Par de relógios de bolso suíços que pela sua decoração (representação oculta em esmaltes polícromos e cena autómata também escondida) se enquadram dentro dos chamados relógios eróticos, muito em voga durante os séculos XVIII e XIX.
Relógios eróticos
Fabricados essencialmente em Inglaterra, França e Suíça, é difícil fixar com exatidão a data dos primeiros relógios eróticos, que aparecem provavelmente em meados do século XVII com a encomenda de incluir nos relógios – gravadas ou pintadas em esmalte – cenas em miniatura de natureza despudorada. Nestes primeiros relógios recorre-se a temáticas mitológicas ou campestres para justificar a representação de personagens semidespidas, mas rapidamente estas darão lugar a cenas mais explícitas de claro cariz sexual, à base de esmaltes polícromos ou gravados de grande pormenor.
A chegada do Iluminismo e a difusão durante a segunda metade do século XVIII dos escritos de Choderlos de Laclos (general do exército francês e autor do romance “As Ligações Perigosas”, para muitos considerado a obra-prima da literatura erótica ocidental) ou do Marquês de Sade (aristocrata francês e escritor libertino, autor de, entre outros, “Os 120 dias de Sodoma”) criaram na Europa o ambiente propício para a difusão deste tipo de relojoaria erótica entre as classes mais abastadas. Os relógios eróticos, com todo o que de coquete e provocação representavam, eram os objetos perfeitos para uma época na qual a graça, o galanteio e a frivolidade governavam parte da sociedade. Para além dos relógios fabricados para o mercado europeu, muitos destes relógios eram realizados para exportação, nomeadamente para o mercado chinês, tendo as peças mais luxuosas como destinatários o Imperador e a sua corte.
Em meados do século XVIII, o relojoeiro suíço Pierre Jaquet Droz (1721-1790) conseguiu adaptar e aperfeiçoar os mecanismos autómatos usados nos grandes relógios públicos (os famosos jacquemarts) criando delicados pássaros cantores para caixinhas de rapé. O passo seguinte era conseguir inserir este tipo de máquinas nos relógios de bolso de modo a criar galerias de personagens que se movimentavam com a ativação do mecanismo de repetição. Estos autómatos eram habitualmente figuras em metal dourado sobre fundos gravados ou esmaltados, o que requeria a cooperação dos relojoeiros com joalheiros e esmaltadores. Rapidamente foram óbvias as vantagens destes mecanismos aplicados aos relógios eróticos, o que permitia dar maior vivacidade às cenas libertinas idealizadas, aproveitando a cadência dos martelos de repetição para simular movimentos sexuais.
Nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, os relógios eróticos eram muito populares entre as elites, sendo a combinação perfeita entre ciência, arte e pensamento libertino. Alguns dos grandes relojoeiros da altura, como Abraham-Louis Breguet, fizeram incursões na fabricação deste tipo de relógios. Esta moda, como era de esperar, não foi bem acolhida pela igreja, sendo muitas vezes censurada em França ou Inglaterra e chegando a, em 1817, ser proibida a fabricação e venda de relógios eróticos em certas regiões da Suíça, nomeadamente nos cantões de Genebra e Neuchâtel, onde as peças já existentes foram destruídas sistematicamente. O facto de em muitos destes relógios a cena de caracter mais explícito estar escondida – na parte traseira do relógio ou disfarçada por trás de uma tampa -, permitiu que alguns escapassem à censura e que o usuário pudesse usar o relógio publicamente de um modo discreto. Além disso, a ocultação e a dupla “funcionalidade” destes modelos eram em si próprio um fator lúdico e de ampliação do jogo de sedução.
Na transição dos relógios de bolso para os relógios de pulso os relógios eróticos desapareceram. Por um lado a temática já não era novidade e perdera grande parte do fator irreverente das décadas anteriores; por outro lado, no caso dos autómatos eróticos, o mecanismo era difícil de adaptar e integrar no espaço reduzido dos relógios de pulso. Após anos relegados a objetos de colecionismo, os relógios eróticos ressurgiram na década de 90 do século passado, pela mão de firmas como a Blancpain, à qual se seguiram muitas outras marcas, algumas ligadas à relojoaria de luxo e outras criadas especificamente para este nicho de mercado que se revelou uma vez mais muito rentável.
