Cómoda (cópia) – séc. XIX

Cómoda (cópia) – séc. XIX

Cópia de uma cómoda de Jean-Henri Riesener (1734-1806)

Bronzes atribuídos a Carl Dreschler (act. 1850-70)

França, prov. Paris, segunda metade séc. XIX

Cómoda de corpo arredondado, com tampo em mármore branco, ricamente decorada com painéis de marchetados geométricos e florais e aplicação de bronzes dourados. No corpo dois gavetões centrais e nos laterais dois armários.

Esta cómoda é uma cópia muito fiel da realizada em 1774 por Jean-Henri Riesener (1734-1806) para os Apartamentos de Luís XVI no Palácio de Versailles, hoje em dia no Museu Condé em Chantilly. [http://217.16.2.169/musee/conde02/rechsimple.xsp?q=Riesener&imageField.x=0&imageField.y=0].

 

As cómodas

Na viragem do século XVII, procurando responder às necessidades de uma clientela cada vez mais exigente e que procura o conforto sem renunciar à estética, o número de peças de mobiliário que habitam as diferentes salas e quartos das casas multiplica-se, ao mesmo tempo que aparecem novas tipologias. É neste contexto que surge a cómoda, peça por excelência do século XVIII e que continuará a ter grande importância no século XIX e até os nossos dias.

 

A palavra cómoda vem do termo francês commode (cómodo, conveniente) que, por sua vez, deriva do adjetivo latino commodus, de significado similar. Em inglês, embora muitas vezes se use o vocábulo francês, as cómodas designam-se também como chest of drawers (arca de gavetas), em referência à sua evolução. Até o surgimento da cómoda (e de outro tipo de móveis de conter) a forma mais comum de armazenamento nas casas era mediante o uso de baús ou arcas de diferentes tamanhos e materiais (madeira, couro, latão), com a vantagem de que estes também podiam ser utilizados como assentos e para o transporte em viagem. Porém, a dificuldade da organização interior destes móveis e a complexidade para chegar de forma rápida aos objetos situados no fundo, deu lugar a que as pessoas começassem a dispor os seus pertences em caixas que eram posteriormente colocadas no interior dos baús. Com o passar do tempo, de modo a ter uma maior visibilidade e acessibilidade às diferentes caixas, desaparece a frente do baú e as caixas situam-se em guias, transformando-se numa espécie de gavetas até, finalmente, dar lugar à atual cómoda.

 

As cómodas são portanto móveis de conter cuja configuração se foi adaptando às necessidades do seu uso. De formato normalmente retangular e corpo fechado, o seu perfil foi variando entre as linhas retas e curvas dependendo da época. Regra geral, as cómodas possuem um tampo de madeira ou mármore e são compostas por uma quantidade variável de gavetas sobrepostas e, eventualmente (como no caso da cómoda da Casa-Museu), armários laterais. A decoração é também muito diversa, desde as cómodas mais utilitárias e despidas de ornamentação, até à aplicação de embutidos, folheados, painéis de marchetados, bronzes dourados ou o uso de vernis Martin – dando ocasião a elaborados programas iconográficos -, em cómodas mais sofisticadas destinadas a adornar os salões e quartos de vestir. Ao longo do tempo os ebanistas vão conceber diferentes tipologias de cómodas: as famosas commode-tombeau de Boulle inspiradas nos sarcófagos, as cómodas serpenteantes de Cressent que deram lugar às commode-bombé, as cómodas de canto – commode-encoignure – que eram normalmente executadas aos pares, a commode à l’anglaise, que tinha prateleiras a ambos os lados do corpo central, etc. Até o século XIX as cómodas serão peças de mobiliário reservadas às classes mais abastadas, já que eram móveis dispendiosos, realizados por ebanistas – e não por simples carpinteiros – e que normalmente detinham um lugar de destaque na decoração, sendo que nos salões eram muitas vezes colocadas aos pares a ambos os lados da janela e encimadas por espelhos.

