Da inconstância do nome
Espreguiçadeira, preguiceiro, espreguiceiro/a, camilha, espreguiçador, espreguiçadeira e leito de dia são designações usadas indistintamente, que se referem a uma tipologia de móvel que tinha como função o repouso diurno ou seja, a sesta, costume que deveria estar muito enraizado na sociedade portuguesa uma vez que, gerou um móvel de origem nacional específico para este propósito. Esta peça fazia parte do mobiliário do quotidiano das casas nobres, como se pode comprovar pela leitura dos inventários das Casas de Aveiro, Távora e Atouguia, estudado pormenorizadamente por António de Aguiar em 1955, ou da casa de Abrantes cujo inventário de 1704, foi publicado por Maria Teresa Andrade e Sousa em 1956. De procedência incerta, o espreguiceiro poderá ser uma evolução dos móveis de repouso da Roma Antiga (lectus), estes semelhantes na forma mas multifuncionais, destinados não só ao repouso mas, também à toma de refeições.
Semelhante aos leitos, o “espreguiceiro” diferenciava-se destes pelo facto de se apoiar sobre oito pernas e de não ter resguardo aos pés, apresentando (nos exemplares mais antigos) um estrado em couro ou em palhinha e nos mais recentes colchão, fruto da evolução no sentido do conforto, podendo ainda ter o espaldar, reclinável através de um sistema de correntes que permitia incliná-lo em diferentes graus.
Embora em Portugal os diversos autores refiram indistintamente as várias designações, no Brasil parecem existir algumas disparidades na designação empregue: Tilde Canti (O Móvel no Brasil – origens, evolução e características) refere que o preguiceiro (“…tanto em Portugal como além Atlântico”) se destinava à sesta, prática também corrente no Brasil, distinguindo no entanto, este da “camilha”. Para esta autora, o primeiro designava os leitos de repouso diurno feitos em madeira e com estrado de couro, com seis ou oito pernas, enquanto que aquelas, embora mantendo a mesma função, eram feitas de madeira com estrado em palhinha, apresentando apenas quatro pernas.
No entanto, no início do século XVIII, “banco preguiceiro” podia também designar o assento colectivo com origem nos bancos de átrio do século anterior e que posteriormente evoluiu e se passou a designar por “canapé” (com espaldar e braços).
Subsistiu também, uma outra tipologia (de que o Palácio Nacional de Queluz possui um exemplar) que não apresenta espaldar, apenas o estrado em madeira e couro.
Ainda no final do século XVII, aparecem os bancos cujo espaldar é reclinável (através de um sistema de cremalheira) como no exemplar existente na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, em couro com pregaria e seis pernas em madeira torneada. Da simplicidade deste exemplar, no século XVIII, a tendência será para a evolução a par dos leitos, surgindo então, o designado espreguiceiro com espaldar que segue as características estilísticas dos leitos em toda a estrutura de madeira. O espaldar só em madeira, em madeira e couro ou madeira e seda passa a reflectir o gosto (barroco) e o estilo vigente: D. João V, D. José e (já mais raramente) D. Maria, dada a tendência para o desaparecimento do preguiceiro em finais do século e a sua substituição por móveis de carácter mais feminino como a marquesa ou a chaise-longue.
Se, no início do século XVIII a preferência do gosto era dada ao móvel entalhado e dourado, com o decorrer do século, esse gosto (e necessidade) altera-se. Dos entalhados exuberantes volumosos e simétricos, em meados do século a predilecção vai para o mobiliário entalhado com decoração assimétrica, em madeira exótica vinda sobretudo do Brasil. A esta alteração não terá sido alheia a pragmática de D. João V, publicada em 1749 com o objectivo de disciplinar os gastos em luxo e que proibia o uso de dourados e prateados no mobiliário excepto nas molduras de espelhos, painéis, placas e pés de bufetes, não se podendo também dourar / pratear o interior das casas.