Conversation pieces
Quem comprava relógios eróticos? Qual era o público para este tipo de peças? Embora muitas das cenas representadas nestes relógios possam ser hoje em dia consideradas muito ingénuas e até caricaturescas, na altura em que foram feitas representavam todo um salto na escala de valores morais e de decência numa sociedade que, embora embebida do Iluminismo do Século das Luzes, também se tinha de confrontar com a austeridade Protestante (o que em certas alturas acabaria por promover um certo anticlericalismo que levou a que os protagonistas de muitos deste relógios eróticos fossem precisamente padres e freiras).
Existem diversas teorias sobre quem seriam na Europa os destinatários destes relógios, sendo possível que várias destas situações convivessem em determinada altura de forma simultânea. Em Inglaterra os relógios eróticos são muitas vezes referidos como “conversation pieces”, peças de conversa, já que serviam como desculpa para diálogos mais apimentados em ambientes aristocráticos, ou como objetos de entretenimento e escândalo durante os faustosos jantares da época. Há autores que afirmam que estas peças eram oferecidas aos jovens casais de noivos ou, numa outra variante, eram presentes dados às mulheres pelos seus pretendentes mais ousados. Há quem pense que os relógios eróticos derivaram da altura em que os fuzileiros navais da Royal Navy teriam os retratos das suas esposas gravados nos relógios de bolso de forma a poderem levá-las consigo nas suas deslocações, evoluindo posteriormente para representações cada vez mais irreverentes.
Por outro lado não podemos esquecer que grandes quantidades destes relógios eram fabricados para o mercado oriental sendo comercializados principalmente através de Inglaterra. É frequente encontrar nestes exemplares as assinaturas não dos fabricantes mas dos agentes comerciais e casas de venda. Muitos dos relógios eróticos que podemos encontrar hoje em dia em leilões e antiquários em Europa foram originalmente enviados para a China e acabaram por regressar para a Europa durante a guerra dos Boxers e após o assalto ao Palácio de Verão de Pequim em 1911. [Mais informação sobre relógios para o mercado chinês em: http://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/ponteiros-retracteis/].
Os relógios eróticos da Casa-Museu
Existem na coleção da Casa-Museu Medeiros e Almeida dois exemplares dos chamados relógios eróticos em exposição (existindo um terceiro em reservas); as duas peças expostas são representativas de duas épocas e de duas correntes específicas: os relógios eróticos com representações libertinas estáticas (nomeadamente em esmalte) e os relógios com autómatos que permitiam a passagem das pinturas imóveis a animadas cenas em movimento.
Relógio de bolso erótico [FMA 7745 – Vitrina 2, nº20]
Suíça, ca. 1810
Prata, esmalte, metal e vidro
Diam. 5,6 cm. / Peso 109,5 gr.
Relógio de bolso em caixa de prata ao qual falta o vidro protetor. Na face, em latão dourado guilhochado, três medalhões de prata repuxada e um pequeno mostrador. No mostrador, esmaltado a branco, as horas aparecem assinaladas a preto em numeração árabe e os minutos através de finos tracejados e pontos numa circunferência exterior. Os ponteiros, muito rudimentares e sem qualquer decoração, são de latão dourado.
Em cada lado do mostrador sendos medalhões ovais com representações de cupidos: o da direita segura um coração na sua mão esquerda enquanto o da esquerda tem aos pés uma aljava. No terceiro medalhão, circular e de maior tamanho, uma Vénus de peito descoberto, sentada numa paisagem de jardim, com um cupido, também sentado, aos seus pés. Na verdade esta última placa é uma tampa que, quando aberta, revela um esmalte polícromo que representa uma cena íntima com um casal.
