Rapto de Oritias / Rapto de Boreas – Destaque Maio 2016

“Rapto de Oritias” / “Rapto de Proserpina”

Destaque Maio 2016

 

Na Sala Luís XIV, sob peanhas, chamam a atenção pela plasticidade e movimento, dois grupos escultóricos em bronze patinado representando momentos dramáticos, tratam-se dos raptos de Oritias por Bóreas e de Proserpina por Plutão.

 

Par de grupos escultóricos em bronze, com pátina em castanho-escuro, representando dois episódios mitológicos – o rapto de Prosérpina e o rapto de Oritia por Bóreas-, baseados nos originais em mármore criados por encomenda de Luís XIV para os jardins de Versalhes.

 

Versalhes, Luís XIV, e os bronzes da Sala Oval
Luís XIV reinou sobre França durante 72 anos, entre 1643 e 1715. Em Versalhes criou não só o mais esplêndido palácio de Europa, como também os maiores e mais elegantes jardins. O “Rei-Sol”, como também era conhecido, encomendou a André Le Nôtre a organização e desenho destes jardins, enquanto Charles Le Brun se ocupava da sua decoração com fontes, esculturas, vasos, etc.

Le Brun dirigiu um grande conjunto de escultores, muitos dos quais tinham sido bolseiros da Academia Francesa em Roma, e, com braço de ferro, comandava todos os trabalhos, controlando até os mais ínfimos pormenores e, inclusive, fornecendo ele próprio esboços muito detalhados a que os artistas tinham de responder.

Em 1674 o rei Luís XIV encomenda, com supervisão de Le Brun, uma série de estátuas – conhecida como La Grande Commande – para decorar o Parterre d’Eau, o espelho de água que prolongava a fachada do palácio. Deste grupo, vinte e quatro estátuas representavam os quartetos clássicos: os quatro elementos, as quatro partes do mundo, as quatro estações, as quatro horas do dia, os quatro temperamentos do homem e os quatro géneros poéticos. Outros quatro grupos estavam previstos, todos eles formados por três figuras, representando famosos raptos da mitologia clássica:

 

•    “O rapto de Prosérpina por Plutão”, de François Girardon, alegoria do Fogo
•    “O rapto de Oritia por Bóreas”, de Gaspard Marsy e Anselme Flamen, alegoria do Ar
•    “O rapto de Cibeles por Saturno”, de Thomas Regnaudin, alegoria da Terra
•    “O rapto de Coronis por Neptuno”, de Jean-Baptiste Tuby, alegoria da Água (nunca realizado)

 

No palácio de Versalhes, Luís XIV cria o Petit appartement du roi, um conjunto de quartos situados no primeiro andar aos que, contrariamente ao que acontecia com o Le grand appartement du roi, só se acedia com consentimento prévio do rei. No tempo do Rei-Sol, estas salas transformaram-se num verdadeiro gabinete de curiosidades onde se expunha a coleção privada do rei, existindo o Cabinet des Coquilles – originalmente concebido para guardar a coleção de minerais, mas que se transformou posteriormente em biblioteca -, a Petite Galerie e o Salon Oval.

No Salão Oval existiam quatro nichos, enquadrados por colunas coríntias, projetados para expor quatro importantes grupos escultóricos em bronze. Duas destas peças seguem modelos do grande escultor italiano Allesandro Algardi (1602-1654): “Júpiter vitorioso sobre os Titãs”, a representar o elemento Fogo, e “Juno controlando os ventos”, que representa o Ar (atualmente ambos em exposição na Wallace Collection em Londres). Os outros dois grupos são as reduções em bronze de duas das esculturas pensadas para o Parterre d’Eau, a escultura dos conhecidos escultores François Girardon (sendo que a original em mármore ainda não estava concluída) e as de Gaspard Marsy e Anselme Flamen; estas réplicas atuavam assim como uma repetição temática das anteriores, representando também o Fogo e o Ar através de diferentes episódios mitológicos.