 

As cópias no século XIX

Os diferentes estilos de mobiliário francês do século XVIII gozaram de um prestígio que transpôs as fronteiras do país para instaurar-se como moda por toda Europa e, eventualmente, também do outro lado do Atlântico. Este gosto alargou-se para o século XIX já que, embora este tenha sido um século de grandes mudanças sociais – no qual a realeza e a aristocracia já não são os únicos a ditar as modas -, e tecnológicos – o que abrirá a possibilidade a todo um novo tipo de produção -, continuará a existir uma clientela que se identifica com a estética do passado e cujo gosto por antiguidades dará lugar a uma ativa indústria de cópias deste tipo de peças – nomeadamente de mobiliário real e de peças de grandes marceneiros -, que por sua vez levou a que esta mobília francesa passasse a ser muito conhecida e reconhecida por todo o mundo.

 

A produção de cópias de originais de marceneiros famosos era uma realidade estendida no século XIX; Christopher Payne dá-nos inúmeros exemplos disto no seu livro 19th Century European Furniture, como é o caso de três cópias de uma cómoda Riesener que não só dão fé do comum desta prática, como nos permitem apreciar a diferença nos pormenores [habilidade na realização da marchetaria, qualidade e quantidade dos bronzes, existência de pequenas modificações em relação ao desenho original], corroborando a ideia de que estas cópias não pretendiam ser falsificações dos originais, mas sim reproduções, muitas vezes realizadas por grandes marceneiros que, em alguns casos, assinavam estas peças reconhecendo-as assim como obra própria.

 

O aparecimento das Exposições Universais durante a segunda metade do século XIX tem uma importância decisiva na difusão e sucesso de reproduções de móveis antigos, nomeadamente móveis Luís XIV, Luís XV e Luís XVI. Em Paris, é no faubourg Saint-Antoine que se concentram muitas das lojas e oficinas de produção e venda de cópias de maior qualidade, embora estas sejam fabricadas e comercializadas também fora de França, com especial destaque para Inglaterra onde, entre outras, a Maple & Co. – casa na qual António de Medeiros e Almeida comprou a cómoda em foco – era muito reconhecida pela qualidade das suas peças, dedicando-se não só à reprodução de modelos antigos como também ao fabrico de mobília nova e ao comércio de antiguidades.

As cópias são testemunhos de que os artesãos não tinham perdido a sua habilidade técnica, assim como do talento de alguns destes marceneiros que muitas vezes não se contentavam com a cópia fiel pretendendo mesmo melhorar certos aspetos dos originais, muitas vezes auxiliados pelas novas ferramentas que tinham ao seu dispor.

 

A atitude de rejeição que ainda hoje suscitam as reproduções oitocentistas entre alguns estudiosos e colecionadores era incompreensível na altura em que estas foram feitas, já que então eram entendidas como um reconhecimento de um estilo e desenho do passado e eram realizadas a pedido de uma clientela endinheirada que demandava este tipo de artigos.

Na Casa-Museu Medeiros e Almeida existem, para além da cómoda em estudo, outros móveis que respondem a esta ideia de reprodução própria do século dezanove, como é o caso da secretária com alçado em exposição na mesma sala (http://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/secretaria-com-alcado-1825-60/), que é uma das duas cópias realizadas pelo marceneiro inglês John Webb (a outra exposta na The Wallace Collection, em Londres), da secretária de Maximiliano II Emanuel, Eleitor da Bavaria, encomendadas pelo 4º Marquês de Hertford, Richard Seymour-Conway (1800-1870), quem teve de facto um importante papel no mercado de cópias, tendo encomendado uma grande quantidade de reproduções para mobilar as suas casas.

 

A cómoda da Casa-Museu

A cómoda da Casa-Museu, exposta na Galeria Nova ou Sala das Tapeçarias, é uma cópia bastante fiel – embora de dimensões ligeiramente maiores – da realizada em 1774 por Jean-Henri Riesener para os Apartamentos de Luís XVI no Palácio de Versailles, hoje em exposição no Museu Condé em Chantilly. A cómoda de Chantilly, após a sua passagem por Versailles terá decorado o hôtel parisien de Jean-Jacques Régis de Cambacérès (1753-1824), para posteriormente se tornar propriedade do rei Louis-Philippe (1773-1850) e finalmente ter sido comprada pelo Duque de Aumale (1822-1897), momento na que terá sido levada para a sala da música do castelo de Chantilly perto de Paris.