Esta pragmática virá a ter como consequência o aprimorar do entalhamento que atinge o auge no período D. José (talha baixa, motivos florais e vegetalistas, concheados, mais discretos e menos volumosos que no período de D. João V), pernas curvas com joelhos menos salientes do que na época anterior, pé de garra e bola no início e em cachimbo (mais de influência francesa), aros recortados e ondulados, decorados por concheados de talha pouco proeminente, cabeceiras com recortes para embutir almofadado forrado a seda fazendo conjunto com a colcha, tal como no espaldar do preguiceiro da Casa – Museu. As madeiras eleitas são as exóticas vindas do Brasil como o pau-santo, jacarandá, vinhático, Sebastião de Arruda, Gonçalo Alves, pequiá, e pau-cetim embora, também pudessem ser usadas madeiras indígenas como a nogueira.
Couro lavrado
De produção portuguesa ou de importação, o aproveitamento do couro em mobiliário fazia – se em Portugal já no século XVI cobrindo assentos, estrados e paredes de alvenaria, tornando desta forma mais cómodo o ambiente doméstico. No entanto, o seu uso só se vulgariza a partir do século XVII, em particular nos móveis de assento, revestindo tanto espaldares como assentos, a esta alteração de gosto não terá sido indiferente a dinastia filipina e a presença espanhola em Portugal entre 1580 e 1640, visto o seu uso em Espanha por via da influência árabe, há muito se praticar.
Ao constituir-se o couro como uma das principais características do mobiliário de assento neste período, foi natural a transposição do seu uso para o móvel de repouso (diurno).
Consequência desta maior utilização, a produção de couros portugueses aumenta ao longo de todo o século XVII. Na 1ª metade do século XVIII, o gosto persiste no mobiliário D. João V prolongando-se até ao período D. José, passando a recorrer-se também, à importação de couros vindos do Brasil, onde a produção se tinha entretanto iniciado, fornecendo matéria-prima tanto à Metrópole como localmente.
Os primeiros sinais de decadência do seu uso, começam a ser dados ainda no período de D. José, quando os estofos em seda e posteriormente em palhinha começam a surgir, trazendo maior comodidade ao mobiliário, tendo sido o couro progressivamente preterido.
Ao adaptar-se bem às necessidades e exigências do mobiliário (em particular de assento) o couro dadas suas características de resistência e flexibilidade, tornou-se um material de eleição para este fim, ao ser um material que permitia ser decorado.
Da inicial simplicidade ornamental do século XVII e do uso do couro não decorado, a tendência será para a complexificação decorativa, acompanhando o gosto da época, que se altera com o passar do tempo, passando este a ser lavrado com diversos ornamentos que podem ir dos que ainda apresentam reminiscências renascença até aos barrocos. Meninos ladeados por vasos floridos tornam-se dos motivos mais populares que cobriam os espaldares de couro (ainda no século XVII) mas também, as cercaduras de enrolamentos, os acantos, as asas de morcego a emoldurarem brasões se irão progressivamente impor.
As técnicas decorativas eram variáveis, sendo as mais populares a do couro lavrado e a do couro gravado. No lavrado o desenho (feito a partir de papel) é passado a lápis para o couro (que deve estar húmido, para ser mais maleável), marcado depois com estilete e finalmente aberto com lâminas específicas para o efeito. No couro gravado são usados punções metálicos com diferentes decorações que são “impressas” através de percussão no couro sendo comum a associação destes dois métodos.
Existe ainda o couro moldado no qual o desenho é “impresso” através de um molde (em madeira ou metal) sobre o qual o couro é aplicado húmido, adquirindo a forma do mesmo ao secar. O repuxado é feito a partir do avesso com estiletes que ao serem empurrados vão criando altos-relevos na superfície exposta.
Após a decoração, procedia-se ao tingimento da pele, tendo havido uma predilecção por cores como o preto e o castanho atamarado (cor de tâmara). Finalmente, era encerado com cera de abelha. Aquando da aplicação, era reforçado com uma entretela de linho designada por holandilha.
A partir de meados do século regista-se uma tendência para o desaparecimento da utilização do couro tanto em móveis de repouso como de assento, sendo progressivamente substituído pelo estofado de seda e /ou pela palhinha, o que veio a conferir maior conforto tanto aos móveis de assento como aos de repouso, acontecendo o mesmo também, no medalhão do espaldar dos preguiceiros que progressivamente irá surgir nestes dois materiais.
