PEÇA EM DESTAQUE CMMA – Fevereiro 2021
Altar da deusa Guanyin
Província de Jiangxi, Jingdezhen, China
Dinastia Qing, período Kangxi (1662-1722)
Biscuit pintado com esmaltes sancai
Alt. 23,2 cm. X Larg. máx. 14,9cm x Prof.6,5 cm
As reservas da Casa-Museu escondem preciosidades que merecem ser “descobertas” como é o caso da peça em destaque deste mês.
Trata-se de uma rara composição escultórica, em cerâmica chinesa, representando o trono-altar de Guanyin, a divindade budista da Misericórdia, feita em biscuit, policromado com esmaltes da paleta sancai (3 cores: verde, amarelo e castanho-magenta).
Altar de Guanyin
O altar apresenta-se na forma de uma montanha escarpada, rodeada de mar, na qual a figura da deusa trona ao centro da composição, sendo ladeada, em plano inferior, pelos seus ajudantes/acólitos Longnu e Sudhana.
Sentada na típica pose real descrita desde o século 9 (sânscrito: Mahrajalilasana – laliasana) – a perna esquerda cruzada e a direita avançada com a mão sobre o joelho -, a deusa surge sobre a corola de uma grande flor de lótus branca, por sua vez assente em dois altos caules nodosos que se entrelaçam, elevando-se do fundo de mar. Ostentando o caraterístico ar sereno, o cabelo puxado para o alto num nó e ornado com uma espécie de coroa onde geralmente se representa o Buda Amitaba seu mestre espiritual, a deusa enverga um manto que cai sobre os ombros e vestes brancas. Na mão direita ostenta um espanta moscas de crina.
Os ajudantes de Guanyin são o rapaz peregrino Sudhana (também conhecido como Shancai Tongzi), figurado à direita e a Princesa Dragão Longnu à esquerda. A princesa, penteada com dois totós no alto, veste vestido comprido e largo com uma túnica por cima, segurando uma almofada sobre a qual apresenta uma joia ou o pêssego da longevidade. O rapaz veste túnica e calças largas atadas com cinto de fitas e apresenta-se com as mãos postas em atitude de oração (partidas), o joelho esquerdo dobrado projetando o pé nu para trás. Ambos são representados de pé sobre flores de lótus; ela sobre uma grande folha e ele sobre uma pétala gigante, sustentadas por caules rugosos que se elevam igualmente das águas.
A montanha-caverna, esmaltada a castanho, apresenta um raro bordo recortado, formando no topo três cogumelos lingzhi e o fundo perfurado, divide-se em três seções perpendiculares, delimitadas por altas canas de bambu com os seus típicos nós e folhagem. Nas seções vazadas dispõem-se objetos na rocha; a garrafa atributo da deusa (kalasa) à esquerda e uma pomba branca, símbolo da fecundidade.
O conjunto assenta em base semicircular onde se representa um curso de água com ondas e salpicos, de onde emerge uma grande carpa.
Bodhisattva Guanyin
No contexto da religião budista chinesa, a bodhisatva Guanyin ou Kuan Yin, “Aquela que se preocupa com os gritos [do mundo]”, é a manifestação da divindade do budismo tibetano Avalokiteshvara (sânscrito) ou o “Senhor que olha para baixo [do céu]”.
Este deus, originalmente masculino, deu origem a várias representações nos países que abraçaram o Budismo.
O Budismo chegou à China vindo da Índia na dinastia Han, por volta do ano 100 onde, devido à aceitação por parte de outras religiões chinesas como o Confucionismo e o Taoísmo, depressa se enraizou em todo o país tomando diversas formas e venerando vários deuses. O Budismo perfilha regras morais estritas bem como os ideais de renascimento e de vida após a morte.
A arte, como forma de expressão da natureza humana, vai refletir também os ideais religiosos, materializando-se em incontáveis formas.
Na China, a figura deste bodisatva, depressa se sincretizou com divindades femininas locais, nomeadamente Taoistas, passando a ser descrita e representada como uma mulher. A partir do século XII, regista-se o aparecimento de representações da divindade já acompanhada pelos seus dois acólitos que a assistem no seu trabalho.
De acordo com a lenda chinesa, uma incarnação de Guanyin (os bodisatvas incarnam), terá sido uma virtuosa princesa – Miao Shan – que se queria dedicar à religião indo contra os desejos do pai, um rei da dinastia Zhou (1050-221 a.C.), que pretendia casá-la. Contrariado, o pai condenou-a a uma vida de escravidão e maus tratos. Anos mais tarde, Miao, já bodisatva e retirada para as montanhas, salvou o pai da morte oferecendo-lhe os seus olhos e um braço, de onde resulta a ligação de Guanyin à misericórdia, perdão e compaixão demonstrada para com o pai.
