A Pintura Romântica
O movimento romântico do século XIX surgido por oposição ao neoclassicismo, caracteriza-se pela novidade, a individualidade e a valorização da emoção, da paixão e do fantástico. Sinal de novos tempos, opõe-se deliberadamente à postura rigorosa da produção académica na sua atenção ao desenho, aos contornos e às regras técnicas e na sobrevalorização dos géneros chamados ‘maiores’.
O romantismo é uma atitude de vida baseada na sensibilidade e no questionamento, plasmada em certas características formais como o recurso a temáticas alternativas, o uso da cor apoiado não em critérios de verismo mas na sua estrutura, a exploração das relações cromáticas, a prática divisionista da pincelada que desconstrói o racionalismo da pintura tradicional, bem como uma menor atenção aos pormenores e acabamentos.
Delacroix Romântico
Ferdinand-Victor Eugène Delacroix (Charenton-Saint-Maurice, 1798 – Paris, 1863) é tido como um dos primeiros pintores românticos. Apesar de ter tido lições de pintura, Delacroix é um autodidata sendo a sua maior escola o estudo do trabalho dos outros que, por exemplo, visitava no Louvre. Apresentou-se no Salão de 1822 com a ”Barca de Dante”, tendo assim iniciado uma longa e brilhante carreira, pautada pela diversidade de géneros e técnicas.
Quanto à personalidade pictórica, Delacroix abordou temáticas novas e dedicou-se a uma pesquisa que estava secundarizada; a via da cor, para tal, distanciou-se das investigações do desenho, o que lhe foi possível por um conhecimento profundo da história da pintura, tornando-se um estudioso das cores e das suas relações a partir do estudo rigoroso da literatura coeva como os trabalhos do químico Chevreul (1838) ou o tratado de J.Burnet (“Notes Pratiques sur l’emploi de la couleur en peinture”, 1827). Nesta vertente, o artista destaca-se dos seus contemporâneos; o epíteto que mais identifica Delacroix é o de um artista moderno.
Delacroix Retratista
Sobre Delacroix retratista não se escreveu senão de passagem, apesar de o artista ter produzido cerca de sessenta bons retratos, entre eles alguns autorretratos, e de gostar do género já que escreveu que era ‘estúpida’ a ideia de que o retrato era um género de segunda.
Conforme registado várias vezes no seu Journal (diário), a viagem que empreendeu a Londres em 1825, influenciou-o pelo uso da cor, pela espontaneidade da aguarela (Constable e Turner) e pelo trabalho dos retratistas ingleses como Reynolds, Hoppner, Raeburn e Lawrence, que viriam a ser decisivos para a sua formação no que diz respeito à sua vertente colorista e à sua faceta (pouco valorizada) de retratista.
Todos os seus retratos são de meio corpo e a maioria não apresenta fundo – como o retrato da Casa-Museu – sendo esta tipologia largamente utilizada pelos seus contemporâneos atrás referidos. Como retratista e apesar de estar condicionado pelo carácter de verismo que a encomenda de um retrato supõe, Delacroix preocupou-se em transmitir, através de poucos meios e no seu característico “inacabamento” e ausência de pormenores, o carácter psicológico dos retratados centrando-se nos rostos que detêm grande expressividade.
A Encomenda, o retratado
Em 1824, Prosper Goubaux (1795-1859), amigo e antigo colega de liceu de Eugène Delacroix, director e cofundador (em 1820) do Instituto Saint-Victor, um colégio de rapazes em Paris, encomenda ao pintor, pela quantia de 100fr. cada, uma série de retratos dos alunos laureados no “Concours Général” de cada ano da sua instituição.
