Conjunto de 4 cadeiras de braços, um canapé e um cadeirão de braços, em madeira de faia entalhada e dourada, estofado a tapeçaria da Manufatura de Beauvais.
De proveniência desconhecida, o conjunto de móveis de assento constituído por quatro cadeiras de braços, um cadeirão (bergère) e um canapé estofados a tapeçaria de Beauvais, foi executado no atelier de um dos membros da família de marceneiros Tilliard, uma vez que, todas as peças estão estampilhadas com este nome: TILLIARD.
Realizado em faia entalhada e dourada, o conjunto apresenta muitas semelhanças com um outro grupo de peças que já foi pertença da coleção Espírito Santo (vendido em 1955), atribuído a Jacques – Jean Baptiste Tilliard e cuja datação se situa entre 1765 e 1770. Em ambos os casos, o entalhamento é decorado por ziguezague intercalado por raminhos de folhagem com botão ao qual se sobrepõem folhas de acanto entrelaçadas por grinalda de flores, sendo este último elemento característico do trabalho deste marceneiro. O cachaço do espaldar do canapé, ondulado contrasta com a simplificação do das cadeiras, numa quase indefinição de gosto, num período de transição e mistura de linhas e elementos decorativos típicos do designado período Transição. O aro (do assento) ondulado e as pernas levemente galbadas persistem do período anterior (Luís XV) enquanto que a decoração entalhada se simplifica de forma naturalista.
Embora a decoração dos estofos (assento e costas) dos vários móveis que integram este conjunto representem animais, até ao momento não foi possível identificar se todos se referem a fábulas, visto as cadeiras apresentarem no assento figuração com cão, raposa, gato (?) a caçarem pássaros e nas costas surgirem pássaros como papagaios, cisnes, patos, garças, mas também, uma lebre.
Do conjunto faz parte um cadeirão (bergère) que embora semelhante às cadeiras (fautueil à la reine – com espaldar direito) se distingue destas, não só pelo seu tamanho ligeiramente maior, mas sobretudo, porque apresenta a zona entre o manchete e o aro do assento estofada.
TILLIARD – uma família de menuisiers
Jean Tilliard, os seus dois filhos (Nicolas e Jean-Baptiste) e o neto Jacques-Jean Baptiste, constituíram uma “dinastia” de marceneiros (menuisiers), que trabalharam para o “Garde meuble du roi” (guarda móvel do rei). Jean-Baptiste (1686–1766) mestre em 1717, tinha a sua oficina (onde trabalhavam onze pessoas) na rue de Cléry. Entrou ao serviço do rei como “maître menuisier du garde meuble du roi” (mestre marceneiro do guarda–móvel do rei) após a morte de seu pai (Jean) em 1728. O seu trabalho caracterizou-se pela boa qualidade dos móveis de assento em estilo Luís XV, com pureza de linhas galbadas (onduladas) características deste período, mas, não incluiu as transformações do período Transição (3º quartel do séc. XVIII) no qual as linhas direitas de inspiração clássica se impõem, tendo apenas havido um endurecimento das linhas sinuosas do estilo Luís XV. Jean-Baptiste recorreu também (numa prática corrente à época) ao trabalho de outros artistas, como por exemplo a Nicolas Heurtaut (escultor) ou ao do seu irmão Nicolas, assim como, ao de outros marceneiros aos quais podia subcontratar empreitadas. A sua clientela não se resumia à Coroa incluindo ainda famílias da nobreza. A venda e escoamento dos produtos (como era comum acontecer) era feito através de marchands–merciers, intermediários entre o produtor e o consumidor, importadores de produtos exóticos, decoradores de interiores, que exerceram um papel de destaque na evolução do gosto mas, não deixaram de ser apelidados por Diderot na “Enciclopédia” como: ” marchands de tout et faiseurs de rien” (comerciantes de tudo e criadores de nada).
Nicolas (1676–1752) o irmão mais velho de Jean-Baptiste, tornou-se mestre cerca de 1699 tendo-se estabelecido também rue de Cléry. Com um percurso profissional semelhante ao do seu irmão, Nicolas também recorria ao trabalho de escultura dos Heurtaut e de outros marceneiros, respondendo assim a encomendas da nobreza. Para além do título de “menuisier ordinnaire du roy” (marceneiro do rei) adquirido após a morte do pai em 1728, obtém ainda o de “menuisier des bâtiments du roy” (marceneiro dos edifícios do rei) o que lhe permitia não só, fabricar e fornecer à Coroa móveis de assento e consolas como também, apainelados para forrar as paredes dos interiores. O facto de utilizar a mesma estampilha (assinatura ou marca) que o seu irmão e que o seu sobrinho (Jacques-Jean Baptiste) ainda antes da (re)obrigatoriedade do uso da mesma em 1743, torna impossível a distinção dos seus trabalhos.
