“Leque “O Rapto das Sabinas”
Leque com folha em pele pintada a guache e rematada por papel dourado, produzida em Itália (?) e armação em tartaruga decorada por aplicação de metal dourado e topázios imperiais encastrados nas guardas
Itália (?) 1710 – 1720 (folha)
França (?) 1760 – 1780 (armação)
Dim: A. 29,50 cm x L. 56,20 cm
Leque
Com referências à sua existência desde a Antiguidade, tanto na civilização Assíria como Egípcia, mas cuja origem exacta permanece desconhecida, o leque é um objecto criado para ser agitado e provocar uma aragem refrescante, constituído por uma folha e um cabo ou por varetas que se sobrepõem abrindo e fechando, nas quais uma folha se encaixa.
Inicialmente feito de folhas de palmeira com um cabo, era designado por ventarola ou mais popularmente por espanta-moscas servindo tanto para refrescar como para afastar insectos. No Egipto era de grandes dimensões o que lhe permitia criar simultaneamente sombra.
No Oriente em particular na China, este objecto era também muito popular (tanto entre homens como mulheres) tendo-se tornado progressivamente numa peça de estatuto social, aparato, poder e sociabilidade, frequentemente associado a cerimónias religiosas, da corte ou até mesmo de dança.
Os leques usados quotidianamente, eram de folha de palmeira e bambu, enquanto símbolo de estatuto social eram de matérias nobres como penas e pelo de animais. Posteriormente, passaram a ser também produzidos em materiais requintados como o brocado, a laca, a seda e o papel, com cabo em madeira exótica, marfim ou prata.
Popular no Oriente era também para além da ventarola, uma tipologia de leque desconhecida na Europa até ao século XVI: o leque plissado. Tal como o leque em geral, também aqui se desconhece com exactidão o local da sua origem (China, Japão?) tendo evoluído das chamadas ventarolas em girassol (abanos de folha plissada com um cabo) que tal como os lisos, podiam assumir diversas formas: circular, quadrada hexagonal, oval…
O leque existiu na Europa por via da Grécia Antiga (onde este modelo era igualmente conhecido, mas feito com folha de mirto, acácia e plátano) e do Império Romano, tendo sido usado em cerimónias religiosas, mas também como enxota-moscas. No entanto, na Europa da Alta Idade Média, poucos vestígios do seu uso chegaram até nós.
Como consequência dos Descobrimentos, no século XVI, o modelo plissado difundir-se-a na Europa, após a chegada dos Portugueses à China e posteriormente ao Japão. Dentre tantos outros produtos, trouxeram também (das ilhas Léquias?) leques plissados que, a partir de então se propagam no continente europeu, enquanto objectos de luxo, feitos de materiais caros e exóticos como penas de avestruz, pavão, marfim entalhado, ouro prata e gemas, mas também velino e papel.
No entanto, será apenas no século XVII (como aliás atesta a pintura de retrato) que este objecto se irá difundir em larga escala na Europa, tornando-se um acessório de moda, assim como de colecção, passando a ser produzido em diferentes países europeus. A sua execução reunia materiais com origens muito variadas nas suas partes constitutivas, podendo o mesmo leque apresentar peças importadas vindas do oriente, como as guardas em marfim entalhado que chegavam da China, às quais se juntava a folha em pele vinda de Itália e a pintura eventualmente feita noutro local. França torna-se o principal país produtor destes objectos mas, não o único, sendo acompanhado de perto por Itália e Inglaterra, que se tornou no principal produtor e exportador de uma novidade técnica: o leque impresso. Esta nova forma de produção, tornou-o mais acessível àqueles que não podiam pagar um objecto de luxo.
É ao longo deste século que o leque pintado se populariza, reproduzindo pinturas famosas de outros artistas e em que os temas clássicos e mitológicos eram os predilectos, não excluindo no entanto, a representação de cenas do quotidiano.
Durante o século XVIII, numa fase inicial, a decoração corre ao longo de toda a folha não havendo seccionamento da mesma em termos decorativos, nem emolduramento ou remate pintado.
Com o decorrer do século XVIII, a decoração passa a apresentar-se dividida em cartelas, surgindo também o remate emoldurado e a conjugação decorativa (possível) das varetas com as folhas. A inspiração continuava a vir da pintura passando as cenas pastoris e galantes, assim como os temas bíblicos e triunfos a fazer parte da decoração, tal como a moda e as artes decorativas assumindo desta forma, o fabrico destas peças, um gosto actualizado e coevo com as outras artes.