A série viria a ser produzida ao longo de dez anos (1824-1834) e as obras ficaram conhecidas como os retratos da “Pension Goubaux”. Os retratos destinavam-se a decorar o salão de recepção da instituição localizada (ainda hoje) no Boulevard des Batignolles em Paris. Dos dez, só é conhecida presentemente a localização de seis, em instituições museológicas e coleções privadas em todo o mundo (para além de Amédée):
O retrato da Casa-Museu, datado de 1830, representa Amédée Berny d’Ouville (1816-1854), aluno que ganhou o prémio de Latim desse ano. De Amédée sabe-se que foi o segundo dos seis filhos de Charles Berny d’Ouville, pintor e miniaturista francês com alguma visibilidade. Eugène, o filho mais velho, seguiu a passada artística paterna mas Amédée tornou-se um homem de negócios. Em 1854 instalou-se com a família em Nova Orleães efetuando diversas viagens profissionais à Europa. Em 1854 o regresso a casa acabou em tragédia quando o seu navio (o Arctic) foi abalroado e se afundou matando todos os passageiros.
Reportando-se à série dos retratos Goubaux, Roubaut, autor do primeiro catálogo raisonné de Delacroix (1885), afirma que a sinceridade de Delacroix tem a candura de um debutante. Conta-se um episódio que se terá passado com o irmão do retratado, Eugène d’Ouville (também ele um dos retratados), que, ao ver o quadro do irmão uns anos após a sua morte, terá exclamado: “É mesmo o meu irmão! Ele tinha mesmo esta cara de fuinha… » o que suscita o comentário de Roubaut: “…Tal é o mérito particular dos retratos pintados por Delacroix. Não se deve procurar a semelhança fotográfica mas o que estamos sempre certos de encontrar é a exatitude absoluta e caraterística do tipo…” (ROUBAUT: 1885, p.92)
A Obra – Análise Formal
Pintura a óleo sobre tela, de formato oval, representando, ao centro da tela, um jovem rapaz (catorze anos), retratado a meio corpo e posando a três quartos. O jovem de olhos acinzentados, cabelo castanho e testa alta, veste sobrecasaca castanha com grande gola e lapela triangular, aberta, camisa branca de golas engomadas e levantadas, colete amarelo, abotoado e gravata-lenço de seda cor-de-rosa, atada com nó.
A paleta de cores utilizada é romântica, sendo as cores responsáveis pela modelação do personagem. Trata-se de cores puras e intensas que se complementam como o castanho da casaca com o amarelo do colete, o rosa da gravata a que se apõe uma camada de branco com os tons acastanhados do fundo e que se correspondem e avivam mutuamente, valorizando o conjunto ou ainda nas diferentes tonalidades das madeixas do cabelo, num jogo colorista que Delacroix domina. A pincelada já tem algo de divisionista, notando-se na gravata-lenço e na lapela o sulco do pincel, a fluidez da camada cromática, numa sensação de inacabamento que virá a ser explorada no impressionismo.
O fundo revela liberdade compositiva pois é neutro, vivendo de variações da paleta de castanhos – do castanho escuro ao avermelhado e ao dourado – e da delimitação em torno do personagem em tons mais claros, o que empresta uma evidente luminosidade e destaque à cabeça, trazendo protagonismo ao retratado. O jogo de sombras e luz (não tanto de claro-escuro que Delacroix considera ser um recurso académico) que anima a composição, faz-se tanto pela posição do retratado que, avançando o braço direito, provoca sombra da lapela da casaca no colete, do colete na gravata e da camisa no queixo e escurece a zona do braço esquerdo, como pela posição da cabeça, que virando-se para o espectador a três quartos, deixa parcialmente escondida e na sombra a face esquerda.
Veja-se, por comparação, um retrato da mesma época, produzido segundo os cânones académicos, pelo pintor oficial da Academia; Ingres. O retrato de “Monsieur Bertin” (1832 – M. Louvre) segue a mesma tipologia; um retrato de homem sem fundo mas as comparações esgotam-se aqui; o desenho de extrema qualidade bem como a quase ausência de cor e o dramatismo do claro-escuro, a imensidade de pormenores – quase ausentes em Amédée – elucidam os lugares diferentes (opostos) que os dois artistas ocupam.