O elemento mais novo desta família de marceneiros, Jacques-Jean Baptiste (1723–1798) filho de Jean-Baptiste, fez a sua aprendizagem com o pai e tornou-se mestre em 1752, tendo herdado a sua oficina após a morte deste, onde vai exercer a profissão até ao eclodir da revolução (1789), altura em que se retira da vida activa.
Para além do fabrico de móveis de assento dedicou-se também, à execução (como o tio) de apainelados de interior tendo recebido o título de “menuisier en bâtiments” em 1756 e após a morte do pai em 1766, o de “menuisier du Garde Meuble du Roi”. Trabalhou ainda com vários escultores e escoava a sua produção através de vários marchands–tapissiers (que desempenhavam um papel similar ao dos marchands-merciers mas, especializados no comércio de tapeçarias e estofos). Executa móveis de assento difíceis de distinguir dos seus predecessores, nos quais se nota um endurecimento das linhas sinuosas do estilo Luís XV, às quais acrescenta motivos decorativos clássicos e naturalistas de grande qualidade de execução, aproximando-se assim das características do estilo Transição. Não raras vezes, a posse e uso de uma estampilha (assinatura ou marca gravada nos móveis) era transmitida de pais para filhos, netos ou sobrinhos como no caso dos Tilliard, o que torna quase ou mesmo impossível, distinguir ou identificar o trabalho de cada um deles, através da assinatura estampilhada.
Menuisiers versus ébenistes
Menuisiers versus ébenistes ou as diferenças entre corporações na arte de trabalhar a madeira: marceneiros e ebanistas. O trabalho da madeira sempre esteve muito segmentado havendo artesãos especializados em diferentes produções. Desde a Idade Média que existem corporações de marceneiros embora já à época separadas das dos carpinteiros no entanto, em finais do século XVI, consequência do acesso e chegada de novos tipos de madeiras (através das Descobertas) que exigiam novas especializações, começa a aparecer uma nova designação: marceneiros em ébano. A partir desta altura, os marceneiros passam e dedicar-se apenas às madeiras maciças, enquanto os ebanistas passam a folhear de madeiras exóticas os “esqueletos” de madeiras comuns.
Se, inicialmente falamos em marceneiros em ébano (menuisiers en ébène) mais tarde, esta denominação é alterada para ebanistas, abrangendo todos os que trabalhavam madeiras exóticas como o mogno, pau-santo, pau-rosa, amaranto, pau-violeta e não apenas o ébano, mas também, madeiras indígenas como: cerejeira, pereira, nogueira, carvalho. A variedade de madeiras acaba por originar uma outra especialização, associada ao ebanista: a marchetaria, técnica que recorre ao uso de madeiras diferenciadas (mas também, marfim, madrepérola, metal, tartaruga, etc.) jogando com as suas várias tonalidades e veios, criando motivos decorativos que eram aplicados sobre a superfície dos móveis. Por seu turno e dependendo das regiões onde estava, o marceneiro trabalha madeiras como: diferentes espécies de pinheiro, abeto, faia, carvalho, ácer. Normalmente os marceneiros instalavam-se perto da Porte Saint–Dennis, no bairro Bonne-Nouvelle enquanto que, os ebanistas se instalavam no Faubourg Saint–Antoine. Era comum o mester de marcenaria passar de pais para filhos havendo mesmo dinastias familiares como por exemplo os Tilliard, os Cresson, os Folliot ou os Avisse. Por sua vez, os ebanistas tinham frequentemente uma origem estrangeira tendo emigrado dos seus países (Alemanha, Flandres, Países–Baixos) para França onde se estabelecem com sucesso como no caso de Criaerd, Van Risenburgh ou de Baumhauer.