A Revolução Francesa traz em finais do século um novo gosto caracterizado pela simplificação decorativa resultado também, do tipo de produção que passa a ser feita mecanicamente, tornando o leque mais acessível, reflexo de uma desejada igualdade de classes sociais.
No segundo terço do século XIX o gosto retorna ao século XVIII, aproximando-se a produção à do século anterior, como aliás aconteceu noutras artes.
Em paralelo com o leque pintado, existiu uma outra técnica decorativa: o leque impresso. Surgida em Inglaterra, ainda nos anos 20 do século XVIII, a impressão abrangia todo o tipo de temáticas em particular o quotidiano, sendo colorida à posteriori. O leque impresso, era obrigatoriamente datado e devia apresentar a marca do editor desde 1735.
Na passagem para o século XIX o leque muda de tamanho e de estética, apresentando-se agora mais pequeno, frequentemente em marfim ou tartaruga e decorado por lantejoulas, seguindo o gosto Império. Em meados do século uma alteração na moda, leva a uma mudança no tipo de leque: agora apresentam-se novamente maiores (com tendência para aumentarem até final do século) de acordo com a moda do vestuário do romantismo.
O uso do leque acabará por ter tendência para diminuir e posteriormente quase desaparecer com a chegada do século XX.
Ao longo do tempo inúmeras tipologias de leques foram inventadas:
Abano – Painel rígido (pode ter formas diferenciadas) com cabo.
Brisé – leque constituído apenas por varetas e guardas unidas entres si por uma fita na parte superior e preso em baixo por um rebite.
Cabriolet – Leque dobrável com duas ou mais folhas concêntricas colocadas uma por cima da outra, parecendo uma roda de uma carruagem cabriolet.
Cocade – leque dobrável ou brisé cuja folha abre a 360 graus, e cujas guardas se prolongam para formarem o cabo ou pega.
Fontange – leque dobrável cuja folha semicircular se apresenta mais elevada ao centro do que junto às guardas. Forma que se assemelha a um penteado popular nos séculos XVII e XVIII em França.
Plissado – leque que abre e fecha a partir de uma cabeça.
Palmetas – Leque brisé constituído por folhas individuais presas a cada uma das varetas
Plumas – Leque dobrável brisé em cujas varetas são aplicadas penas de diferentes aves.
Quebrado – leque que se “desintegra” quando aberto na direcção contrária ao normal.
Telescópico – leque plissado com um mecanismo que permite às varetas e guardas que são extensíveis, deslizarem para dentro das costelas quando fechado.
Processo de fabrico
Em França as profissões artesanais estavam estruturadas através de rígidas regras das corporações, sendo necessário um período de aprendizagem de vários anos para o seu exercício autónomo. Tal aplicava-se também, aos fabricantes de leques que até 1780 estavam distribuídos por duas corporações: a dos tabletiers que fabricavam a estrutura quer ela fosse em madeira, osso ou marfim e a dos éventaillistes que se dedicavam à execução, decoração e montagem da folha. A aprendizagem previa um período inicial de quatro anos (aprendiz) seguido de mais dois como companheiro e finalmente o candidato a mestre tinha que demonstrar os conhecimentos adquiridos através da execução de uma estrutura (no caso dos tabletiers) ou de uma folha e respectiva montagem (no caso dos éventaillistes), a prova de exame.
O processo de fabrico de um leque (além de passar por artesãos diferentes) previa várias e minuciosas fases. Começava pelo corte inicial e grosseiro das peças constitutivas da estrutura (guardas e varetas) designada por armação que podia ser feita de materiais variados como madeiras, madrepérola, casca de tartaruga, marfim, corno, osso. Seguia-se um entalhamento e polimento das mesmas que depois eram vazadas, segundo um modelo pré-existente. Esta fase era particularmente delicada e morosa dada a fragilidade de alguns dos materiais, em particular da madrepérola, mas também porque muitas vezes a decoração era muito pormenorizada.
Finalmente, a peça podia ser dourada e montada antes de ser enviada para um éventailliste que de seguida lhe adaptava uma folha.
A montagem da folha não era menos complexa que a criação da estrutura sendo feita em função desta, prevendo inúmeros passos como a gravação de uma placa em nogueira com raios equidistantes que saem mesmo ponto, sobre a qual é colocada a folha do leque na qual se decalcam esses raios (destinados a marcar o plissado) sendo ainda recortada, dobrada em dobras alternadas, por forma a permitir o fecho do leque. As dobras ou o plissado eram feitas através de um molde, exigindo esta fase um bom conhecimento técnico, para que nada de importante da decoração ficasse escondido pelas pregas e assim “desaparecesse” da decoração. Finalmente, a folha era encaixada e fixada nas varetas. Também neste caso, os materiais usados eram muito variados sendo possível encontrar leques com folha de couro, velino, papel, seda, renda, penas, mica, lantejoulas.
