A decoração no corpo da jarra, numa pintura policromada muito cuidada e de qualidade, representa diversa simbologia budista com predominância de desenvolvidas flores de lótus envoltas em elegante folhagem que se espalham por toda a superfície, bem como objetos auspiciosos como morcegos, limões “mão de Buda”, cogumelos mágicos e suásticas.
No bojo da peça destaca-se uma representação de uma flor de lótus, envolta em rica folhagem, cujo botão é encimado por um cogumelo mágico. Encimando esta composição, destaca-se um grande morcego de asas abertas, por sua vez encimado por um limão “mão de Buda” envolto em folhagem. Entre a folhagem pequenas flores de lótus apresentam-se secas, com as típicas cabeças de sementes ou em botão sendo que este foi substituído por limões de Buda. No arranque do pescoço surge uma cruz suástica pintada a dourado. A decoração repete-se no lado oposto.
O centro do gargalo é interrompido por uma rara faixa relevada, de fundo amarelo – a cor exclusiva da família imperial na cultura tradicional chinesa -, decorada com flores de lótus e enrolamentos vegetalistas, ladeada por frisos de elementos trifólios. A faixa repete-se no bocal, delimitada por friso de grega, estreitando a abertura, numa tipologia fora do comum.
A base e bordo da peça são delimitados por friso em rouge de fer, pintado a ouro com enrolamentos vegetalistas.
A jarra tem um original pé, sem vidrado, mais alto que o limite dos joelhos das figuras, pelo que estas têm a particularidade de não assentarem diretamente no chão. A peça assenta numa base de madeira huali recortada, onde encaixa o referido pé (em vez de assentar como é costume). De lado, a base forma dois morcegos, onde assentam milimetricamente os joelhos das figuras.
No fundo, pintada na base da peça, está a marca do reinado de Qianlong, escrita na forma de selo arcaico – zhuanshu. Apesar das marcas serem habitualmente em escrita regular – kaishu – o reinado de Qianlong privilegiou a forma de selo, de linhas direitas, inspirando-se nos bronzes arcaicos grande referente estético deste reinado.
Apesar de a peça poder simplesmente ter funções decorativas, a sua tipologia e o grande peso, fora do comum, podem indicar tratar-se de algum tipo de suporte, possivelmente para pequenos pendões ou bandeiras.
Simbologia budista auspiciosa
Flor de lótus – he / lian – a flor sagrada é um dos oito símbolos auspiciosos do Budismo (ba jxiang) sendo símbolo de pureza e perfeição pois nasce da lama tornando-se numa flor perfeita, tal como Buda nasceu para o mundo mas viveu acima dele e das suas misérias. A flor de lótus é igualmente o trono de Buda e quando representada como símbolo sagrado é figurada entrelaçada em folhagem (como é o caso na jarra da Casa-Museu), que representa o halo sagrado ou os raios que emanam da flor mística. O lótus é também sagrado para os taoistas já que é o emblema de um dos oito imortais; a deusa Xi Wang Mu.
Cogumelo mágico – linghzi – é o fungo sagrado, símbolo da imortalidade pois, quando seco, dura muito tempo. É considerado pelos Taoistas como a comida dos imortais.
Morcego – fu – o morcego é o símbolo da felicidade e alegria.
Limão “mão de Buda” – foshou – uma variante de limão cujo fruto desenvolve uma espécie de dedos cuja posição se assemelha à mão de Buda com o indicador e o mindinho a apontarem um para o outro. Simboliza a felicidade sendo oferta recorrente nos altares do ano novo. O seu maravilhoso cheiro é considerado como espanta espíritos. Combinado com um morcego – fu – símbolo também da felicidade, significada desejos de muita felicidade.
Suástica (posição invertida) – wan – conhecida na China desde o Neolítico, representava o trovão e a água. Como símbolo budista, foi importada da Índia e representa o “coração de Buda”, resignação de espírito, toda a felicidade que a Humanidade merece e a longevidade.
