A autora
Anna Ruysch foi uma pintora de flores que trabalhou entre o final do século XVII e a primeira metade do século XVIII, sendo o seu trabalho totalmente influenciado pelas caraterísticas estilísticas que marcaram o período áureo da pintura holandesa seiscentista, caraterizado pela vertente do realismo nórdico.
Anna Elisabeth Ruysch era filha do botânico e anatomista holandês Frederik Ruysch (1638-1731) e da sua mulher Maria Post (1643-1720), e irmã mais nova da pintora Rachel Ruysch (1664-1750). Durante a infância de Anna, a família muda-se de Haia para Amesterdão onde o pai vai lecionar anatomia na escola médica, Frederik também pintor amador, é exímio desenhador de naturezas mortas de cariz anatómico onde se representam com minúcia científica insetos, flores e plantas, motivos que se tornariam presentes na pintura das filhas desde a sua juventude. Entre 1679 e 1683, Rachel é aprendiz do pintor Willem van Aelst (1627-1683), especializado em naturezas mortas desta tipologia, assumindo-se que a irmã mais nova tenha seguido o mesmo caminho já que o seu trabalho (na realidade o de ambas), tem afinidades estilísticas com o do mestre.
Rachel é a pintora de naturezas mortas mais admirada, prolífera e bem documentada da Idade de Ouro holandesa tardia. Apesar de mulher num meio profissional maioritariamente masculino e mãe de dez filhos, atingiu grande reconhecimento entre os seus pares, tendo sido aceite como membro em diversas confrarias e guildas de pintores, nomeadamente a de Haia (algo inusitado à época).
Naturezas mortas de Rachel Ruysch – Rijksmuseum, Amesterdão:
http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.6771
http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.7723
Rachel foi ainda pintora oficial da corte de Johann Wilhelm, Eleitor Palatino de Düsseldorf, onde viveu com o marido, o retratista Jurrian Pool, até à morte do príncipe (1716). A família Ruysch vivia no Bloemgracht (do holandês: canal das flores), nesse mesmo canal vivia também um outro aluno de Willem van Aelst especialista em naturezas mortas: Ernst Stuven (1657-1712).
Não trabalhando com intuito comercial, Anna deixou de pintar quando casou com o comerciante de pintura Isaak Hellenbroek (1664-1749) porém, após a morte do marido, retomou a pintura e, juntamente com o filho Frederik Henry, deu continuidade ao negócio herdado, vendendo inclusivamente trabalhos do seu pai e da irmã. Anna morreu aos 88 anos em Amsterdão.
Apesar do trabalho das duas irmãs ser muito parecido, ao contrário da irmã, Anna raramente assinava os seus trabalhos, pelo que apenas um pequeno número de pinturas, pode, com certeza, ser atribuído a ela (cerca de dez obras assinadas). Ultimamente têm surgido estudos académicos que ajudam a clarificar as diferenças entre o trabalho de Rachel e Anna, muitas vezes confundido, estabelecendo as corretas atribuições.
O trabalho das irmãs é representativo deste género, no qual encontramos o maior número de mulheres artista cujos nomes chegaram aos nossos dias.
Seguidora do movimento rococó, Anna faz composições de arranjos de flores caraterizados pelo uso cuidado da cor (caraterístico do último quartel do século XVII), pela representação de cariz realista e de grande atenção ao detalhe, num gosto pela natureza e pela curiosidade científica que lhe foram transmitidas pelo pai.
Sobre fundo escuro que destaca os motivos, intensifica as cores e acrescenta um cariz dramático ao conjunto, como era hábito nas naturezas mortas deste período, Anna pintou composições florais que preenchem a tela, assimétricas, com flores caídas para todos os lados, dispostas em equilíbrios por vezes impossíveis, mas que transmitem dinamismo. Ainda como recurso, Anna coloca as jarras sobre um tampo de mesa, criando perspetiva e centra a luminosidade no ramo de flores, conseguindo um efeito de maior profundidade.
As diferentes espécies de flores, tanto abertas como em botão ou já mesmo apresentando sinais de degradação convivem na tela, mas dificilmente conviveriam na natureza, já que florescem em alturas diferentes do ano. Diversos frutos e pequenos insetos pintados com grande realismo, povoam as composições de Anna que distribui uvas, pêssegos e ameixas bem como borboletas, minhocas, caracóis, moscas e salamandras pelas suas pinturas, numa nota caraterística dos Ruysch.
Biografia e obras de Anna Ruysch – RKD: https://rkd.nl/explore/artists/69062
Anna e Rachel são contemporâneas de outros grandes nomes da natureza morta floral como Jan van Huysum, Abraham Mignon, Jan Davidsz de Heem e Simon Verelst, sendo que estes dois últimos estão representados com naturezas mortas na coleção do Museu (ambas as pinturas foram certificada por Fred Meijer).
Conheça outras obras de Anna Ruysch: https://rkd.nl/nl/explore/images#filters[kunstenaar]=Ruysch%2C+Anna
A atribuição
De acordo com a atribuição do antiquário que vendeu as obras a Medeiros e Almeida, as duas pinturas da Casa-Museu estavam atribuídas ao pintor holandês Jan van Huysum (1682-1749), um pintor de flores dos mais importantes deste género, contemporâneo das irmãs Ruysch.
