DESTAQUE FEVEREIRO 2023
Patinadores no gelo
Paisagem de inverno representando uma localidade atravessada por um curso de água gelado, onde uma multidão se diverte a patinar, a jogar kolf, a deslocar-se de trenó, a tomar bebidas quentes numa tenda.
Cenas no gelo
A pintura holandesa do século XVII ou da designada Idade de Ouro ou Golden Age, integra inúmeros tipos de representação de paisagens, entre as quais se incluem as paisagens de inverno, muitas das quais no gelo, com representação de cenas de quotidiano com incontáveis personagens. Neste período a representação de paisagem (quer fosse marinha, fluvial, de gelo, campestre, citadina, …) fruto do orgulho e domínio de uma burguesia que controlava economicamente a sociedade, adquire grande popularidade na Holanda demonstrando brio no seu território, tantas vezes arduamente conquistado ao mar.
A próspera situação económica adquirida na primeira metade do século XVII, por esta burguesia comercial, levou-a a fazer representar-se na sua vida quotidiana, abrindo desta forma, um vasto mercado para os pintores. Do retrato ao interior caseiro, muitas vezes de pequena dimensão, de acordo com o espaço disponível em casa, passando pela paisagem, tudo é passível de representação a pedido desta nova clientela de posses, não sendo a paisagem de inverno, onde se integram as cenas de gelo, uma excepção.
A pintura de paisagens de inverno, em particular de cenas de gelo constitui-se por si só como um género pictórico. Iniciada por Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), irá adquirir verdadeira popularidade com as representações de Hendrick Avercamp (1585-1634), povoadas de gente, de pormenores pitorescos, por vezes anedóticos, em que o gelo é um divertimento, faceta largamente privilegiada pelos pintores da época [1].
Na maior parte dos casos, a paisagem de inverno, mas em especial a representação de cenas de gelo é feita de forma lúdica e divertida, omitindo os pintores os aspectos da severidade inerente ao Inverno. Raramente é representada a neve ou o céu nublado símbolo da severidade da estação, havendo uma idealização na representação ao suprimir as dificuldades, como o frio e a fome, fazendo desaparecer a rudeza das dificuldades associadas a esta época do ano. As representações de Pieter Brueghel são uma das excepções a este padrão, ao mostrar-nos paisagens carregadas de neve [2].
A patinagem surge representada amiudadas vezes como sendo uma actividade muito praticada e popular, um divertimento acessível a todos. Igualmente popular era a prática do kolf, assim como, o uso do trenó puxado por cavalos como meio de transporte sobre o gelo. Toda a sociedade parece participar e tirar partido desta oportunidade dada pela natureza. Ricos e pobres, novos e velhos, todos se divertem e convivem ao ar livre sobre o gelo.
Litle Ice Age ou a Pequena Idade do Gelo
Litle Ice Age (LIA) ou Pequena Idade do Gelo foi um fenómeno climatológico que ocorreu em particular durante a Idade Moderna, mas que para alguns climatologistas, se iniciou ainda no século XIII tendo durado até meados do século XIX, no qual se verificou uma acentuada descida das temperaturas, provocando invernos particularmente rigorosos e verões amenos. Este fenómeno parece estar relacionado com uma menor emissão de radiação solar, provocada por “…fortes erupções vulcânicas que podem injectar grandes quantidades de compostos de enxofre na estratosfera, onde são oxidados e transformados em aerossóis absorvendo a radiação solar (..) provocando um arrefecimento da superfície terrestre” [3].
Esta situação atingiu particularmente o norte da Europa, conhecendo-se o congelamento por exemplo do rio Tamisa ou a destruição de vastas áreas de cultivo na Escandinávia, em diversos períodos. No século XVII, [vários] canais holandeses congelaram permitindo a patinagem. Teve consequências no desenvolvimento socio-económico e demográfico das regiões que atingiu, visto ter destruído grandes áreas de cultivo que não resistiram às baixas temperaturas, provocando fome nas populações, fluxos migratórios com consequências socio-económicas nas regiões afectadas.
