O aparato das horas

DESTAQUE NOVEMBRO 2023

 

O aparato das horas

 

Assinado Bapst et Falize e Leroy et Fils, reputados joalheiros e relojeiros parisienses, o relógio de mesa em prata finamente cinzelada e esmaltes, destacou-se na Exposição Universal de Paris de 1889.

 

De gosto revivalista, a peça simula um edifício de cariz renascença decorado por simbologia retirada da mitologia clássica, alusiva à passagem do tempo. Em novembro vamos contar-lhe a sua história!

Museu Medeiros e Almeida - Relógio Bapst et Falize e Leroy et Fils

Maison Bapst et Falize

A [Casa] Maison Bapst et Falize nasce em 1880 resultado da associação de dois dos maiores joalheiros parisienses: Germain Bapst (1853-1921) e Lucien Falize (1839-1897).

Germain Bapst é herdeiro de uma linhagem de joalheiros, antigos fornecedores da coroa francesa desde 1734. No entanto, percebendo que a sua vocação era primordialmente o estudo e não a criatividade, em 1892 dissolve a sociedade com Lucien Falize, passando a dedicar-se apenas à investigação da arte francesa. Nesse contexto, participa em três missões de estudo ao Cáucaso, tendo sido membro do conselho de administração do Museu de Artes Decorativas, bibliófilo, historiador, historiador da arte… Membro de inúmeras sociedades artísticas foi dos mais profícuos estudiosos com incontáveis publicações históricas e artísticas, ainda hoje importantes bases de pesquisa.

Lucien Falize herda a casa de joalharia do pai após a sua morte, transformando-a numa das mais famosas de Paris, ao recuperar o gosto pelo uso do esmalte aplicado à joalharia e ao introduzir as formas botânicas e o japonismo nas joias, antecipando a Arte Nova.

Criativo por natureza o seu trabalho baseou-se no estudo retirado das inúmeras viagens que fez: as civilizações longínquas no tempo e espaço atraíam-no: China, Assíria, Babilónia, Índia, Egipto, Japão, todas marcaram profundamente as suas peças.

Para além da faceta criativa, Lucien Falize promoveu também o ensino, através da Union Centrale des Arts Decoratifs (UCAD) [actualmente Museu de Artes Decorativas] que tinha como objectivo aproximar a indústria da arte associando o útil e o belo, pois acreditava na preparação técnica e artística dos designers /artistas. A sua participação nas exposições universais de 1867 (ainda com o pai), 1878 onde é recompensado com a Legião de Honra e um Grande Prémio, 1889 (apresenta trabalhos mas não concorre, visto ser relator do júri) deram enorme projeção ao seu trabalho.

Não menos importante foi o seu trabalho com colegas de renome como Emille Gallé  (1846-1904) ou Paul Grandhomme (1851-1944), com quem intensifica o gosto pelo japonismo (influência e reinterpretação da arte japonesa na arte europeia, sobretudo a partir das décadas de 1860 e 1870).

 

Em 1880, Germain Bapst associa-se a Lucien Falize nascendo uma nova firma designada Bapst et Falize, inicialmente localizada na Avenue de L’Opéra e a partir de 1882. Embora tenha durado apenas 12 anos, esta associação, revelou-se profícua com a execução de peças requintadas tanto de joalharia como de ourivesaria, entre as quais se destacam os relógios de mesa concebidos para Alfred Morrison, hoje no acervo do Metropolitan Museum de Nova Iorque (neogótico) e o da coleção Medeiros e Almeida realizado para Lady Scott, de gosto revivalista renascença.

Table clock with calendar

A firma recorria ao trabalho de variados artistas que assim contribuíam para o seu sucesso: escultores como Moureau-Vauthier, Carrier-Belleuse, Gustave Déloye, Joindy, Léon Chédeville, ourives como Glachant, esmaltadores como Charles Blanc, relojoeiros, cinzeladores… num trabalho de equipas multidisciplinares.

Marca do trabalho de Lucien Falize foi o retomar do uso dos esmaltes em cores vibrantes nas suas peças, em particular nas de joalharia, mas também nalgumas de ourivesaria, como podemos ver nestes relógios de aparato. A técnica usada foi retomada à Idade Média: o cloisonné. Pequenos fios de ouro criavam o motivo decorativo desejado que depois era preenchido por coloridos esmaltes.