A deusa Guanyin é uma das divindades mais populares na China, sendo a representação com os dois acólitos uma das suas cerca de trinta manifestações. Quando representada com uma criança nos braços liga-se ainda com a maternidade ou quando se figura com onze cabeças e mil braços relaciona-se com a proteção de todos os necessitados.
A simbologia
Na arte chinesa tudo o que é representado é simbólico, sendo necessário descodificar os símbolos para se poder compreender as representações na sua totalidade.
É o caso desta pequena composição rica em iconografia:
Nesta representação Guanyin, que significa também “nascida do lótus”, surge (tal como os acólitos) sobre uma flor de lótus (padmasana) que representa a pureza.
Na mão a deusa ostenta um afasta moscas de crina, símbolo dos monges budistas, representando o compromisso de não matar qualquer ser vivo, mas também aqui, representando o afastar dos problemas, concedido pela sua interceção. É ainda atributo de Guanyin a kalasa, garrafa que contém a água da compaixão que alivia os sofredores.
As montanhas (han) são veneradas na China desde a Antiguidade como o local de morada dos imortais – a mítica Penglai, pelo que aparecem muito referenciadas a nível iconográfico. Para comunicar com os deuses, os imperadores chineses mandaram erguer diversos templos nos seus cumes, ainda existentes e muito venerados.
A estrutura deste altar, em forma de montanha rodeada de ondas, é especificamente uma referência ao Monte Potalaka, a lendária morada de Guanyin, lugar que, a partir da dinastia Tang, os chineses identificaram fisicamente com o Monte Putuo, uma ilha-montanha localizada na costa da província de Zhejiang (sudoeste da China), pelo que a divindade também é conhecida como a Deusa dos Mares do Sul.
Foi nesta ilha que surgiram os dois acólitos, quando a deusa meditava. Esta ilha é uma das quatro montanhas sagradas do budismo chinês, tendo-se tornado, desde então, o centro da devoção a esta deusa, existindo aí inúmeros mosteiros com templos a ela dedicados, ainda hoje venerados.
O maior templo dedicado a Guanyin na China é o Templo Donglin, também na região de Xangai, onde se representa uma monumental montanha rochosa nos portões de entrada evocando a sua morada: https://en.wikipedia.org/wiki/Donglin_Temple_(Shanghai)#/media/File:Donglin_Temple_Shanghai_5.jpg
O bordo superior deste altar, formando três cogumelos lingzhi, é uma das caraterísticas da peça que lhe confere originalidade pois não conhecemos mais exemplares com esta forma. Os cogumelos lingzhi são mais uma referência, neste caso à imortalidade da deusa. Atributo dos imortais taoistas, o fungo cresce nas montanhas sagradas sendo a comida que lhes confere a imortalidade.
Quanto à demais iconografia presente nesta representação, as canas de bambu figuradas na caverna são também atributo de Guanyin evocando conceitos como a força, pois são plantas que curvam mas não quebram, a longevidade, devido à sua grande durabilidade, e a modéstia representada pela inclinação das suas folhas. A grande carpa (yu) figurada nas ondas é um também um símbolo auspicioso pois evoca a longevidade devido aos muitos anos que vive e a perseverança pois nada contra a corrente dos rios.
Altares-montanha
Não obstante as muitas representações da deusa, existem poucos exemplares desta tipologia específica – montanha-altar -, destacando-se peças da dinastia Ming em biscuit com esmaltes sancai e dos fornos Longqan, em cerâmica celadon, bem como os altares em porcelana branca (blanc-de-Chine) produzidos nos fornos Dehua (província de Fugian), do século XVII, coevos da tipologia em estudo.
Estes pequenos altares destinavam-se à devoção privada doméstica no âmbito das religiões budista e taoista, mas terão certamente também chegado à Europa – em número reduzido – como peças de luxo exótico que atraíam os conhecedores.
Este tipo de altares-montanha miniatura existem ainda com outras representações, nomeadamente figurando imortais taoistas e surgem também noutros materiais nobres e de grande significado para a cultura chinesa como o jade ou o bambu.