O couro que reveste a espreguiçadeira da Casa – Museu é lavrado, gravado e repuxado sendo decorado por cercadura de enrolamentos, volutas e folhagem, com medalhão assimétrico ao centro.
A espreguiçadeira da Casa-Museu integra-se plenamente nas características atrás referidas do período D. José. Executada em pau-santo entalhado, apresenta cabeceira constituída por espaldar ligeiramente inclinado, recortado formando cartela central forrada a seda e por prumadas levemente onduladas rematadas por pináculos concheados. Cachaço recortado e vazado, ornamentado por volutas em forma de C. O barramento (ou ilhargueiros) ondulado, recortado apresenta concheado entalhado. Assenta sobre oito pernas curvas, esquinadas com joelho entalhado e pés de cachimbo ornamentado por folha de acanto. Parafusos de armar em bronze dourado. Estrado em couro lavrado formando cercadura de motivos rocaille com folhagem estilizada em curva e contracurva, volutas em C. Medalhão central assimétrico (seguindo a estética rocaille) com os mesmos motivos.
Proveniência:
Desconhecendo-se a sua origem, foi adquirida em 1972, por 150.000 escudos, no leilão da Soares e Mendonça, dos bens que Diniz Bordalo Pinheiro (1892 – 1971) possuía na sua quinta da Penha Longa. O preguiceiro constituiu a imagem da capa deste leilão; tendo a sua venda sido objecto de notícia d’ A Capital de 2-12-1972, que referia que: “Dormir como D. José custa 150 contos… [e que] o comprador quis manter o anonimato”. De notar que o jornalista se refere ao preguiceiro como caminha e não como camilha tal como (correctamente) aparecia no catálogo da leiloeira.
Dinis Bordalo Pinheiro nasceu em Lisboa a 25-04-1892, tendo falecido na mesma cidade em 18-01-1971. Teve uma vida profissional heterogénea ao ser jornalista e administrador de empresas.
Trabalhou como secretário para a delegação de Paris da Casa Henry Burnay, foi director /administrador do Jornal do Comércio e Colónias, tendo dirigido várias outras publicações, tendo sido também, presidente do Conselho de Administração da Companhia de Combustíveis do Lobito. Assumiu ainda, o cargo de procurador à Câmara Corporativa e membro do Parlamento entre 1935 e 1938.
No final de 1972, os seus bens foram leiloados e a sua quinta da Penha Longa em Sintra vendida.
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
Canti, Tilde – O Móvel no Brasil – origens, evolução e características. FRESS / Agir, Lisboa / Rio de Janeiro, 1999
Ferreira Maria João – Ecos de hábitos e usos nos inventários: os adereços têxteis nos interiores das residências senhoriais lisboetas seiscentistas e setecentistas in: A CASA SENHORIAL em Lisboa e no Rio de Janeiro: Anatomia dos Interiores, Lisboa, 2014
Freire, Fernanda Castro – Mobiliário, móveis de assento e repouso. FRESS, Lisboa, 2001
Nascimento, J.F. da Silva – Leitos e camilhas portugueses, subsídios para o seu estudo. Ed. Autor, Lisboa, 1950
Pereira, Franklin – O couro lavrado no mobiliário artístico de Portugal, Lello Editores, [s/l], 2000
Pinto, Maria Helena Mendes – Móveis in Artes Decorativas Portuguesas no Museu Nacional de Arte Antiga séculos XV / XVIII, Lisboa, 1979
Proença, José António – Mobiliário da Casa-Museu Anastácio Gonçalves, I.P.M. Lisboa, 2002
Sousa, Conceição Borges de – Normas de Inventário Mobiliário, I.P.M., Lisboa, 2004
Aguiar, António de – Mobiliário Portuguesa do século XVIII, achega para o seu estudo, in separata da revista Ocidente, vol. XLVIII, Lisboa, 1955
Webgrafia
http://app.parlamento.pt/PublicacoesOnLine/OsProcuradoresdaCamaraCorporativa%5Chtml/pdf/p/pinheiro_dinis_de_melo_manuel_bordalo.pdf
Desconhecido
3º quartel Séc. XVIII
Portugal
Pau – santo, couro, bronze, tafetá de seda
Comp. 202cm. x Alt. 165cm. x Larg. 104,7cm.