Cafeteira
Paul de Lamerie (1688-1751)
Londres, Inglaterra, 1745
Prata, ébano (?)
A: 22,5cm x L: 20cm x D: 10,2cm x P: 732 gr.
De França para Inglaterra
A revogação por Luis XIV do édito de Nantes em 1685 irá provocar um êxodo dos crentes protestantes franceses (huguenotes) que assim se viam privados de liberdade religiosa e perseguidos pelo regime. Esta revogação levou ao encerramento das igrejas calvinistas, abrindo novamente espaço para a perseguição dos crentes não católicos. Centenas de milhares de franceses, muitos deles pequenos artesãos de cidades da província, partem em direcção a países de tradição protestante como a Holanda, Alemanha, Suécia e Inglaterra em busca de uma nova vida religiosa e profissional.
A Inglaterra chegam muitos destes emigrantes, vários deles após a passagem por outros países como a Holanda, tentando uma integração noutra sociedade, reforçada pela chegada e subida ao trono inglês do protestante de origem holandesa, Guilherme de Orange. Este movimento, no entanto, nem sempre foi bem aceite pois, a chegada destes novos artesãos originou a instalação de uma comunidade de ourives franceses em Londres, que era vista pelos nativos como uma nova fonte de concorrência que tentam evitar através de medidas protectoras.
A corporação dos ourives ingleses dificulta a integração laboral dos franceses, não lhes permitindo trabalhar autonomamente, obrigando-os a um período de aprendizagem de sete anos. No entanto, o novo gosto que estes artesãos traziam, agradou às elites que rapidamente começam a encomendar-lhes trabalhos o que lhes irá permitir uma ascensão e uma mudança de paradigma na execução da prata inglesa, em finais do século XVII.
A sua chegada vai pois trazer uma lufada de ar fresco na produção de prata, com a introdução de novos modelos e decorações inspiradas nos livros de ornamentos trazidos de França. Ao gosto holandês predominante ao longo do século XVII, irá paradoxalmente, visto o rei Guilherme de Orange ser de origem holandesa, sobrepor-se o francês.
Às peças relevadas de decoração florida e de caneluras, irá suceder um gosto actualizado: folhas de acanto, entrelaçados, simetrias profusamente gravadas e cinzeladas em cafeteiras, bules, chávenas, pratos, molheiras, não apenas confinados a salvas, polvilhadores, caixas (de chá, rapé, toilete) e faqueiros. Em paralelo, desenvolve-se uma outra linha (também de raiz francesa) de peças nas quais as formas depuradas, bem proporcionadas, geométricas e sem decoração predominam, sendo muito apreciadas pelo mercado inglês, preferencial e persistentemente, mas não exclusivamente, produzidas pelos seus ourives dado que, o encomendador tinha sempre a última palavra sobre o tipo de peça que desejava.
Progressivamente no século XVIII, a decoração feita por ourives de origem francesa, terá tendência para se complicar assumindo a folhagem de acanto, as cariátides e os mascarões formas esculturais, inspiradas por livros de ornamentos de autores como Paul Ducerceau, Jean Bérain e Jean Lepautre.
Paul de La Merie
De origem francesa, Paul de La Merie (Hertogenbosch 1688 – Londres 1751) é considerado um dos principais ourives de Inglaterra no século XVIII. A sua família de tradição huguenote terá emigrado para este país como consequência da revogação do Édito de Nantes em 1685. Ignorando-se se terá ainda nascido em França, o documento mais antigo que se conhece é o seu registo de baptismo datado de 1688, em Bois-le-Duc (ou Hertogenbosch) na Holanda, em cuja igreja a comunidade francesa protestante se reunia. Como outras famílias, os La Merie terão chegado a Inglaterra depois desta passagem pela Holanda.
Em 1703 ano em que Paul inicia a sua aprendizagem como ourives, o seu pai que, entretanto, anglicizara o nome para de Lamerie, irá requerer alguns direitos de naturalização, essenciais para que o filho começasse a sua formação como aprendiz. Paul faz a sua aprendizagem durante sete anos, junto do ourives Pierre Platel também ele, de origem francesa e refugiado em Inglaterra desde 1688, considerado um excelente profissional que por isso ensinou Lamerie de forma exímia. A qualidade das suas peças garantia-lhe encomendas da aristocracia o que facilitou a posterior entrada de Lamerie no mercado de trabalho.
Após este período de aprendizagem, Paul de Lamerie manteve-se a trabalhar cerca de mais dois anos com Pierre Platel, até obter fundos suficientes para poder exercer autonomamente a profissão, estando tal mencionado na companhia dos ourives em 1713, data em que registou a sua primeira marca e estabeleceu a sua (primeira) oficina em Windmill street. A partir de 1717 adquiriu uma casa contígua onde passou a morar com a sua mulher Louise Juliott, com quem se tinha casado nesse ano, também ela originária de uma família francesa refugiada em Inglaterra.