Em geral, as folhas não eram assinadas e quando tal acontecia, podiam apresentar a assinatura do pintor, mas não necessariamente a do fabricante.
Por outro lado, as varetas eram frequentemente reutilizadas quando a folha se estragava ou quando alguma se partia, sendo nesse caso, a folha cortada ao tamanho de menor número de varetas.
Para além da diversidade de materiais que podiam integrar a feitura de um leque, este era constituído por várias partes:
Argola – que se une ao rebite na extremidade do leque
Armação – estrutura do leque constituída por guardas e varetas onde a folha é encaixada.
Borla – Ornamento de passamanaria que pende da argola.
Cabeça – Zona mais baixa da armação perfurada onde passa um rebite por forma a criar um eixo.
Costelas – parte de cima das varetas na qual a folha é encaixada
Guarda – Varetas exteriores / terminais que são mais largas e fortes, em geral bastante decoradas e que servem parta proteger o leque quando fechado.
Folha – parte por cima da garganta, feita de material flexível como, papel, pele, têxteis.
Ombro – Parte onde a garganta e a folha se encontram
Pescoço – Parte entre a cabeça e a folha
Rebite – atravessa o orifício no centro da armação da cabeça do leque de modo a fixá-lo no seu eixo.
Vareta – parte rígida que com as guardas formam a armação.
Rapto das Sabinas de Pietro da Cortona
Realizado entre 1710 – 1720 (folha italiana?) e 1760 – 1780 (armação francesa?) o leque que representa o Rapto da Sabinas reproduz a pintura de Pietro da Cortona (1597-1669) executada cerca de 1630, actualmente fazendo parte do acervo dos Musei Capitolini em Roma e que pode conhecer aqui:
Pietro Berrettini ou da Cortona cidade onde nasceu e que lhe deu o nome, foi um pintor de estuques, telas e arquitecto do barroco italiano, que produziu inúmeros trabalhos em Roma, entre os quais se destaca, a realização dos frescos do palácio Barberini com a representação do Triunfo da Divina Providência, mas também em Florença onde pintou frescos para o Palazzo Pitti.
A reprodução da pintura no leque apresenta-se em posição inversa, tendo provavelmente sido feita a partir de uma gravura de Pietro Aquila executada entre 1670 e 1692 (período em que esteve activo) pertencente ao British Museum:
e também à Accademia Carrara de Bergamo http://www.lombardiabeniculturali.it/stampe/schede/C0060-01459/
Pietro da Cortona retrata no Rapto das Sabinas a lenda da fundação de Roma, segundo a qual os primeiros romanos não tendo esposas, tentaram negociar com os Sabinos (povo que então ocupava a região de Roma) o casamento com as mulheres sabinas, mas tal proposta não foi aceite. Rómulo organiza então uma manobra de diversão para atrair as sabinas: um festival para o qual estas foram convidadas, tendo sido raptadas pelos romanos para com elas se casarem, tendo-lhes concedido todos os direitos civis e de propriedade, enquanto suas esposas. Mas ao rapto sobreveio a guerra por parte dos sabinos contra os romanos, tendo-se colocado as sabinas entre os dois partidos, oferecendo-se para serem sacrificadas pois, preferiam morrer a perderem os maridos (romanos) ou os pais e irmãos (sabinos) ficando os seus filhos sem pais e sem avós e foi assim que os dois povos se entenderam, assinaram a paz e se uniram sob Roma.
Numa paisagem de jardim com arquiteturas clássicas vários soldados levam ao colo as mulheres com as quais fogem, tendo Pietro da Cortona feito uma pintura de colorida teatralidade plástica, que traduz a intensidade dramática do acontecimento.
O anverso do leque reproduz fielmente esta pintura como acima descrito.
O verso apresenta um outro episódio mitológico: Ciparisso e o veado, temática rara em leques. Ciparisso recebeu de presente de Apolo um veado dócil de quem se tornou amigo mas que, inadvertidamente acabou por matar. Quando se apercebeu do seu erro, pediu a Apolo que o deixasse chorar para sempre. Apolo transforma-o então em cipreste, árvore cuja seiva forma gotículas no tronco assemelhando-se a lágrimas. A representação no leque desenrola-se numa paisagem de campo, mostra-nos uma figura masculina de pé, encostada a uma árvore, segurando um lenço, junto a um veado morto em cujo corpo se vê uma seta.