A Obra – Análise Iconográfica
Esta obra não apresenta carga iconográfica ou simbólica, senão no sentido em que se apresenta ao espectador um jovem do seu tempo, moderno e pertencente a uma classe alta, imediatamente identificado pelo vestuário de qualidade e corte de cabelo contemporâneos.
Este jovem moderno é o que viria ser descrito por Charles Baudelaire no ensaio “O Pintor da vida moderna” (1863); Amédée, um jovem de boas famílias, de bonitas e perfeitas feições, orgulhoso aluno de uma instituição privada e ganhador do “Concours Général”, é facilmente reconhecido como tal, pela altivez do olhar, pose orgulhosa e porte de alguém consciente da sua posição. Para além da expressividade do rosto e linguagem corporal, Amédée transmite os valores da sua época – uma época de mudanças sociais e políticas – pelo modo impecável como enverga o vestuário “à moda”; o casaco de três quartos (“redingote”) é usado aberto com a gola levantada atrás, as golas da camisa levantadas que ornamentam o rosto e escondem o pescoço lançando o queixo para cima, o laço alto da gravata de seda e o modo como usa o penteado da moda, com o cabelo penteado para trás e as grandes patilhas penteadas para a frente chegando aos olhos e ornando a fronte, descrevem ao espectador um homem moderno, do seu tempo.
O Retrato Romântico
Sendo o romantismo, acima de tudo, um estado de espírito, tipificar um retrato romântico torna-se difícil pois, condicionado pela encomenda, o artista tem menos campo para a expressão dos seus sentimentos, do seu estado de alma.
Para descrever as grandes obras de Delacroix de temática histórica, mitológica ou contemporânea enquanto obras românticas, fala-se primeiro em atitudes e emoções (em liberdade do artista) e depois em técnicas e meios, no retrato, não havendo abordagem da temática em si, a análise deverá ser conduzida no sentido do tratamento plástico e pictórico do retratado, apoiando-se numa descrição formal em que se apontam as características técnicas a que a vertente romântica recorre e da interpretação, mais subjetiva, da capacidade de captação na tela do carácter dos retratados; dos seus traços psicológicos, pelo que deverão ser analisados pormenores como a pose e o olhar que conduzem o observador a leituras, por exemplo, como a identificação de um orgulhoso jovem como Amédée. Será porventura a capacidade de transmissão dos traços psicológicos a vertente que melhor poderá caracterizar um retrato romântico? Parece redutor. A questão fica pois em aberto – O retrato de Amédée Berny d’Ouville mais que um retrato romântico é um retrato feito por um romântico.
Proveniência:
Encomenda ao artista de Prosper Goubaux, diretor da Institution Saint-Victor (Liceu Chaptal), 45, Blv des Batignolles, Paris
Colecção do patrono das artes e coleccionador Gustave Arosa (1830-?), Paris
Leilão Arosa, 17-18 de Dezembro de 1895, lote 16, adquirido por Durand-Ruel para E. Degas
Colecção do pintor Edgar Degas (a colecção de Degas foi leiloada depois da sua morte)
Leilão Degas, 26 e 27 de Março, 15 e 16 Novembro, 1918
(Nota: O pintor Edgar Degas reuniu uma grande colecção de pinturas dos seus contemporâneos, após a sua morte em Dezembro de 1917, a sua colecção foi leiloada em 1918, após inventário feito pelos antiquários franceses Joseph Durand-Ruel e Ambroise Vollard, onde constava este retrato.)