Em 1738 mudou-se para Gerrard Street onde passou a residir e a ter oficina, não sendo de excluir a hipótese que tenha ficado simultaneamente com o espaço de Windmill street.
O trabalho de Lamerie reflecte a sua formação junto de Pierre Platel no gosto Régence, “de formas bem proporcionadas, ornamentos equilibrados e motivos arquitetónicos, cujo desenho era frequentemente baseado nas gravuras de Daniel Marot”. Lamerie introduz um gosto clássico e depurado, a partir de gravuras deste desenhador (também ele huguenote refugiado, ao serviço de Guilherme III) numa Inglaterra que desde a Restauração tinha uma prataria “florida”, de gosto holandês.
A sua permanência junto da comunidade refugiada no Soho assim como, a sua capacidade para captar novas ideias e tendências, resultaram num trabalho eclético e de sucesso, encomendado pela aristocracia para quem trabalhou regularmente. Produziu todo o tipo de peças desde terrinas, molheiras, salvas, castiçais, refrescadores, gomis, saleiros, chaleiras mas, cafeteiras e cestos tornaram-se as suas peças emblemáticas.
A sua capacidade de se actualizar mostra a evolução do seu trabalho desde o início no gosto Queen Anne simples e sóbrio pouco decorado evoluindo até às peças mais elaboradas do estilo Régence preconizando já as formas movimentadas do estilo Rococó, cujas peças lhe granjearam fama.
Os seus trabalhos iniciais produzidos até cerca de 1720, reflectem um gosto depurado consentâneo com o estilo Queen Anne, de linhas geométricas vivendo várias peças do equilíbrio da sua forma e simplicidade na qual por vezes, a decoração está praticamente ausente ou então, apenas sublinhadas por caneluras na parte inferior das mesmas. Progressivamente, faz-se sentir a influência dos livros de ornamentos de Jean Bérain e de Daniel Marot, chegados de França, que Lamerie adaptava em função do seu trabalho.
A partir do inicio da década de 20 surgem alterações nas formas com o arredondamento das mesmas, pegas em forma de voluta e decorações repuxadas e gravadas de motivos com mascarões, enrolamentos, folhagem, godrões, concheados numa antevisão do que viria a ser a qualidade e criatividade do seu trabalho no gosto Regência e posteriormente Rococó. Ao longo da década de 30, este sobrecarrega-se progressivamente destes e doutros elementos decorativos como acantos, patas de animais, videiras, mascarões, cabeças de leão, figuras, concheados, putti numa profusão decorativa, acentuando-se as curvas, assimetrias e formas, para passar a ser assumidamente rococó na década de 40.
A comunidade de ourives huguenotes mantinha relações próximas, não sendo por isso de estranhar a circulação entre vários artistas do mesmo molde, numa troca de modelos a que Lamerie também não terá estado isento. Por outro lado, era também frequente estes ourives manterem características das marcas francesas nas suas novas marcas em Inglaterra, denunciando a sua origem. Paul de Lamerie usou três diferentes ao longo da sua vida, todas elas apresentando uma coroa (característica francesa) sobre as suas iniciais: a primeira datando de 1712, a segunda de 1732 e a terceira de 1739 (a peça da casa-museu) quando todos os ourives tiveram que registar novamente as suas marcas, por decisão do Parlamento. Esta última marca apresenta as duas letras iniciais separadas por um ponto (P.L) sob uma coroa fechada.
A prata inglesa deve apresentar quatro marcas:
– letras referentes ao nome do ourives que executou a peça
– Cabeça de leopardo coroada ou não, marca aposta pela corporação (contrastaria) dos ourives de Londres, (desde 1300) atestando quem tinha certificado a peça / prata.
– Leão passante marca que certifica a qualidade da prata (925/1000) esterlina usada desde o século XIV. (Entre 1696 e 1720 a composição foi alterada para 958.4/1000, sendo nessa altura usada uma figura feminina Britannia como marca designando-se por prata britannia.)
– Letra que determina o ano em que a peça foi realizada ou marcada
Serviços de chá, café e chocolate
De criação “recente” os serviços de chá, café e chocolate, surgem da necessidade da existência de objectos adaptados às novas bebidas chegadas de outras partes do mundo, mas que entram na sociedade europeia com sucesso, alterando a sua sociabilidade. Recipientes criados para bebidas especificas surgem então um pouco por toda a Europa: cafeteiras, bules, leiteiras, chocolateiras e respectivas chávenas com pires, passam a fazer parte do quotidiano das elites.
