Os donos da casa por Henrique Medina
Retratos de António e Margarida Medeiros e Almeida
Henrique Medina (1901-1988) / Lisboa, 1974
Assinados e datados: H. Medina 1974
Óleo sobre tela
Alt.76,2cm x Larg.62,8cm (x2)
O pintor
Henrique Medina de Barros foi o mais célebre retratista português cujo talento atravessou fronteiras e oceanos. Nascido no Porto (Cedofeita) a 18 de Agosto de 1901, era filho de mãe portuguesa e pai espanhol, o pintor Pascoal Medina. Tendo herdado a veia artística paterna, aos 10 anos pintou com grande expressividade o retrato da sua avó (Minha Avó, 1911) o que lhe valeu o interesse do professor José de Brito que lhe permitiu que assistisse às aulas de desenho de gesso e de modelo vivo na Escola de Belas Artes do Porto (onde viria a ser aluno de Marques de Oliveira e de Acácio Lino) enquanto ainda frequentava o liceu.
Na referida escola realizou o Curso Preparatório de Desenho (1912-1914), o Curso de Desenho, Anatomia e Perspetiva (1915), o Curso de Desenho e Perspetiva (1916) e frequentou o 1.º ano do Curso de Pintura e Perspetiva (1917).
Em 1918 já estava a expôr num concurso da Sociedade Nacional de Belas-Artes em Lisboa, o retrato de Teodora Andressen de Abreu, com o qual ganhou o segundo prémio. Também no Porto expôs em diversos certames.
Nesta altura a sua pintura abordava, para além do retrato que virá a ser o género preponderante do seu percurso artístico, o nu, os tipos populares e a paisagem do seu Minho Natal.
Em 1919 com apenas 18 anos, patrocinado pela família Spratley, parte para Paris onde continua os estudos na École des Beaux-Arts, sendo aluno de Fernand Cormon e de Émile Bernard. Ali pinta por encomenda e expõe nos diferentes Salons tendo visto uma obra sua, o retrato do seu irmão, adquirida para o Museu do Luxemburgo em 1929 (hoje Jeu de Paume). Após sete anos mudou-se para Londres onde permaneceu 10 anos (1926-36). Chegando como ilustre desconhecido, aí acabou por estabelecer estúdio próprio, pintou a sociedade londrina e expôs na Royal Academy.
O convite para pintar em Roma o ditador Benito Mussolini em 1931 (retrato exposto no Palácio Viminale em Roma – Ministério do Interior) bem como os príncipes Orsini, o príncipe Gionanni Torloni e o Monsenhor Tonello (próximo do Papa Pio XI) consolidaram a sua fama como retratista e levam-no a vários países da Europa como País de Gales, Suécia, Dinamarca e Espanha onde pintou senhoras da sociedade, crianças, banqueiros, advogados, cientistas, escritores, políticos, embaixadores, etc.
Em Lisboa, onde manteve sempre um atelier (26, Travessa Escola Araújo – Arroios) pintou a sociedade e, ao longo dos anos, os retratos oficiais de cinco presidentes da República Portuguesa: António José de Almeida (1932), Óscar Carmona (1933), Sidónio Pais (1937), Canto e Castro (1937), António de Oliveira Salazar em 1939 e Américo Thomaz (1957). Retratou ainda o Cardeal Patriarca D. Manuel Cerejeira.
Durante a II Guerra Mundial viveu e trabalhou sete anos entre o Brasil e os Estados Unidos. No Rio de Janeiro pintou o escritor Carlos Malheiro Dias (que lhe dedicou uma publicação em 1977) e o embaixador Nobre de Melo ou o filantropo Guilherme Guinle, foi igualmente a Buenos Aires onde imortalizou o biólogo Francisco Jauregui. Nos EUA trabalhou em Nova Iorque, Washington e Hollywood onde mantinha atelier (1147, North Hudson Avenue) pintando pessoas da sociedade, artistas como a cantora e atriz Jannete MacDonald ou a soprano Galli Curcci (1945) e estrelas de cinema como Charlie Chaplin, Greer Garson (enquanto “Mrs. Parkington”) e Mary Pickford, num rol de nomes que confirmam o seu sucesso como retratista. Um magnata e filantropo de Los Angeles, William Andrews Clark Jr. contratou-o para pintar a sua família, hospedando-o na sua mansão, a esse propósito, o crítico de arte e professor da Universidade da California Quentin Rogers, escreveu na época: “There is a young artist in Los Angeles now, who many critics and connoisseurs believe, will equal if not surpass the work of the great eighteen and nineteenth century masters” – encontra-se em Los Angeles um jovem artista cuja obra alguns críticos e conhecedores acreditam ser igual senão superior às dos maiores mestres dos séculos XVIII e XIX.
