi provavelmente usado pela primeira vez por Albert Jacquemart (1808-1875), famoso colecionador francês de cerâmica oriental, para descrever peças de porcelana de exportação decoradas com figuras de mandarins em painéis rodeados de flores. Da porcelana o termo passou a ser utilizado também para denominar este tipo concreto de leques, por terem uma decoração semelhante.
Os leques mandarim caracterizam-se por ter a folha decorada, normalmente em ambas as faces com pinturas de movimentadas cenas da vida de corte e do quotidiano chinês, em cores fortes – nomeadamente tons de azul, rosa fúcsia e verde -, nas que se representam, com grande pormenor, figuras chinesas em interiores ou exteriores – jardins, varandins, pagodes –, que muitas vezes utilizavam leques em sinal de distinção. A cena é geralmente rodeada por uma moldura com motivos simbólicos similares aos da porcelana da chamada ‘família rosa’, nomeadamente borboletas e flores. Para criar um efeito tridimensional e decorativo, as caras das figuras eram pequenas aplicações em marfim – de aí o nome de ‘leques de cabecinhas’ ou das ‘mil caras’ – e as roupas aplicações de seda.
A armação destes leques pode ser em diversos materiais – dos quais a coleção da Casa-Museu Medeiros e Almeida tem uma boa representação -, desde madeira lacada a preto, dourado ou vermelho, até marfim ou sândalo esculpido ou vazado, filigrana de prata esmaltada, madrepérola gravada, tartaruga, etc. Normalmente estas peças eram vendidas dentro de caixas lacadas a preto e decoradas a dourado, com o interior forrado a seda e papel de arroz pintado, geralmente com pássaros e flores.
O leque mandarim surge como uma combinação dos estilos anteriores dos leques de exportação – como os brisé decorados com figuras chinesas em jardins e pavilhões -, da porcelana – nomeadamente a porcelana da ‘família rosa’ – e dos rolos de pintura, como por exemplo o motivo “Spring morning in the Han Palace”, famosa pintura de finais do império Ming muito copiada.
Os ‘leques de cabecinha’ eram feitos quase exclusivamente para exportação. A partir do principalmente do porto de Cantão, chegavam em grandes quantidades à Europa devido ao seu baixo preço, uma vez que eram executados em materiais menos dispendiosos. Eram muito apreciados pelos ocidentais que encontravam no exotismo das vestimentas, penteados, arquiteturas e cenários representados nestas peças, o deleite que, naquela época, provocava tudo o que era chegado do Oriente. Ironicamente estes leques são um bom exemplo do gosto europeu e da influência da técnica da pintura ocidental – nomeadamente da perspetiva -, que tinha chegado à China em finais do século XVII através dos Jesuítas.
Existem também ventarolas com o mesmo tipo de decoração que os leques mandarim, porém, dado que as ventarolas ou “cobre-faces” gozaram de menor popularidade no Ocidente do que os leques dobráveis, e eram normalmente fabricadas para o consumo interno, são mais raros os exemplares de ventarolas mandarim.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
BIBLIOGRAFIA:
AMARO, Ana Maria (coord.); Da Folha de Palmeira à Peça de Museu – O Leque Chinês, Lisboa: Missão de Macau em Lisboa, 1999
GOSTELOW, Mary; The Fan, Dublin: Gill and Macmillan Ltd., 1976
meados séc. XIX
China, Cantão
Marfim, laca, tartaruga, sândalo, madrepérola, filigrana de prata, seda e papel pintado Campo decorado com cenas de interior em que os personagens têm as cabeças em marfim pintado e os trajes em seda ou pintados