A cafeteira mais antiga que se conhece feita em prata marcada (Inglaterra) data de 1681/2 período em que as cafeteiras apresentavam um modelo alto, esguio e afunilado com tampa de forma cónica e bico tubular, modelo predominante até ao final do século XVII. O modelo persistiu, mas com o passar do tempo, subtis alterações foram sendo introduzidas ao longo do século XVIII. Junto à base dá-se um arredondamento da forma embora esta permaneça afunilada, o bico toma a forma de um colo de cisne e a tampa preservando a sua forma cónica, apresenta agora “caneluras” moldadas. Este modelo afunilado perdura até ao reinado de Jorge II (1727 – 1760) sendo a evolução lenta para a forma de pera. No período rococó o arredondamento na parte inferior começou a apresentar profusa decoração ondulante cinzelada e gravada, seguindo as características do gosto da época. A forma arredondada da parte inferior, abriu caminho para as cafeteiras em forma de pera que passaram a dominar a partir da segunda metade do século XVIII, perdurando quase até ao seu final quando a forma de urna se impõe.
Cafeteira da Casa -Museu
A cafeteira de Paul de Lamerie que integra a colecção da Casa – Museu data de 1745, de formas simples levemente arredondada no bojo junto à base, reflecte o gosto rocaille característico do último período de produção de Lamerie, na decoração da mesma. Tanto o topo como a base são decorados por motivos cinzelados e gravados de gosto rococó: concheados, volutas, enrolamentos com acantos e frutos ondulam na superfície do bojo e pelo bico em colo de cisne também ele cinzelado e gravado num movimento característico do rocaille. A asa quebrada, em ébano (?) apresenta também um movimento ondulado. Tampa com pega em forma de pinha. O bojo ostenta gravadas as armas do terceiro duque de Beaufort, que a terá encomendado.
Sob a base quatro marcas: P.L sob coroa fechada e com um ponto por baixo, marca de Paul de Lamerie registada em 1739 e usada até à sua morte. Cabeça de leopardo coroada (contrastaria de Londres), leão passante (prata de 925/1000), letra K (correspondente ao ano de 1745).
A cafeteira foi adquirida por Medeiros e Almeida ao antiquário I. Freeman & Son (18, Leather Lane, Londres), em 1959, pelo valor de 700£, desconhecendo-se no entanto, a sua proveniência, assim como se ignora se, existem ou existiram outras peças de um conjunto de serviço de café ou de chá e café que esta pudesse ter integrado.
Henry Scudamore 3º duque de Beaufort, nasceu em 1707 e morreu em 1745. Não deixou descendência por isso, título e bens foram herdados pelo seu irmão mais novo Charles Noel Sommerset.
Henry uma referência nas artes enquanto mecenas, encomendou em 1726 (aos 19 anos), às oficinas florentinas (Opificio delle pietre dure), quando fazia o Grand Tour em Itália, o contador Badminton ornamentado com pedras duras, que pela sua dimensão e trabalho decorativo envolvido, de que se preservam os desenhos originais assim como, os documentos da sua expedição em 1732 de Livorno para Inglaterra, tornou-se num ex – libris das artes decorativas do século XVIII. Destinado à propriedade com o mesmo nome, foi mantido na família até 1990 quando foi vendido pela primeira vez, tendo sido adquirido em 2004, pelo príncipe do Liechtenstein de cujas colecções faz parte encontrando-se actualmente no seu palácio de Verão em Viena. Pode conhecê-lo aqui: http://www.liechtensteincollections.at/en/pages/artbase_main.asp?module=browse&action=m_work&sid=87294&oid=W-13122004204020813
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
Alcorn, Ellenor – Beyond the Maker’s Mark: Paul de Lamerie Silver in the Cahn collection, Cambridge, John Adamson, 2006
Grimwade, Arthur – Rococo Silver, London, Faber Faber, 1974
Hare, Susan – Paul de Lamerie at the Sign of the golden ball, 1990
Hayward, J. F. – Huguenot Silver in England, London, Faber Faber, 1959
Phillips, Philip A. S. – Paul de Lamerie citizen and goldsmith of London , a study of his life and work, A.D. 1688-1751, Cirencester, The Collector’s Book Club, 1973
Schroder, Timothy – Paul de Lamerie, London Goldsmith, The Magazine Antiques, Junho 1990, pp. 1368-1379
Schroder, Timothy – Evidence without Documents: patterns of ornament in rococo silver, Richmond Virginia
Wenham, Edward – Old Silver for Modern Settings, London, G. Bell & sons ltd, 1950
Webgrafia
https://www.christies.com/presscenter/pdf/11222004/badminton_120904.pdf
http://www.silvercollection.it/dictionarydecryptingUKsterlingmarks.html
http://www.europeanheraldry.org/united-kingdom/families/families-b/house-beaufort-and-somerset/