Iconograficamente, a peça é pois decorada com simbologia budista e auspiciosa chinesa, decoração exclusivamente associada à corte imperial chinesa, fervorosos seguidores da religião, centrando-se nas ideias de felicidade, de desejos de boa sorte e de longevidade.
Em relação à figuração dos ocidentais, tudo indica que estes estão representados numa atitude de prestação de tributo ao imperador já que suportam a enorme jarra e se encontram de joelho no chão parecendo fazer menção de a oferecer ao monarca. Esta ideia é ainda transmitida pela diferença de proporções entre o objeto que é oferecido e as figuras humanas, já que a jarra é significativamente maior que os dois homens que são assim minimizados na sua importância versus a presença do imperador do Império do Meio.
Por outro lado, a marca na base da peça vem confirmar a ideia de realização para o mercado interno do entorno imperial, já que somente estas peças assim eram marcadas.
Perante os argumentos apresentados, concluímos pois que esta é uma peça de produção rara (que se encontra em excelentes condições), apresentando grande qualidade técnica e decorativa que terá sido realizada para o mercado doméstico Chinês, muito provavelmente para o entorno imperial.
A representação de europeus
A partir do reinado de Kangxi (1662-1722) dá-se a introdução da temática de cenas europeias pintadas na porcelana da China bem como a produção de figuras representando europeus, moldadas em figuras de vulto. Estas peças, inspiradas em fontes gráficas que começavam a circular pelo país, como gravuras e desenhos dos séculos XVI a XVIII, tinham como destino o mercado de exportação europeu. Eram conhecidas como “Chine de Commande”
Apesar da produção das estatuetas se ter desenvolvido mais em meados do século XVIII, em finais do séc. XVII, inícios do séc. XVIII (c.1690-1730), foram produzidas estatuetas representando pequenos grupos de europeus, normalmente em porcelana branca de Dehua (fornos da província de Fugian), conhecida como “blanc de Chine”. Estes conjuntos são de pequena dimensão, mas os europeus identificam-se perfeitamente pelos seus chapéus tricórnios, casacas, calções, meias e lenço ao pescoço, características que definiram a partir daí a figuração de europeus e não especificamente de holandeses, como é referido na literatura mais recuada e parece ter permanecido.
http://collections.vam.ac.uk/item/O181551/figure-unknown/
Na 2ª metade do século XVIII, os chineses começam a fazer também cópias de modelos de manufaturas de faiança e de porcelanas europeias, atestando a existência de influências de cerâmica europeia na porcelana da China, a chamada “torna-viagem”. Assim, surgem modelos de vacas de Delft, cestos de Meissen ou terrinas em forma de perdiz ou cabeça de vaca e javali provenientes de manufaturas de faiança alemãs, francesas e inglesas (a Casa-Museu possui um exemplar em forma de cabeça de javali bem como um par de gansos), bem como pequenas estatuetas (c.20/25 cm.) representando homens e mulheres europeus e casais a dançar ou de mãos dadas sobre uma base comum, que eram exportadas para a Europa onde, juntamente com outras representações de animais e objetos, decoravam a mesa aristocrática. http://www.christies.com/lotfinder/Lot/a-rare-famille-rose-european-couple-circa-5969546-details.aspx
http://collections.vam.ac.uk/item/O494296/dutch-couple-unknown/
A mais famosa figuração de europeus é um par de estatuetas de vulto inteiro, conhecido como sendo a representação do Almirante Duff e sua mulher ou o “casal Frísio” (c. 1750-80). Diederik Durven foi governador-geral da Companhia das Índias Holandesas em Batavia, a poderosa VOC, entre 1729 e 1732, no entanto não há qualquer evidência que a referida estatueta represente o casal havendo mesmo recente investigação que aponta no sentido de se tratar da representação de um casal judeu alemão em traje típico, salvaguardando os erros de interpretação possivelmente cometidos pelo artesão chinês ao copiar o protótipo europeu que lhe foi entregue para se inspirar, provavelmente uma estampa.
http://www.vanderven.com/Figure-Mrs-Duff-DesktopDefault.aspx?tabid=6&tabindex=5&objectid=662684&categoryid=0&Price=
Aquando da compra por Medeiros e Almeida, o texto do lote incluía a referência a uma peça muito rara e curiosa, pertencente na altura, à coleção da Sr.ª D. Mary Espírito Santo Silva, que representa três europeus de corpo inteiro a carregar um enorme recipiente cilíndrico, tipo selha (alt. 23 cm.), cujas figuras se assemelham às da jarra da Casa-Museu.