Em 1974 muda-se definitivamente para a casa de família em Góios (Marinhas -Esposende) e volta a pintar a vida rural em retratos, paisagens, costumes e trajes regionais, com os quais tinha começado a sua carreira.
Em 1982 Medina retratou o Papa João Paulo II aquando da visita de Sua Santidade a Portugal. Nesse ano, o artista legou à Arquidiocese de Braga grande parte do seu espólio que se encontra hoje exposto na Galeria Henrique Medina do Museu Pio XII – Museu de Arte Sacra e Arqueologia (Seminário Conciliar de Santiago), também chamado Museu Medina em Braga: http://www.museupioxii.com/. O acervo inclui 76 obras (55 telas, 21 desenhos), toda a sua fortuna crítica, fotografias, medalhas comemorativas, cartões, etc.
A Fundação Calouste Gulbenkian dedicou-lhe uma exposição retrospetiva, em Outubro – Novembro de 1983, que reuniu cerca de 250 obras.
Medina morreu na sua casa de Góios, em 1988, aos 87 anos. O seu atelier no local encontra-se musealizado: https://www.igogo.pt/casa-museu-henrique-medina/
A sua vasta obra está representada em Portugal, entre outros no Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Museu Malhoa, na Fundação Cupertino de Miranda, na Casa Museu Egas Moniz, no Museu Grão Vasco, na Casa Museu Nogueira da Silva, no Palácio de Belém, no Palácio de Vila Viçosa e no Palácio da Bolsa no Porto. A nível internacional as suas obras expõem-se no Museu de Cádis, no Museu de Orsay em Paris, na Escola de Guerra Imperial Staff de Londres, no Castelo de Skockloster (Suécia), no Castelo de Oreby Slott (Dinamarca), no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, na Metropolitan Opera House de Nova Iorque, na Lick Foundation de São Francisco, no Museu da Metro Goldwyn-Mayer na Califórnia e no Hall of Fame de Washington, entre outros.
Nota: Ainda hoje o seu trabalho é reconhecido, veja-se o preço atingido pelo retrato do ator americano Hurd Hatfield (como Dorian Gray), vendido em 2015, em leilão da Christie’s, por 149.000 USD: https://www.christies.com/lotfinder/Lot/henrique-medina-1901-1988-portrait-of-hurd-hatfield-5875468-details.aspx
Os Retratos
António de Medeiros e Almeida foi retratado aos 78 anos, tendo posado para o artista no seu atelier em Lisboa. Está representado em tamanho quase natural, de meio corpo, de rosto e olhar virado para o espetador, de corpo ligeiramente voltado para a direita. Veste casaca de cerimónia com lenço de bolso, camisa de golas engomadas, colete e papillon brancos e ostenta duas das suas condecorações; a Ordem Militar de Cristo e a Ordem de Mérito Agrícola e Industrial. A zona inferior do torso simula estar inacabada, num apontamento de modernidade, com as mesmas pinceladas soltas do fundo, numa continuidade que emoldura a figura. O fundo é neutro, pintado com uma pincelada larga e solta em tons de castanho-esverdeado focando a atenção no personagem.
Pendente do pescoço, a fita de Comendador (Com) da Ordem Militar de Cristo (recebida em 18 de Agosto de 1941, pela sua atividade na industria automóvel) com a respetiva cruz, uma peça de ourivesaria do século XVIII em prata dourada e prata, formada por quartzos forrados por folheta a imitar granadas. A cruz é encimada por composição floral invulgarmente rica montada em prata (marcada com cabeça de velho) e cravejada com crisólitas. A tiracolo, da direita para a esquerda, a banda de Grã-Cruz (GC) da Ordem de Mérito Agrícola e Industrial – classe do Mérito Industrial (recebida em 10 de Setembro de 1969 pelos “cinquenta anos de vida industrial e comercial”), feita na Fábrica de Fitas, de Francisco Soares da Silva ao Jardim das Amoreiras, da qual penderia certamente a respetiva placa. Na lapela ostenta as placas relativas às comendas.
Margarida de Medeiros e Almeida foi retratada 3 anos após a sua morte. Tal como o marido, está representada em tamanho natural, a meio corpo, de frente, olhando o espetador. Margarida, de cabelo apanhado atrás como era seu hábito, enverga um vestido estampado com decote, traçado em cache-coeur e usa brincos e colar de pérolas comprido bem como um alfinete de peito em forma de laça tripla, uma peça em ouro, esmeraldas e diamantes da sua coleção particular, que se encontra exposta na Casa-Museu (vitrina nº2-Sala do Lago). Tal como o retrato do marido, a zona inferior do torso e braços parece estar inacabada. O fundo é igualmente discreto, pintado em tons acastanhados existindo porém a sugestão de um panejamento à laia de cortina do qual se nota um galão.