Um trabalho de grupo
O fabrico de móveis de assento implicava o trabalho conjunto de diversos artesãos, sendo que, o de marceneiro era apenas uma parte do mesmo, havendo dentro desta profissão distintas especializações. Não sendo proibido um artesão de uma especialidade trabalhar noutra, a especialização técnica de cada um deles, impedia que esta fosse uma prática corrente. Marceneiros de móveis – móveis de assento e outro tipo de mobiliário Marceneiros de edifícios, de viaturas, de bilhares, de instrumentos de música. Menuisier en bâtiments (marceneiros de edifícios) – dedicavam-se à decoração do interior dos edifícios relacionada com as paredes: fabricavam apainelados, tremós, consolas, lambris. Eventualmente o marceneiro de móveis de assento podia produzir consolas ou tremós para satisfazer uma encomenda (conjunto de cadeiras e consola por exemplo). Não eram obrigados a estampilhar as suas peças, mas, podiam fazê-lo caso quisessem (o que é raro acontecer).
Ao contrário, os marceneiros de viaturas (coches, cadeirinhas, caleches, liteiras, viaturas de passeio, etc.) eram obrigados a estampilhar os seus produtos. Dada a proximidade de execução de alguns trabalhos, casos houve em que estes foram realizados por marceneiros de móveis de assento, num cruzamento de paralelismo de atividade, embora excecional e por isso, pouco frequente. Era obrigatório o recurso aos escultores ornamentistas (em móveis de assento e em apainelados) para a execução da decoração esculpida, ficando reservado ao marceneiro apenas o aparelhar e ensamblar assim como, a preparação das massas de madeira destinadas ao escultor. A obrigatoriedade do recurso a escultores, cujas oficinas se deviam localizar em sítios diferentes das dos marceneiros, levou ao estabelecimento de laços familiares entre estes dois grupos profissionais, com vista à simplificação deste processo.
Em geral, os marceneiros não desenhavam (com algumas exceções) ficando os modelos e o desenho “artístico” a cargo dos arquitetos, dos escultores, dos ornamentistas, dos pintores e dos marchands (tapissiers e merciers) intermediários entre o cliente e os vários artesãos envolvidos no processo de produção de um móvel. Em alternativa, havia livros de estampas com os modelos (executados por arquitetos por exemplo) que podiam ser integralmente ou parcialmente adquiridos por marceneiros e por estes propostos aos clientes, podendo ser reproduzidos sem se levantarem grandes questões de direitos de autoria. Ao menuisier ficava reservada a execução técnica, tinha que “descobrir” a maneira de executar o modelo sugerido ao cliente, através de desenhos técnicos em que se representavam as diferentes secções do móvel e a forma como estas se deveriam encaixar. É exatamente aqui, na capacidade de ensablamento que se manifestava a sua mestria de marceneiro e o seu reconhecimento enquanto artesão.
Manufatura de Beauvais
Manufatura têxtil (de alto e baixo liço) privada (até à Revolução), fundada em 1664 por impulso de Louis Hynart marchand – tapissier importador de tapeçarias da Flandres e do ministro das finanças Colbert cuja política mercantilista previa o desenvolvimento da industrialização do País e uma menor dependência das importações. A manufatura de Beauvais situada a norte de Paris tinha assim como objetivo o fabrico de tapeçarias que pudesse fazer frente às importações que chegavam da Flandres, tentando ainda responder à procura privada de tapeçaria, ao gosto do rei. Com o objetivo de criar tapeçarias de qualidade, a manufatura recorre a operários franceses, mas também flamengos, o processo de aprendizagem previa 6 anos de formação (enquanto aprendiz) mais 2 anos (como compagnon) só depois podendo ser designado tapeceiro ou marchand, o que permitia a autonomia profissional.
Como noutras manufaturas, também Beauvais se socorreu de diversos desenhadores-pintores que integravam a direção artística da fábrica e que criavam a decoração para as tapeçarias. Entre estes, podemos salientar Jacques Duplessis que entrou em 1721 e Jean-Baptiste Oudry que o substituiu em 1726. É sob a direção de Oudry que a manufatura se especializa na produção de estofos para móveis de assento de grande qualidade e para-fogos, de cores ligeiras e frescas, peças de menor dimensão e por isso mesmo, mais fáceis de escoar no mercado, tendo-se tornado esta opção um sucesso. É então que Beauvais começa a produzir em baixo liço, o que permitia um fabrico mais rápido, utilizando uma teia em algodão que tornava o tecido mais sólido, tecida pelo avesso sendo o resultado final (quase) idêntico ao do alto liço. Na técnica do alto liço, a teia é colocada na vertical com o desenho ao seu lado e o tapeceiro vê sempre o trabalho que está a executar. Ao contrário, no baixo liço a teia está em posição horizontal trabalhando o tapeceiro pelo avesso. São desta origem os estofos do conjunto de móveis de assento, decorados no assento e costas com cenas inspiradas em gravuras desconhecidas da obra “Fábulas” de Jean de La Fontaine.