Peças semelhantes:
São várias as instituições museológicas que possuem peças semelhantes ao altar da Casa-Museu. Encontram-se também no mercado raros e valiosos exemplares:
Museu Britânico, Londres, Inglaterra, celadon, Lonquan província Zhejiang, Dinastia Ming, Imortais Taoistas – https://www.britishmuseum.org/collection/object/A_1929-0114-1
Museu Asian Civilisations, Singapura, blanc- de-Chine, Dehua, província Jiangxi, séc. XVII, Guanyin – http://acm.org.sg/collections/top-20-highlights/grotto-with-guanyin
Museu Benaki, Atenas, Grécia, esmaltes sobre biscuit, período Kangxi (1662-1722), Guanyin – https://www.benaki.org/index.php?option=com_collectionitems&view=collectionitem&Itemid=162&id=105829&lang=en
Museu Rijks, Amesterdão, Holanda, esmaltes sobre biscuit, período Kangxi-Yongzheng (1700-1724) – http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.3204
Museu Rijks, Amesterdão, Holanda, esmaltes sobre biscuit, período Kangxi-Yongzheng (1700-1724) – http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.1258
Vanderven Oriental Art, Holanda, esmaltes sobre biscuit, período Kangxi – Montanha Sagrada – https://www.vanderven.com/artworks/large-sacred-mountain
Vanderven Oriental Art, Holanda, esmaltes sobre biscuit, período Kangxi – rara montanha com cão de Fó – https://www.vanderven.com/artworks/lion-with-herons
Esmaltes sancai
Dinastia Tang (618-907)
Desenvolvida originalmente na dinastia Tang a partir de 700, a técnica sancai (significa três cores em chinês) consistiu na aplicação de esmaltes de três cores – verde, amarelo e branco – diretamente em peças de cerâmica (maioritariamente grés) não vidrada. Muito ocasionalmente eram também utilizados o azul (cobalto) e o preto.
Não sendo originária da China, pensa-se que esta técnica tenha chegado à China, vinda do Egito, através dos contactos resultantes da Rota da Seda. Foi praticada em três fornos do norte da China.
A policromia utilizada na época era feita à base de colorantes vegetais que produziam cores pálidas, nesta nova técnica, os esmaltes/cores eram misturas de óxidos metálicos com chumbo que resultavam em superfícies brilhantes, apesar de algumas escorrências provocadas no processo de cozedura. Estas peças pelo seu brilho e vivacidade eram muito apreciadas, pelo que a técnica conheceu grande sucesso.
Esta mistura adicionava ainda alguma plasticidade, que prevenia as rachas do vidrado, e permitia uma só queima, facilitando o processo. Antes de receber os esmaltes, o corpo das peças era banhado em cal líquida – responsável pela cor branca -, o que avivava as cores tornando-as vibrantes.
A utilização de óxidos de chumbo provocava porém, num nível de libertação perigoso para a saúde, pelo que a técnica decorativa não se aplicou em peças utilitárias, mas principalmente em figuras de enterramento como camelos, cavalos, guerreiros e guardas – são de notar as vibrantes e complexas figuras de grandes dimensões utilizadas, por exemplo para guardar templos.
Perto da cidade de Huangbao, na província de Shaanxi, escavações revelaram oficinas do século VI que forneciam peças sancai para a capital de então, Chang’an.
Por volta do século VIII, a produção deste tipo de peças decresceu tendo sido ocasionalmente praticada nas dinastias seguintes.
Dinastia Ming (1368-1644)
Durante a dinastia Ming, a técnica sancai foi novamente aplicada, quando a estética da cerâmica Tang foi largamente imitada.
Nesta época, a produção centrou-se em peças de enterramento, mas também em originais revestimentos arquitetónicos, sendo famosas as esculturas tridimensionais para decorações de telhado e os azulejos que decoravam palácios, templos e residências de oficiais.
Por esta altura, os desenvolvimentos nos fornos de Jingedzhen, a cidade da cerâmica no centro da China, estabelecida em inícios da dinastia Ming, levaram a uma evolução das técnicas de esmaltagem, vidragem e cozdura, o corpo das peças era então maioritariamente em biscuit (porcelana não vidrada) e os vidrados e esmaltes, com o equilíbrio químico dominado, eram de melhor qualidade.
Com estes materiais, o processo tornou-se mais eficiente e rápido pois não sendo necessária a primeira cozedura que transforma o biscuit em porcelana vidrada, a peça só necessitava ir ao forno após a aplicação dos esmaltes pintados que, por sua vez, eram cobertos por uma ligeira camada de esmalte transparente.