Os retratos do casal Medeiros e Almeida incluem-se perfeitamente na linha retratista de Henrique Medina; são conservadores a todos os níveis, quase académicos, só faltando o suporte do desenho. Veja-se o realismo fotográfico, o uso da paleta restrita, a penumbra dos fundos, a pose dos retratados, a escolha da sua indumentária e dos seus adornos. Por outro lado, o pintor também se revela naquilo que tinha de melhor e que lhe granjeou a fama como retratista; o poder de observação, a tradução do retrato psicológico dos seus retratados. Esta faceta é mais visível no retrato de Medeiros e Almeida já que o de Margarida mostra uma senhora sorridente, com um ar sereno, aliás como competia às esposas da época. Talvez a rigidez da boca denuncie o facto de a obra ser póstuma, já que lhe falta um pouco de expressão, de vida.
Na obra que retrata o dono da casa, a sua pose orgulhosa, muito direito, a quase frontalidade do rosto apesar da leve torção do torso, a energia da cabeça levantada, do olhar penetrante, intenso e perscrutador e do ricto da boca transmitindo seriedade, dureza e exigência, num retrato psicológico fiel da sua expressão mais íntima a retratar momentos da vida difíceis tanto a nível pessoal como profissional. Medeiros e Almeida era um bem-sucedido e reconhecido empresário e mecenas, pertencente à mais tradicional elite da sociedade portuguesa da época, um conservador que norteou a sua vida pelos mais rigorosos princípios assentes no trabalho, honestidade e competência. Homem duro, exigente, após a morte da mulher isolou-se socialmente, votando a vida ao trabalho e dedicando-se à Fundação.
A transmissão desta ideia dá-se através dos traços característicos do pintor, como o recurso a uma execução espontânea, a um cromatismo forte mas delicado por não haver grandes variantes, a contornos bem definidos pelo pincel apesar da ausência do desenho, de volumes habilmente criados pelo jogo do claro/escuro.
Ainda outro traço característico do mestre são as carnações muito bem conseguidas, transmitindo uma luminosidade que suporta o registo fotográfico que se identifica nas suas obras. Quanto aos fundos, o facto de serem neutros, estes são propositados e muito frequentes em Medina, afinal, o foco de atenção é o retratado sendo o cenário secundário.
Com estes retratos, para além de ser pintado por um artista de renome, Medeiros e Almeida pretenderia deixar um testemunho, uma afirmação de imortalidade, uma continuação para além da existência precária, tal como o é a sua coleção.
Dizem ser um dos mais difíceis géneros de pintar, a arte do retrato, pois, para além do aspeto físico, é o retrato psicológico que deve ser traçado e essa capacidade não é para todos. Para além da semelhança física que implica técnica, o desafio do artista põe-se ainda ao nível da parecença psicológica, essa só concretizável, através de uma sensibilidade própria dos retratistas; a acuidade da sua interpretação.
O retratista é pois um analista, um psicólogo, enfim, um biógrafo com algo de poeta já que a subjetividade que exprime com o pincel tem que ser ao mesmo tempo objetiva pois traduz uma realidade, a de um retrato de uma pessoa com as suas caraterísticas físicas e psicológicas.
Como dizia o professor americano Quentin Rogers: “Os olhos dos retratos de Medina são também os espelhos da alma dos seus modelos.”
As pinturas estão assinadas e datadas: H. Medina 1974
A crítica
Os artistas coevos de Medina como Almada Negreiros, Eduardo Viana, Abel Manta, Carlos Botelho, Marcelino Vespeira, Fernando de Azevedo, Keil do Amaral ou Júlio Pomar que criticavam os artistas cujo trabalho era “bandeira” do Regime, nomeadamente Eduardo Malta, englobavam Medina, apesar deste se ausentar bastante do país, na acusação de passadismo, de pertencer a uma fação académica da produção nacional que norteou parte da produção pictórica oficial: “também se inscrevem na linha da pintura retratística de gosto oficial mais tradicional, representando a elite social ou os tipos populares e paisagísticos resultantes da visão cristalizada da época, dando continuidade a alguns temas fundamentais do naturalismo oitocentista.”