O colo do leque, em casca de tartaruga, apresenta decorações metálicas douradas e prateadas, como pilastras /pedestais com vasos de flores e grinaldas com laços e bustos dentro de medalhões, numa estética neoclássica. Ao centro, representação mitológica com carro triunfal com figura de Marte, Vénus e Cupido seu filho, fruto dos amores entre os dois deuses. As guardas decoradas por topázios imperiais de tom de salmonado (pedra originária da região de Ouro Preto no Brasil, muito popular na joalharia portuguesa do século XVIII) formando vasos, flores e laços dentro do mesmo gosto.
Este tema tal como a reprodução de outras obras de arte emblemáticas italianas, assim como paisagens e vistas, integram os designados leques do Grand Tour e de que a Casa-Museu possui um com uma vista da baía de Nápoles. Os jovens aristocratas do Norte da Europa viajavam para os países do Sul, em particular para Itália, a fim de contactarem in situ com a cultura “clássica”, constituindo os leques com esse tipo de temática, um souvenir de viagem bastante popular.
Subsistem assim, em diversas colecções vários exemplares que reproduzem este motivo decorativo como é o caso do:
Fitzwilliam Museum http://data.fitzmuseum.cam.ac.uk/id/object/117906 cuja decoração da folha se aproxima muito da da Casa- Museu, ou do leque existente no Museu da Moda da Cidade de Paris (Palais Galliera), assinado e datado: Sangiorgio fecit 1766. http://www.palaisgalliera.paris.fr/fr/oeuvre/eventail-plie-lenlevement-des-sabines
Também o Museu Lázaro Galdiano de Madrid possui dois exemplares com O Rapto das Sabinas
http://catalogo.museolazarogaldiano.es/mlgm/search/pages/Main , um deles inspirado porém na pintura homónima de Luca Giordano da National Gallery of Australia: https://artsearch.nga.gov.au/detail.cfm?irn=23215
Proveniência
O leque foi comprado em Lisboa, a Francisco Marques da Silva, em 1977, por 150.000$00.
Nota: A Casa-Museu agradece a colaboração do colecionador francês Pierre-Henri Biger – Place de l’Eventail: http://eventail.pagesperso-orange.fr/informations.htm
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
Armstrong, Nancy – The Book of Fans. The Colour Library International, Great Britain, 1978
Marçal, Sofia (Coord.), Amaro, Ana Maria; Da folha de palmeira a peça de museu: o leque chinês. Missão de Macau em Lisboa, 1999
Ferreira, Joana Correia da Silva – Biografia de uma colecção: Os leques da Casa-Museu Medeiros e Almeida. Dissertação de Mestrado em Museologia, Lisboa, 2015
Guerber, H. A. – Myths of Greece and Rome. American Book Company, NY, Cincinnati, Chicago, 1921
Mota, Rosa Maria dos Santos – O leque visto através da colecção da Fundação Medeiros e Almeida. Escola das Artes Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2006
Perthuis, Françoise de e Meylan, Vincent – Éventails, Editions Hermé, Paris, 1989
Roberts, Jane, Sutcliffe, Prudence, Mayor, Susan – Unfolding Pictures, fans in the royal collection, Royal Collection Publications, Londres, 2005
Arte, lujo y sociabilidad, La colección de abanicos de Paula Florido, Madrid: Fundación Lázaro Galdiano, 2009
De Vere Green, Bertha, Fans Over the Ages: A Collector’s Guide, Nova Iorque: A. S. Barnes, 1979
Webgrafia:
Musei Capitolini, disponível em URL: http://www.museicapitolini.org
Palais Galliera – Musée de la Mode de la Ville de Paris, disponível em URL : http://www.palaisgalliera.paris.fr
The Fitzwilliam Museum, disponível em URL: http://www.fitzmuseum.cam.ac.uk
Repositório da colecção particular de Farina Sternke, disponível em URL: http://www.fancollection.net (acedido em Setembro de 2014).
https://www.fancircleinternational.org/
http://www.pin.pt/pdf/PORTUGAL_GEMAS.pdf
Desconhecido Decoração inspirada na pintura "Rapto das Sabinas" de Pietro da Cortona
França (?) 1710 – 1720 (folha) Itália (?) 1760 – 1780 (armação)
França / Itália
Folha em pele pintada a guache e rematada por papel dourado, armação em tartaruga decorada por aplicação de metal dourado e topázios imperiais encastrados nas guardas
Alt. 29,50 cm x Larg. 56,20 cm