Sendo o corpo de biscuit, as peças requerem uma cozedura no forno a cerca de 900ºC/1000ºC, temperaturas mais baixas do que o chamado “grande fogo” que se situa nos 1.200ºC/1.400ºC, utilizado na produção de celadons e porcelana.
As “cores” utilizadas na pintura de cerâmica são chamadas “esmaltes” pois provêm da mistura de uma espécie de pasta de vidro, pigmentada, a partir de então, com óxidos metálicos. Deixando para trás o problema da libertação do chumbo, para obter a cor verde juntava-se cobre, para o amarelo utilizava-se o ferro e junta-se uma nova cor a esta paleta, o castanho (paleta que vai do escuro ao mais claro passando pelo roxo) para o qual se juntava manganês. Nesta época o amarelo é uma cor forte, escura (amarelo torrado) pois o amarelo mais claro (amarelo limão) só aparecerá mais tarde, derivando do antimónio. As zonas sem aplicação de esmaltes ficam em branco que não corresponde, portanto, a uma cor, sendo deixadas em biscuit ou então cobertas pelo vidrado transparente.
Dinastia Qing (1644-1911)
Já na dinastia Qing, a dinastia Manchu chegada ao poder em 1644, de modo a criar aceitação por parte das etnias tradicionais chinesas, muitas técnicas antigas foram retomadas, nomeadamente durante o reinado do imperador Kangxi (1662-1722), quando o interesse pela produção de porcelana renasceu e os fornos de Jingedzhen (província de Jiangxi) foram reativados.
Foi o caso da técnica sancai que nesta altura produziu peças maioritariamente dedicadas ao mundo dos literatti (eruditos) e do budismo (como o altar em estudo).
Numa imitação da decoração menos cuidada das peças Tang, por vezes os esmaltes eram aplicados com um pincel largo, criando um padrão manchado, tendo estas peças ficado conhecidas como hupiban – “tiger skin” (pele de tigre) na China e “egg and spinach” (ovo e espinafre) no ocidente.
Caraterístico desta produção na época Kangxi, apesar de se tratar de uma produção tecnicamente barata, é a sua qualidade técnica, resultando em peças de complexa produção, tridimensionais e cheias de minuciosos detalhes, de grande teor decorativo.
É o caso do altar de Guanyin da Casa-Museu que foi inteiramente feito à mão, com os elementos mais pequenos sendo adicionados à composição principal, e uma cuidada atenção ao pormenor que se verifica na delicadeza das pétalas dos lótus, no rosto da deusa, nas mãos e dedos das figuras ou nas ondas e salpicos do mar.
Como já referido, a produção desta tipologia destinava-se principalmente ao mercado interno, fazendo-se, porém, em muito menor escala do que a popular porcelana de esmaltes verdes (a chamada “família verde”) ou com decoração azul e branco, que eram produzidas em enormes quantidades tanto para o mercado doméstico como para o de exportação.
Em finais do século XIX e inícios do século XX, a técnica sancai esteve novamente em voga, altura em que foi mais exportada e apreciada na Europa.
É curioso o facto que esta produção não era valorizada pelos chineses enquanto obras de arte devido a tratarem-se de objetos de enterramento logo, vistos como dos espíritos.
As peças sancai das dinastias Tang e Ming só foram conhecida em finais do século XIX, inícios do século XX quando, por ocasião das escavações relacionadas com o estabelecimento (tardio) dos caminhos de ferro na China, enterramentos Tang revelaram peças sancai, só então devidamente estudadas e valorizadas.
Proveniência
Os arquivos da Casa-Museu não guardam qualquer documentação relacionada com a compra desta peça, levando a crer que possa ter sido adquirida no mercado antiquário em Lisboa. Esta presunção está relacionada com a quantidade de objetos da coleção, adquiridos em Portugal, sobre os quais não existe ou é rara a documentação relacionada.
Medeiros e Almeida (e eventualmente o vendedor), não se apercebeu certamente do valor desta peça, o que nos deixa muito curiosos quanto à sua proveniência.
Perante o exposto, o altar de Guanyin da Casa-Museu afigura-se uma rara peça destinada ao mercado interno chinês, de cuidada e minuciosa execução, que merece o seu lugar em exposição.
Tendo estado nas reservas, a peça é, pela primeira vez, aqui estudada.
Encontrámos, pois, uma raridade (mais uma 😊).
A Casa-Museu agradece a colaboração do antiquário Vanderven Oriental Art, na cedência de imagens.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
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Webgrafia
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