As Fábulas de La Fontaine
Jean de la Fontaine (1621- 1695) poeta nascido em 1621 que se dedicou à escrita de libretos de ópera, poemas e fábulas. Estas últimas, ao todo 240, tornaram-no famoso pois, recorreu a animais como personagens, através dos quais veiculava o discurso moralista que pretendia transmitir. Não sendo de uma originalidade total pois, muitas das suas fábulas inspiraram-se nas de Esopo e Fedro, a sua particularidade residiu no facto de, para além de demonstrar ter um conhecimento aprofundado sobre as características dos animais, La Fontaine tornou as fábulas reais através da linguagem humanizada dos mesmos, refletindo a época e a sociedade em que vivia. As primeiras 124 editadas em 1668, foram escritas para ao Delfim de França (filho de Luís XIV), tendo sido as restantes editadas até 1679, organizadas em doze livros, sendo as últimas dedicadas a Madame de Montespan, favorita do rei Luís XIV.
O canapé do conjunto em análise apresenta nas costas a figuração mais clara: a fábula raposa e a cegonha. A raposa convida a cegonha para jantar e oferece-lhe a comida num prato, impedindo-a assim de comer. A cegonha retribui o jantar mas, oferece à raposa o jantar num recipiente de gargalo estreito e alto. Moral da história “Tramas com tramas se pagam / qu’é pena de talião / se quase sempre os que iludem / sem que os iludam não passam / nunca ninguém faça aos outros / o que não quer que lhe façam.” O assento do canapé apresenta a fábula do Amor-próprio; Júpiter mandou reunir os animais que estivessem descontentes com a sua figura dando-lhes a possibilidade de mudar mas, nenhum aceitou pois, estavam todos contentes consigo mesmos, moral da história: “… qualquer se julga de todos o mais perfeito.”
Proveniência Não possuindo a Casa – Museu documentação sobre a proveniência deste conjunto, apenas constam dos arquivos várias fotografias do fotógrafo J. Marques (Rua da Atalaia 110, Lisboa) e que deixam supor a sua aquisição em Portugal.
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
Havard, Henry e Vachon, Marius – Les Manufactures Nationales les Gobelins, la Savonnerie, Sèvres, Beauvais. Georges Decaux, Librairie Illustrée, Paris, 1889
Pallot, Bill – L’art du siège au XVIIIe siécle. Gismondi Editeurs, Paris 1987 La Fontaine, Jean de – Fábulas. Publicações Europa – América, Mem Martins, 1987
Webgrafia:
http://www.artisanat.ch/reportages/589-metiers-lies-au-travail-du-bois.html#menuisier http://www.larousse.fr/encyclopedie/divers/tapisserie/95867 http://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Jean_de_La_Fontaine/128410 http://www.la-fontaine-ch-thierry.net/fables.htm http://www.lafontaine.net/illustrations/illustrateurs.php?id=90 http://www.anticstore.com/ebeniste/tilliard-I http://www.wallacecollection.org/blog/2016/03/highs-and-lows-the-life-of-a-cabinetmaker-in-18th-century-paris/ http://www.wallacecollection.org/blog/2014/01/inside-stories-the-glories-of-eighteenth-century-french-cabinet-making/ https://books.google.pt/books?id=HWpzdZwq7ywC&hl=pt-PT&source=gbs_navlinks_s The Wrightsman Collection. Vols. 1 and 2, Furniture, Gilt Bronze and Mounted Porcelain, Carpets http://www.antiqbrocdelatour.com/le-guide-du-meuble-ancien/La-construction-des-meubles/Menuisiers-ebenistes.php
Atrb. Jacques-Jean Baptiste (1723-1798); Manufacture de tapisserie de Beauvais
3º quartel séc. XVIII
França, Paris
Faia entalhada e dourada e tapeçaria
Canapé: 100 x 67 x 164,5 cm; Cadeiras de braços: 98 x 61 x 73,5 cm; Cadeirão: 101,3 x 67 x 87 cm