Esta peça, que não está identificada como representando uma oferenda ao imperador, publicada por Michel BEURDELEY (1962, p. 125), encontra-se atualmente numa coleção particular em Nova Iorque, não se conhecendo as circunstâncias da sua compra pelo colecionador português ou da sua posterior venda para a referida colecão norte americana.
A floreira foi publicada no livro “Porcelanas da China – Colecção Ricardo do Espírito Santo Silva”, editado pela FRESS em 2000 (p. 38), já com a indicação da presente localização.
NOTA: A Casa-Museu agradece as informações prestadas pela Dra. Cláudia Lino, conservadora da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, Lisboa.
A representação de cenas com prestadores de tributo ao imperador aparece ocasionalmente em decoração de peças de porcelana, em rolos de pintura e é inclusive conhecido um conjunto de 8 figuras de marfim (Howard and Ayers, 1978), mas raramente apareciam figuras de europeus, moldadas em porcelana, pelo que estas eram um tema auspicioso, muito ao gosto do imperador Qianlong.
Apesar dos casais de europeus, animais de todas as espécies, e outros objetos que estavam à época a ser produzidos para o mercado de exportação terem os seus referentes seja em estampas que circulavam, seja em peças de faianças de manufaturas europeias que eram copiadas em porcelana na China, as representações dos prestadores de tributos não teriam certamente um referente direto em gravuras europeias, sendo por isso produto da imaginação do “diretor artístico” (possivelmente o superintendente) da manufatura – apesar de certamente baseadas em conhecimentos adquiridos na gramática decorativa europeia -, o que as torna ainda mais originais.
A curiosa taça suportada por europeus ajoelhados da Casa-Museu é pois uma peça de características únicas, na raridade da forma, na originalidade da modelação, na qualidade da decoração e da sua excelente execução que terá lugar entre as poucas produzidas com a representação de ocidentais tridimensionais, em atitude de subserviência perante um imperador estrangeiro.
Proveniência
Em 20 de Julho, 1970, a peça foi a mercado na leiloeira Christie’s (lote 69), tendo sido adquirida por comprador desconhecido, provavelmente o antiquário de Genebra, Jade Company Ltd.
Medeiros e Almeida comprou a jarra no antiquário de Mark Lewin, a Jade Company S.A., (Rue Cornavin 3), em Genebra na Suíça, a 26 de Fevereiro de 1971, pelo valor considerável de 18.000 Francos Suíços.
Uma galeria de Nova Iorque, a Chinese Porcelain Company, publicou em 2000 uma obra com registo de vendas entre 1985 e 2000 “A Dealer’s Record 1985-2000” que, na página 185, refere uma peça de tipologia semelhante à da Casa-Museu, com as duas figuras pintadas mas com a jarra sem qualquer decoração. De acordo com a publicação, a peça pertencia à época a uma coleção particular americana. Esta peça ou uma semelhante foi levada a leilão, em Setembro de 2015, na leiloeira Christie’s de Nova Iorque (lote 2251), tendo alcançado o valor de venda de 155.000USD.
Até à data, este foi o único exemplar com a mesma tipologia da peça da Casa-Museu encontrado no mercado.
Nota: A Casa-Museu Medeiros e Almeida agradece o valioso contributo de Colin Sheaf (ex-Diretor Arte Asiática da leiloeira Bonhams (Londres), Dr. Peter Lam, Institute of Chinese Studies, The Chinese University of Hong Kong, William Sargent, ex curador do Peabody Essex Museum (Salem E.U.A.) e da Professora Ching-Fei Shi da Universidade de Taiwan.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
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