Com corpo em forma de D, é constituída por dois gavetões e dois armários laterais, a rica ornamentação da peça é um exemplo do trabalho mais típico de Riesener, com protagonismo dos marchetados, folheados e bronzes que revestem todo o móvel ocultando o esqueleto e criando um rico programa iconográfico destinado a elevar a glória do jovem rei. No corpo a marchetaria de treliça geométrica, também conhecida como marchetaria “à la Reine”, muito utilizada no estilo Luís XVI, serve de elaborado fundo sobre o que assenta o resto da decoração. Ao centro um painel trapezoidal com uma composição em marchetaria de natureza morta com flores, frutos e vasos, enquadrada por moldura de bronze dourado; o desenho deste painel aparece em outras obras de Riesener, neste caso – na cómoda original – estaria em substituição de um outro painel, provavelmente retirado durante a Revolução, no qual figurariam emblemas reais (possivelmente uma figura de Minerva coroando de louros medalhões com as figuras do rei e da rainha). Surpreendentemente a ornamentação em bronze dourado, embora também dirigida à exaltação da monarquia, terá sobrevivido na cómoda de Riesener e foi também aplicada nesta cópia: no avental, grandes folhas de acanto e duas cornucópias da abundância, carregadas de frutos e flores emolduram uma esfera azul-cobalto com as três flor-de-lis associadas à casa real francesa; na parte superior central, máscara de Apolo com os raios solares; em cada lado do painel trapezoidal, dois putti simbolizando a Beneficência e a Justiça; nos laterais da cómoda troféus flanqueados por quatro figuras emblemáticas da Coragem, Força, Prudência e Temperança.

A execução das marchetarias era um trabalho de grande pormenor e muito demorado. As madeiras tinham de ser escolhidas atendendo à sua cor, sendo que esta cor seria normalmente acentuada através do uso de diferentes corantes e acabamentos. Assim pois, as composições originais seriam de grande vivacidade com um intuito naturalista, sendo que a imagem que temos hoje em dia dos painéis de marchetados dista muito da aparência que teriam os da cómoda Riesener do Museu Condé de Chantilly já que, com a passagem dos anos, as madeiras foram perdendo o seu aspeto original e as cores foram esvanecendo. Como é óbvio, o corte das peças de madeira que configuram os desenhos dependia muito da perícia dos artesões, mas também dos instrumentos disponíveis à época, de modo que é este um dos vários aspetos a focar para diferenciar o trabalho do século XVIII e do século XIX, já que as diferenças na forma dos cortes e encaixes pode fornecer muita informação. Em relação aos bronzes também a tecnologia de fabrico mudou, de modo que podemos igualmente discernir a época do fabrico atendendo a algumas particularidades na feitura dos mesmos.

Grande parte dos bronzes aplicados na cómoda estão marcados com as iniciais CD nas faces posteriores. Existem cópias de peças de Riesener realizadas por Carl Dreschler, ebanista alemão a trabalhar em Paris em meados do século XIX que realizou diversos trabalhos para Richard Seymour-Conway, 4º Marquês de Hertford pelo que se põe a hipótese de poder atribuir este exemplar ao referido ebanista.

Para além da patente na Casa-Museu, conhecem-se outros exemplos desta cómoda de Riesener. Sabemos, por exemplo que uma cómoda como esta teria estado exposta no Salon du Mobilier, em Paris, em 1902, e outras cópias, de menor ou maior qualidade e mais ou menos fiéis à original, têm aparecido para venda em diversos leilões.

 

Jean-Henri Riesener

Jean-Henri Riesener nasceu na Alemanha em 1734 e, ainda jovem, partiu para Paris onde trabalhou com Jean-François Oeben (1721-1763), ébéniste du roi, também ele de origem alemã. Após a morte de Oeben, Riesener casa com a sua viúva o que, dadas as estritas normas da corporation des menuisiers-ébénistes de Paris, lhe assegurava a possibilidade de poder continuar a trabalhar em França. Em 1774 é nomeado ébéniste du roi, produzindo regularmente peças para os Apartamentos do rei Luís XVI. A rainha Maria-Antonieta era uma grande entusiasta do seu trabalho; para ela vai fabricar, com a colaboração de outro alemão, Merklein, a famosa escrivaninha “mecânica” (https://www.youtube.com/watch?v=twJcIB_yr54), com compartimentos escondidos que são expostos mediante engenhosos mecanismos. A sua obra caracteriza-se pela riqueza decorativa, com folheados, marchetaria floral e esculturas em bronze dourado.