O início do século XVII será marcado por diversos invernos particularmente rigorosos, não sendo por isso de excluir a hipótese de o impulso e popularidade que este tipo de pintura teve neste período, reflectir este fenómeno climatérico [4], reproduzindo um quotidiano, ainda que algo fantasiado, marcado pela Pequena Idade do Gelo.
A pintura do Museu
A pintura do Museu cujo o autor permanece desconhecido, foi feita a partir de uma gravura (pertencente ao espólio do Rijksmuseum) realizada por Pieter Bout pintor, desenhador e gravador flamengo. Membro da guilda de São Lucas de Bruxelas, sua cidade natal (?) foi um paisagista prolífico ao representar vistas de cidades, aldeias, marinhas, portos, praias e ainda cenas de gelo.
Schaatsers op het ijs, Pieter Bout, c. 1664 – c.1719. Gravura, 19 cm x 27,3 cm. © Rijksmuseum.
Pieter Bout retratou uma vista panorâmica, como aliás era comum neste tipo de representação: um curso de água gelada espraiando-se ao longe (1º plano), com uma cidade em fundo pontilhada por moinhos e um céu de horizonte baixo.
O artista que transpôs a gravura para pintura manteve os mesmos pressupostos da gravura “dando-lhes cor”, em que nuvens cúmulos deixam entrever um firmamento azul rosado por trás, no que parece ser uma idealização de uma paisagem de inverno. As personagens divertem-se a patinar, entre os quais diversos jogadores de kolf, a deslocar-se em trenós puxados por cavalos ou a descansar junto a uma tenda de koek-en-zopie, não faltando as inevitáveis quedas, numa representação de um quotidiano animado.
Para além da simples patinagem, desde a Idade Média que os holandeses se dedicaram à prática de um desporto típico deste país: Colf ou Kolf – jogo que cruza características do golf e do hóquei, jogado desde o século XIII nos Países Baixos. Praticado ao ar livre ao longo de todo o ano, nos meses de inverno era realizado sobre o gelo que então cobria os canais, (não sendo necessário um campo específico para a sua prática). Era jogado com stick e uma bola com a qual os jogadores deviam acertar num buraco ou num poste. Ganhou particular popularidade no século XVII, jogado sobre o gelo, como é retratado em inúmeras pinturas. Com o tempo adquiriu um espaço próprio de interior, de dimensões reduzidas, onde actualmente é praticado.
Muito popular, até ao presente, koek-en-zopie – ou “bolos e bebidas” refere-se às tendas instaladas nas margens dos canais gelados, para servirem aos patinadores bebidas e comida quente, cozinhada numa fogueira. Na realidade, estas tendas situavam-se mais concretamente sobre o gelo evitando desta forma o pagamento de impostos sobre bebidas alcoólicas aplicados em terra. Misturas de cerveja, rum, ovos e especiarias ou ponche eram as bebidas mais populares, enquanto os bolos podiam ser do tipo de panquecas, devendo ser consumidos à mão.
A pintura do Museu foi adquirida como sendo da autoria de Jacob Cats (1741-1799), não sendo assinada ou datada. A razão para esta atribuição prende-se com a existência de uma etiqueta manuscrita colada no tardoz da grade, que refere este pintor, no entanto, desconhecemos a proveniência desta etiqueta não lhe podendo dar credibilidade suficiente para uma atribuição de autoria. Por outro lado, não nos parece que por comparação estilística esta pintura (e uma outra adquirida em simultâneo, representando um mercado de peixe em Schevenningen e que durante esta pesquisa apurámos também ter na sua origem uma gravura da autoria de Pieter Bout) se aproximem estilisticamente do trabalho de Jacob Cats, nem tão pouco do de Pieter Bout. A execução de pinturas a partir de gravuras de outros artistas, era relativamente comum por parte de pintores pouco conhecidos destinando-se a um florescente mercado generalista existente nos Países Baixos, estando Antuérpia no centro deste tipo de produção em que por vezes, até mais do que um exemplar da mesma pintura era realizado.