Colecção Dr. Georges Viau, Paris – Adquirido no 1º leilão Degas, 1918, lote 28, por 5.000 Francos Leilão Viau-Bellier, Ader et Baudoin, Paris, 1942, adquirido por Jacob Goldsmith (1884 Cernovitz-1943 Lublin), Berlim
Colecção de J. Goldschmidt, Matthieukirschestrasse, Berlim
Adquirido por Medeiros e Almeida em leilão da Sotheby´s, Londres, de 28 de Novembro de 1956, lote 123, por £ 8.000, através de William Drown, 110 New Bond Street, Londres
Exposições:
Exposição “Delacroix, Centenário do Romantismo”, Louvre, Junho-Julho 1930
Exposição “Masterpieces of Art”, World’s Fair, Nova Iorque, nº 245, 1940
Exposição “Eugène Delacroix”, Wildenstein Gallery, Nova Iorque, nº 5, 1944
Exposição “Delacroix, An exhibition of paintings, drawings and lithographs”, Arts Council de Edimburgo e Londres, 1964
Exposição “The Private Collection of Edgar Degas”, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Outubro de 1997 a Janeiro de 1998
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Referências Bibliográficas:
BAUDELAIRE, Charles; posfácio e trad. CRUZ, Teresa; O Pintor da Vida Moderna, Lisboa: Editora Vega,1993
BAUDELAIRE, Charles; GAUTIER, Théophile; L’Art Romantique, Paris: Calmann Lévy Éditeur, 1900
CLARK, Kenneth Mackenzie; The Romantic Rebellion: Romantic versus Classic Art, London: John Murray, 1976
DELACROIX, Eugène; Écrits d’ Eugène Delacroix: Extracts du Journal, des Lettres et des Oeuvres Littéraires, Paris: Plon, 1942
DELACROIX, Eugène; GUERREIRO, Fernando (trad.); Diários (extractos), Lisboa: Editorial Estampa, 1979
DUMUR, Guy; Delacroix, Romantique Français, Paris: Mercure de France, 1973
ESCHOLIER, Raymond; Eug. Delacroix, Paris: Éditions Cercle D’Art, 1963
FRASCINA, Francis, Modernity and Modernism: French Painting in the Nineteenth Century, New Haven London: Yale University Press, 1993
JOHNSON, Lee; The Paintings of Eugène Delacroix: A Critical Catalogue, Oxford: Clarendon Press, 1981-2002
LE BRIS, Michel; Journal du Romantisme, Genève: Skira, 1981
ROUBAUT, Alfred (ed. lit.); CALMETTES; Fernand; CHESNEAU, Ernest; L’Oeuvre Complet d’Eugène Delacroix: Peintures, Dessins, Gravures, Litographies, Paris: Charavay Frères, 1885
SÉRULLAZ, Maurice; Delacroix, Paris: Fayard, 1989
Publicações Periódicas:
AAVV; O Retrato, Revista de História da Arte, Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – UNL, nº5, Lisboa: Instituto de História da Arte, 2008
POLTIMORE, Mark; BOWLES, Angela Linsday; AAVV, Delacroix and the Goubaux Portraits, Christie’s International Magazine, Vol. XIII, Nº 9, London: Christie, Manson and Woods Ltd., Novembro 1996
Catálogos de Exposições:
AAVV; A Arte do Retrato. Quotidiano e Circunstância, GIL, José; “O Retrato”, SILVA, Raquel Henriques, “O Retrato em meados do século XIX”, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999
EITNER, Lorenz; Delacroix, An exhibition of paintings, drawings and lithographs, Arts Council of Great Britain and The Edinburgh Festival Society, Londres: The Arts Council, 1964
DUMAS Ann; IVES, Colta; STEIN, Susan Alyson; TINTEROW, Gary; AAVV, The Private Collection of Edgar Degas, New York: The Metropolitan Museum of Art, 1997
NOON, Patrick; Constable to Delacroix, British Art and the French Romantics, London: Tate Publishing, 2003
Eugène Delacroix (1798-1863)
1830
Paris, França
Óleo sobre tela
Alt. 62 cm x Larg. 50 cm