Porém, comparando Medina com pintores da mesma geração que produziram obra semelhante e partilharam do mesmo comprometimento como José Malhoa, Veloso Salgado ou Eduardo Malta, era-lhe reconhecida melhor técnica: “Embora as temáticas tratadas sejam idênticas, Henrique Medina consegue uma maior expressividade, realismo e eficácia na composição.”
Apesar de controverso no sentido em que sempre dividiu a crítica é pois esta dualidade que carateriza as opiniões acerca deste artista, criticado por um certo passadismo identificado com o Regime mas gabado pela sua técnica, pelo seu sentido da cor, domínio da linha e da composição que lhe grangearam a fama que, em vida, lhe reconheceu talento, lhe permitiu viver da sua arte e o levou a todos os cantos do mundo, tendo deixado uma prolífera obra que pode ser apreciada em diversos museus e instituições nacionais e internacionais.
Proveniência
António de Medeiros e Almeida foi retratado por Henrique Medina em 1974. Por correspondência entre os dois, sabemos que em Junho desse ano o retrato já estava adiantado pois o artista, encontrando-se em Paris, pretende marcar com Medeiros e Almeida uma sessão de 3 dias no seu atelier em Lisboa para finalizar a obra, pedindo-lhe que leve a casaca, camisa e colete com que estava a ser pintado.
O retrato de Margarida de Medeiros e Almeida, pintado na mesma altura, é uma obra póstuma pois a senhora tinha morrido em Junho de 1971. O retrato foi realizado a partir de uma seleção de fotografias que Medeiros e Almeida escolheu e mandou ampliar para o efeito.
Não há registo da quantia paga ao artista.
Em 1983 (Medeiros e Almeida tinha 88 anos), após a exposição retrospetiva do artista no Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, Medeiros e Almeida, que visitou a exposição e adquiriu o catálogo, escreveu a Medina queixando-se que na referida publicação estão elencados vários locais onde existem obras do artista sendo que a Fundação Medeiros e Almeida não consta entre eles: “…será que o meu bom amigo entende que os retratos da minha mulher e meu não merecem ser referenciados? Eu posso dizer-lhe que têm sido muito elogiados.”
Medina pede que “…releve tão grande falta”, que: “Se a Fundação Gulbenkian fizer nova edição do catálogo, não deixarei de incluir o seu prestigioso nome que doravante figurará em todos os meus dados biográficos”, dizendo ainda que: “…desde aquela visita ao seu palácio de beleza e encanto, que me deixou deslumbrado, nunca mais deixei de descrever aos meus amigos do Norte, as maravilhas que admirei, de requintado gosto de uma alma de elite, que lega à posteridade a raríssima joia, que é a Fundação Medeiros e Almeida.”
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
Correspondência entre Medeiros e Almeida e Henrique Medina, 1974 / 1983 – Arquivo CMMA
Dissertação de Mestrado em Museologia, FCSH-UNL, Ana Rita Rodrigues Duro; Eduardo Malta, Director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, Outubro, 2012 https://run.unl.pt/handle/10362/9348
Catálogo da exposição de pintura e desenho de Henrique Medina, Lisboa : Sociedade Nacional de Belas Artes, 1931
AA.VV. Medina, 74 Reproductions de Tableaux et Dessins Précédées d’Une Étude sur le Peintre, Zurique: Fretz Frères, s/data
AA.VV., Henrique Medina, Porto : Edição VilasBoas, s/data
AA.VV. Exposição Retrospectiva de Henrique Medina, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro-Novembro 1983
Henrique Medina, 30 desenhos inéditos, Porto : Fundação Eng.º António de Almeida, s/data
ABREU, João Paulo (coord.); Henrique Medina – Talento, Arte, Beleza, Braga: 2018
COSTA GOMES, Maria Luisa Ataíde da ; Exposição de pintura do Mestre Henrique Medina, Ponta Delgada : Museu Carlos Machado, 1962
CUNHA, Rui Cavalheiro (coord.), Magalhães, Ivone Baptista de; Henrique Medina : centenário – nascimento, Esposende: Museu Municipal, 2002
DIAS, Carlos Malheiro; Um ensaio sobre o pintor Henrique Medina, Trofa: 1977
HUYGHE, René (introd.); Pereira, David Jorge (ed. lit.); Henrique Medina: Setenta Anos de Pintura, Lisboa: Sólivros de Portugal, 1981
PAMPLONA; Fernando de; Henrique Medina, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, vol. IV, Barcelos: Civilização, 2000 (pp. 98-101)
Henrique Medina de Barros (1901-1988)
1974
Lisboa, Portugal
Óleo sobre tela
Alt.76,2cm x Larg.62,8cm (x2)