Parece ser este o caso de “Patinadores no gelo” dado o tipo de execução, permanecendo assim em aberto a sua autoria.
Proveniência
A pintura, juntamente com o “Mercado do peixe em Schevenningen”, foi adquirida ao antiquário Henrique Soares Antiguidades, Rua do Alecrim 68, Lisboa, em 21 de Janeiro de 1970, por 50.000$00.
Cristina Carvalho
Museu Medeiros e Almeida
[1] Como pode descobrir em: https://www.rijksmuseum.nl/en/rijksstudio/artists/hendrick-avercamp/objects#/SK-A-1320,3; https://www.rijksmuseum.nl/en/rijksstudio/artists/hendrick-avercamp/objects#/SK-A-1718,0 (consultados a 25.01.23).
[2] Como pode ver em: http://www.opac-fabritius.be/fr/F_database.htm; https://www.khm.at/en/objectdb/detail/327/?offset=29&lv=list (consultados a 22.01.2023).
[3] https://www.historicalclimatology.com/features/category/little-ice-age (consultado a 10.01.23).
[4] METZGER A., TABEAUD M. “Les scènes hivernales dans la peinture du Siècle d’or hollandais” in Physio-Géo [En ligne], Volume 4, 2010, p.11, disponível em: http://journals.openedition.org/physio-geo/1312 (consultado a 12.01.23).
Bibliografia
METZGER A., TABEAUD M. “Les scènes hivernales dans la peinture du Siècle d’or hollandais” in Physio-Géo [En ligne], Volume 4, 2010, p.11, disponível em: http://journals.openedition.org/physio-geo/1312 (consultado a 12.01.23).
SEIFERLE, R. Dutch Golden Age Painting Movement Overview and Analysis. 2023. Disponível em: https://www.theartstory.org/movement/dutch-golden-age/ (consultado a 23.01.23).
WHITE, Sam. “The Real Little Ice Age” in The Journal of Interdisciplinary History, vol. 44, no. 3, 2014, pp. 327–52. JSTOR, disponível em: http://www.jstor.org/stable/43829490 (consultado a 31.01.23).
Webgrafia
https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1931-1114-422 (consultado a 27.01.23)
https://www.historicalclimatology.com/blog/did-the-little-ice-age-really-exist-november-24-2013 (consultado a 18.01.23).
https://www.historicalclimatology.com/features/category/little-ice-age (consultado a 18-01-2023).
https://healthandfitnesshistory.com/ancient-sports/dutch-kolf-kolven-medieval-golf/ (consultado a 28.12.23).
https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/carnaval-sobre-hielo/0a327e74-e9a3-44e5-b8b5-2d076dd0d876 (consultado a 30.01.23).
https://www.museodelprado.es/aprende/enciclopedia/voz/bout-peeter/5cc142be-83be-4958-b703-1590a8bf9f11 (consultado a 30.01.23).
https://www.nga.gov/blog/painting-climate-change-in-the-17th-century.html (consultado a 01.02.23).
NOTAS:
O Museu Medeiros e Almeida agradece a colaboração e informação disponibilizadas pela Dra. Ellis Dullaart do Nederlands Instituut Kunstgeschiedenis / The Netherlands Institute for Art History.
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
Como citar / How to cite: Carvalho, Cristina (2023). Patinadores no gelo. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/destaque-fevereiro-2023/.
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.
Gravura: Pieter Bout (?-1719); Pintura: desconhecido
Gravura: 1664-1719; Pintura: desconhecida
Gravura: Bruxelas (?); Pintura: desconhecido
Óleo sobre tela
21 x 28,5 cm