Apesar das suas ligações com a coroa, Riesener sobrevive à Revolução, mas é obrigado a retirar e substituir os símbolos monárquicos presentes nas suas obras, muitas das quais acaba por comprar ele próprio aquando da sua venda mas, embora esse parecesse ser o seu objetivo, nunca as chega a repor no seu estado inicial. Jean-Henri Riesener passa os últimos anos da sua vida retirado e em companhia da sua segunda mulher. Morre em 1806, recordado para sempre como um dos grandes ebanistas franceses de todos os tempos.

Proveniência

O autor e o local de fabrico da cómoda são desconhecidos tal como a sua proveniência.

de acordo com a documentação, a cómoda foi adquirida pela casa inglesa Maple & Company Ltd. em França, em local e data desconhecidos tendo sido posteriormente adquirida por  Medeiros e Almeida à Maple & Co. na sua loja de Tottenham Court Road, em Londres, a 10 de Maio de 1971, por £2,700. Medeiros e Almeida compra também nesta altura outras duas peças à firma inglesa: uma secretária estilo Chippendale (FMA 417) e um pedestal francês (FMA 48).

 

A Maple & Company – ebanistas, antiquários e decoradores – foi fundada por John Maple (1815-1900), comerciante de Surrey estabelecido em Londres. O seu filho, John Blundell Maple (1845-1903) fez crescer o negócio, transformando-o na década de 1880 numa das maiores e mais famosas empresas do ramo. Após a Segunda Guerra Mundial a família deixa de estar envolvida na companhia; em 1990 esta é alienada pela Saxon Hawk e em 1997 o Allied Maples Group entra em falência.

 

 

Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

Bibliografia

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BORGES de SOUSA, M.C. e BASTOS, C., Normas de Inventário, Mobiliário – Artes Plásticas e Artes Decorativas, Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, 2004

CHASTANG, Y., Paintings in Wood: French Marquetry Furniture, Londres: The Wallace Collection, 2001

HONOUR, H., Chefs-d’Oeuvre du Mobilier de la Renaissance à nos Jours, Fribourg, Office du Livre, 1971

PAYNE, C., 19th Century European Furniture, Antiques Collector’s Club, 1981

PRADERE, A., French Furniture Makers: The Art of the Ebeniste from Louis XVI to the Revolution, London: Sotheby’s Publications, 1989

VV.AA. (Coord. FANIEL, S.), Le XVIIIe Siècle Français, França : Hachette, 1956

VV.AA., Les Ébénistes du XVIIIe Siècle Français, França : Hachette, 1963

Recursos online

DRISCOLL, J., Maple & Co Antique Furniture in: https://antiquesworld.co.uk/maple-co-antique-furniture/

KISLUK-GROSHEIDE, D., The Golden Age of French Furniture in the Eighteenth Century in: Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000, http://www.metmuseum.org/toah/hd/ffurn/hd_ffurn.htm

KISLUK-GROSHEIDE, D., French Furniture in the Eighteenth Century: Case Furniture  in: Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000, http://www.metmuseum.org/toah/hd/cfurn/hd_cfurn.htm

MESTDAGH, C., Les copies à l’ère des premières Expositions universelles : les œuvres de Dasson et de Beurdeley, «un XVIIIe qui continue de vivre»? in: https://journals.openedition.org/crcv/13481?lang=en

PAULIN, M.A., L’art de la couleur selon Jean-Henri Riesener, in: Bulletin du Centre de Recherche du Château de Versailles,  https://journals.openedition.org/crcv/13350

Allied maples Group, furniture retailers and manufacturers: records, ca.1635 – ca.1990 in:  Victoria and Albert Museum: Archive of Art and Design, http://www.vam.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0017/252161/amg_aad_2000_03_20141020.pdf

Autor

Desconhecido

Data

Século XIX - segunda metade

Local, País

prov. Paris, França

Materiais

Embutidos de pau roxo, bois à tabac e sicomoro, bronzes dourados, mármore de Carrara Técnica de acabamento: polimento a goma laca

Dimensões

Alt. 98cm x Larg. 200cm

Category
Mobiliário Francês