A atribuição a Anna Ruysch foi feita em junho de 2016, pelo especialista holandês em natureza morta floral, Dr. Fred G. Meijer, investigador do RKD, o Instituto Holandês de História da Arte (Netherlands Institute for Art History) que, ao estudar uma outra pintura pertencente ao espólio da Casa-Museu, solicitou informação sobre as restantes naturezas mortas com flores da coleção.
Em relação a estas duas obras, o referido especialista emitiu a seguinte opinião:
“… the pair called Jan van Huysum can in my view be attributed to Anna Ruysch (1666-1741) the younger sister of Rachel Ruysch. I have sent the photos to my friend and colleague Marianne Berardi in Cleveland, who wrote a dissertation on Rachel Ruysch’s early work and we have both done research on Anna. She just wrote back saying that she fully agrees that your pair is in all likelihood by Anna Ruysch. They probably date from c. 1685-1690.
Two tulips in the second one are the same as in another painting we attributed to Anna: https://rkd.nl/explore/images/31002 and which actually derive from an example by Willem van Aelst, who supposedly taught both sisters. Closely related is also: https://rkd.nl/explore/images/6167 , as well as this signed example: https://rkd.nl/explore/images/194147 “
O par atribuído a Jan van Huysum, pode, a meu ver, ser atribuído a Anna Ruysh (1666-1741), a irmã mais nova de Rachel Ruysch. Enviei as imagens à minha amiga e colega Marianne Berardi (historiadora de arte), em Cleveland, cuja dissertação aborda o trabalho inicial de Rachel Ruysch, tendo feito, e eu também, investigação sobre a Anna. Ela acaba de me responder que concorda plenamente que o vosso par é em tudo semelhante ao trabalho de Anna Ruysch. Datam provavelmente de entre 1685-1690. Duas tulipas na segunda pintura são as mesmas de outra pintura que atribuímos a Anna (…) e que derivam de um exemplo de Willem van Aelst, que supostamente ensinou as duas irmãs. Também relacionada é esta pintura (…) bem como este exemplo assinado (…). (Tradução livre da autora)
A datação das obras sugerida pelos especialistas situa as pinturas na juventude de Anna já que as terá pintado ainda no final do século XVII, com cerca de 19-23 anos.
Proveniência
De acordo com a documentação do vendedor, as duas pinturas terão pertencido à coleção de José Gaspar da Graça (Braga, 1815 – Porto 1887). Gaspar da Graça foi um abastado comerciante da cidade do Porto, irmão da ordem de S. Francisco, testamenteiro e herdeiro do Conde de Ferreira. Homem de avultada fortuna, era considerado por muitos “o senhorio do Porto” pois possuía numerosos prédios de rendimento, bens e quintas na Maia e em Arouca, provenientes da família do barão de Magalhães. Dedicando-se de início ao comércio de artigos de papelaria, Gaspar da Graça que tinha origens muito humildes, conseguiu reunir uma enorme fortuna, devido ao comércio de madeiras com Inglaterra (por barco). Na narrativa popular, que dificilmente entendia o sucesso e inteligência natural para os negócios de José Gaspar da Graça, atribuía-se a sua fortuna ao contrabando, tendo sido criado o mito que existiam túneis que ligavam as suas propriedades à ribeira do Porto.
O par foi adquirido por Medeiros e Almeida, em leilão da Casa Liquidadora Leiria & Nascimento, L.da (292, R. do Ouro, Lisboa), realizado no Porto, a 17 de Novembro de 1946 (lotes 230 e 231), tendo as pinturas sido arrematadas por 30.000$00 cada.
De acordo com os registos do museu, o colecionador mandou restaurar as obras, em maio de 1947, na Oficina Nacional de Beneficiação da Pintura Antiga, Escola de Belas Artes, Lisboa, cujo diretor era o Mestre-Restaurador Fernando Mardel Araújo (1884-1960).
Nota: A Casa-Museu agradece a generosa colaboração na identificação da autoria, do investigador e historiador de arte holandês, Dr. Fred G. Meijer do Instituto Holandês de História da Arte, RKD.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
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GROOTENBOER, Hanneke; The rhetoric of perspective: realism and illusionism in seventeenth-century dutch still-life painting, Chicago; London: University of Chicago Press, 2005
SKIRA, Pierre; La nature morte, Genève: Skira, 1989
VILAÇA, Teresa, ALMEIDA, João (Coord.); Realidade e Capricho A pintura flamenga e holandesa da Fundação Medeiros e Almeida, Lisboa: Fundação Medeiros e Almeida, 2008
WOLDBYE Vibeke [ed.]; Flowers into art: floral motifs in European painting and decorative arts, translation: David Hohnen, The Hague: SDU Publishers, 1991
Revista “artes e leilões” janeiro 2009
Webgrafia
HOCHSTRASSER, Julie Berger; Still life and trade in the dutch golden age, 2007 – https://www.brown.edu/academics/renaissance-early-modern-studies/sites/brown.edu.academics.renaissance-early-modern-studies/files/uploads/Hochstrasser,%20Still%20Life%20and%20Trade%20(12-11-13).pdf
Online Dictionary of Dutch Women
Rijksmuseum – https://www.rijksmuseum.nl/en/rijksstudio/works-of-art/still-lifes
RKD – Netherlands Institute for Art History – https://rkd.nl/nl/