No centro do mostrador assinatura falsa de “Breguet et Fils”. Nesta época, era habitual o aproveitamento com fins comerciais da reputação dos grandes nomes da relojoaria de finais do século XVIII – como Abraham-Louis Breguet, Julien Le Roy, Jean-Antoine Lépine ou Ferdinand Berthoud – utilizando fraudulentamente as suas assinaturas. A relojoaria suíça foi especialmente habilidosa neste sentido, procurando sempre responder aos gostos e interesses da sua clientela.
Relógio de corda e fuso, escape de reencontro, oscilador de balanço e espiral plana.
Este relógio, juntamente com outros, foi adquirido a 7 de Outubro de 1979 por António de Medeiros e Almeida na Galerie d’Horlogerie Ancienne, em Genebra.
Relógio de bolso erótico [FMA 7729 – Vitrina 6, nº17]
Suíça, ca.1900
Ouro, esmalte, metal e vidro
Diam. 5,3 cm. / Peso 127,5 gr.
Relógio de bolso em caixa dupla de ouro liso. Mostrador de esmalte branco, com as horas a preto em numeração romana, os minutos marcados por pequenas listas, pontos e losangos, e os segundos em marcador subsidiário com numeração árabe. Os ponteiros, em formato pera, em aço azulado.
Na parte posterior, uma tampa oculta uma cena íntima entre um casal num interior ricamente decorado. A representação, muito pormenorizada, joga não só com a tridimensionalidade criada pelas figuras e a mobília em relevo contra um fundo gravado, como com as diferentes tonalidades do metal (dourado, prateado e bronze). Na verdade trata-se de um mecanismo autómato que ao ser acionado a pedido dá lugar à movimentação rítmica da figura masculina, numa sugestiva encenação do ato sexual.
A caixa deste relógio é a chamada caixa savonnette ou hunter-case, com tampa protetora de mola que protege o vidro e o mostrador do pó e de possíveis riscos. Neste tipo de caixa o pendente e a coroa estão situados no eixo das três horas (e não nas doze como é habitual nos relógios Lépine), enquanto o mostrador subsidiário está situado nas seis horas.
Relógio de corda, escape de âncora, oscilador de balanço e espiral Breguet.
Não se conhece a proveniência deste exemplar.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
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GUYE, S. & MICHEL, H., Time & Space. Measuting Instruments from the 15th to the 19th Century, Londres, Pall Mall Press, 1971
HAYARD, M., Chefs-d’Ouvre de l’Horlogerie Ancienne, Paris, Somogy Éditions d’Art, 2004
LANDES, D.S., Revolution in Time. Clocks and the Making of the Modern World, Massachusetts, The Belknap Press of Harvard University Press, 1983
MEIS, R., Les Montres de Poche. De la montre-pendentif au tourbillon, Fribourg, Office du Livre, 1980
SABRIER, J.C., Le Guidargus de l’Horlogerie de Collection, Paris, Les Editions de l’Amateur, 1982
Webgrafia
CHEN, V., Erotic pocket watches and wristwatches can be a good investment in the long run
HOFFSTETTER BÂLE, M., L’erotisme au bout des aiguilles de montres
https://www.tdg.ch/economie/erotisme-aiguilles-montres/story/25278107
PENEAU, M., Blancpain les montres érotiques, 2007
http://uptime.mensup.fr/thema/exception/a,86055,blancpain-les-montres-erotiques.html
SEABRA, M., Relojoaria erótica: Hora de ponta, 2016
http://espiraldotempo.com/2016/08/24/relojoaria-erotica-hora-de-ponta/
FMA 7745 - Desconhecido / FMA 7729 - Desconhecido
FMA 7745 - ca. 1810 / FMA 7729 - ca. 1900
FMA 7745 - Suíça / FMA 7729 - Suíça
FMA 7745 - Prata, esmalte, metal e vidro / FMA 7729 - Ouro, esmalte, metal e vidro
FMA 7745 - Diam. 5,6 cm. ; Peso 109,5 gr. / FMA 7729 - Diam. 5,3 cm. ; Peso 127,5 gr.