Com alguma desilusão Lucien Falize reconhecia que o mercado francês não estava ainda preparado para “gostar das coisas modernas”, por isso, em 1889, escrevia no Rapport du Jury da exposição Universal de Paris “…É para Londres que compusemos os dois relógios que expomos. Um é uma preciosidade em que a cinzelagem assume o principal papel; Joindy e Déloye modelaram-lhe os ornamentos e as figuras, pertence a Lady Scott”.

Gustave Déloye (1838-1899) estudou na École des Beaux Arts de Paris, pintor e escultor expõe sem interrupção durante cerca de 30 anos no Salon da Académie des Beaux Arts.

Executou escultura para o espaço público, mas também peças de escala reduzida, numismática e medalhística.

Joseph-François Joindy (1832-1906) escultor, medalhista, numismata participou também na decoração de um outro relógio de aparato para um concorrente: a Maison Vever (hoje na coleção Khalili).

Leroy et Fils

Entre as firmas que trabalharam para a Bapst e Falize, conta-se a Leroy et Fils, famosa casa relojoeira de Paris. Fundada no século XVIII, faz parte das casas fornecedoras da corte francesa através de reputados mestres como Julien (1686-1759) e Pierre Le Roy (1717-1785). A invenção do relógio com segundos e a determinação precisa da longitude no mar, valeram-lhes o reconhecimento e notoriedade no meio, inclusivamente por parte do rei. Sem descendência directa, após a morte de Pierre a firma LeRoy é fundada por um aprendiz de Pierre: (Basile)-Charles Le Roy.

Superou as vicissitudes da revolução francesa, tornando-se uma das marcas favoritas entre os oficiais do exército napoleónico. Em 1805, passou a ser fornecedor da casa imperial ao ser-lhe atribuído o titulo de Horloger de l’Empereur e Horloger de Madame Mère por Napoleão Bonaparte e em 1835 Horloger du Ministere de la Marine.

Em 1854, abre a sua primeira filial em Londres, sob a designação de Le Roy & Sons na Regent Street 296 (e posteriormente Regent Street 211), tendo-se tornado fornecedor (também) da corte inglesa. A firma subsistiu até 1952.

Descrição / Decoração: significado

O relógio em prata “feito para Lady Scott”, é de gosto neo-renascença, em forma de torre quadrangular. O telhado, rematado por pináculo, é decorado por motivo em forma de “laço”. Apresenta dois mostradores em esmalte decorados por entrelaçados cloisonné, com numeração romana, sob os quais as datas de 1525 e 1880, respectivamente.

Por cima de um dos mostradores, figura feminina reclinada simulando o despertar, encostada a um pequeno sino percutido por um putto, junto do qual canta um galo, clara alusão ao nascer do dia. Sob o mostrador, a data de 1880, (data da encomenda / execução do relógio?).

Do lado oposto, uma figura feminina reclinada, lê junto a uma lamparina que um putto está prestes a apagar. Ao seu lado, uma coruja ave nocturna, símbolo de sabedoria (já) na Grécia Antiga, aparecendo associada à deusa Atena. Sob o mostrador, a data de 1525 (ainda por identificar).

Perfil quadrangular, com cantos rematados por figuras femininas assentes sobre colunas, que deverão representar as várias fases do dia conforme legenda em filactera: aurora, matutinum, mediusdies e vesper.

Da mitologia grega veio a inspiração para a decoração das faces do relógio, numa alusão à passagem do tempo: a lenda das três moiras (na Grécia ou parcae em Roma).

Em painéis dourados, enquadrados por pilastras decoradas por motivos neorrenascença de jarras com flores e pássaros e capiteis rematados por mascarão, foram representadas Cloto, Láquesis e Atropo.

Mencionadas por Homero e posteriormente por Hesíodo, as três deusas controlavam o destino e o tempo de vida dos mortais: Cloto / Nona – torce / fia o fio da vida, Lachesis / Decuma – mede a extensão do fio da vida, Atropo / Morta – corta o fio da vida no seu final.

O quarto painel, também de inspiração mitológica clássica, baseia-se noutra lenda: Clio – uma das nove musas ou ninfas, filhas de Zeus e de Mnemosyne. Musa da História e da memória por ter inspirado poemas, textos, canções assentes no passado. É representada segurando pena e pergaminho.

A peça está puncionada (duas vezes) com a marca cabeça de Minerva 1 de Paris, correspondente a prata de 0,950/1000, em uso a partir de 1838.

Na base apresenta ainda a marca do ourives (Bapst et Falize) BF entrelaçados por fita de onde pende “pérola em lágrima”. Na fita pode ler-se gravado: ADAMAS MARGARITA.

No lado oposto, igualmente gravado, Leroy et Fils. 211 Regent St. London, marca do relojoeiro, indicando que o mecanismo foi feito em Inglaterra, por este fabricante francês.

Finalmente, as outras inscrições, referem-se às diversas funções do relógio: Avance, Retard / Pt. sonnerire, Silence, Gde. sonnerie / Mouvement, Sonnerie.

Quanto às complicações sonoras, o seu mecanismo acciona um sinal sonoro das horas e dos quartos (grande sonnerie). A petite sonnerie apenas toca aos quartos de horas.

Museu Medeiros e Almeida - Relógio Bapst et Falize e Leroy et Fils

Sabendo-se apenas pela referência de Lucien Falize que o relógio foi feito para Lady Scott, não foi possível até ao momento obter dados sobre a quem se refere este patrono inglês do ourives. No entanto, podemos aventurar hipóteses como por exemplo, Charlotte Anne Montagu Douglas Scott, duquesa de Buccleuch e Queensberry, (1811-1895), contemporânea de Falize e apreciadora de artes decorativas francesas, ou eventualmente a sua nora Louisa Jane Montagu Douglas Scott, (1836-1912).

Exposição Universal de Paris de 1889

Nascida em 1851, em Londres a 1ª Exposição Universal foi o culminar de um percurso iniciado ainda em final do século XVIII, mas essencialmente feito ao longo da 1ª metade do século XIX, por várias mostras francesas de carácter industrial que pretendiam promover (e exaltar) a qualidade industrial francesa face à inglesa. De dimensão mais reduzida estes eventos realizaram-se entre 1798 e 1849 ascendendo progressivamente.

Ironicamente, acabou por ser Inglaterra a antecipar-se e a apresentar as condições que permitiram a organização da 1ª Exposição Universal, onde participantes estrangeiros foram admitidos, ao contrário do que acontecia em França, por receio da concorrência estrangeira. Sucesso retumbante, a exposição atraiu mais de 6 milhões de visitantes e milhares de expositores. Estava aberto o caminho para a organização das grandes feiras internacionais.

A 1ª grande exposição internacional organizada em França foi em 1855, em Paris, tendo como novidade a construção de pavilhões permanentes e não de arquitetura efémera como até então se fazia. Paris tornou-se a cidade que maior número de exposições acolheu ao longo do século XIX (1855, 1867, 1878, 1889, 1900).

 

Todos os eventos se pautaram sempre pelo aumento do espaço da feira, de expositores presentes e visitantes, passando este a ser um importantíssimo, se não o principal, meio de divulgação dos produtos, tecnologia, inovação, arte, tradição, de cada país presente.

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Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France

Em 1889, a arquitectura do ferro marca a exposição através da presença na torre Eiffel e no Palais des Machines. A esplanada des Invalides, o palais du Trocadéro e o Champs de Mars são ocupados pela exposição, para poderem albergar os 61.722 expositores que estiveram patentes e os 32.250.297 visitantes. Actualmente, da grandiosidade desta exposição, apenas simbolicamente a torre Eiffel subsiste.

Proveniência

No arquivo do Museu Medeiros e Almeida apenas consta uma fotografia a preto e branco referente ao relógio, em cujo verso estão indicadas em inglês as características do mesmo assim como, o nome de uma casa de fotografia . Esta é a única pista que possuímos sobre a sua eventual proveniência de aquisição (Inglaterra?).

Cristina Carvalho
Museu Medeiros e Almeida

 

Agradecimentos: A autora deseja agradecer a colaboração através da disponibilização de informação por parte de Katherine Purcell, Cindy Dufournier e Victoria Jenner.

 

Como citar / How to cite: Carvalho, Cristina (2023). O aparato das horas. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida. https://www.museumedeirosealmeida.pt/o-aparato-das-horas.

 

NOTA: A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.

Autor

Germain Bapst (1853-1921); Lucien Falize (1839-1897) / Leroy & Fils (1854-1952)

Data

Século XIX, c. 1880-1888

Local

França e Inglaterra

Materiais

Prata, ouro, metal e esmaltes

Dimensões

35 x 15,3 x 15,3 cm

Category
Destaque, Relógios Franceses