 

Girardon: “O rapto de Prosérpina por Plutão”

François Girardon (1628-1715) foi bolseiro em Roma onde estabeleceu contacto com Le Brun, o que viria a ser fundamental no seu percurso já que este lhe proporciona, entre outras encomendas, muitos dos grandes projetos decorativos de Versalhes. Em 1657 é admitido na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, dois anos depois é nomeado professor, em 1674 adjunto do reitor, e em 1695 “chancelier”.

 

O grupo escultórico “O Rapto de Prosérpina por Plutão” foi pensado para decorar o Parterre d’Eau dos jardins de Versalhes. Porém, a mudança no desenho desta parte dos jardins vai ditar a permanência no atelier de Girardon até 1695, ano em que se decide a sua colocação no centro da célebre Colunata construída em 1685 por Jules Hadrouin-Mansart em substituição de um dos bosques desenhados por Le Nôtre. Para se adequar à nova localização, o próprio artista cria uma base decorada com baixos-relevos alusivos a vários momentos do episódio mitológico: repetição do momento no que Plutão rapta Prosérpina (mas aqui o deus aparece no seu carro puxado por dois cavalos); representação das ninfas que acompanham Prosérpina; e Ceres, mãe de Prosérpina, perseguindo a sua filha. Estes relevos serão inspirados na pintura de La Fosse (Charles de La Fosse, pintor francês que também trabalhou em Versalhes) e na decoração de antigos sarcófagos.

 

Pelo menos duas reduções em bronze deste grupo foram executadas pelo próprio Girardon – e assinadas por ele – uma das quais terá estado exposta no Salon Oval. Para além dessas, existem numerosas cópias em bronze realizadas em diversas alturas do século XVIII e XIX, com variadas medidas, que formam hoje em dia parte das coleções de museus e coleções privadas, por vezes em solitário e outras vezes formando par com outros grupos escultóricos como “O rapto de Oritias por Bóreas” (como acontece na Casa-Museu Medeiros e Almeida) ou “O Rapto das Sabinas”, de Giambologna (1529-1608).

 

O paralelismo entre a obra de Girardon e a de Giambologna (de 1579-83) é, de facto, óbvio. Ambos os grupos foram esculpidos de um único bloco de mármore e são constituídos por três personagens interligadas em composições dinâmicas de grande verticalidade. Uma outra comparação evidente tem de ser feita: é com uma das esculturas de Bernini (exposta na Galleria Borghese em Roma), que não só partilha a mesma temática, o rapto de Prosérpina, como também o momento exato escolhido para a sua apresentação. Estas influências não são de todo surpreendentes se tivermos em atenção a formação italiana de Girardon que teria muito provavelmente conhecido ambas as obras.

 

Marsy e Flamen: “O rapto de Oritias por Bóreas”

Gaspard Marsy (1624-1681) trabalhou em numerosos projetos para Luís XIV, nomeadamente em peças para Versalhes junto com o seu irmão, o também escultor Balthazar Marsy (1628-1674). Após a morte de Balthazar, Gaspard continua a trabalhar colaborando frequentemente com Anselme Flamen que foi bolseiro na Academia de França em Roma e que mais tarde vai terminar algumas das obras que Gaspard deixou incompletas, como é o caso de “O rapto de Oritias por Bóreas”.

 

Tal como “O rapto de Prosérpina”, este grupo também foi pensado para o Parterre d’Eau dos jardins de Versalhes mas, em 1716, foi colocado na Orangerie e hoje em dia pode ser visto em exposição permanente no Museu do Louvre em Paris, onde foi alvo de uma recente intervenção de restauro (entre 2004 e 2006).

Assim como na obra de Girardon, este mármore compõe-se de três figuras entrelaçadas numa composição em espiral e de grande verticalidade. Le Brun confrontou em várias ocasiões trabalhos de Marsy e Girardon, já que ambos partilhavam uma formação semelhante embora cada um com as suas particularidades.

 

Os bronzes da Casa-Museu

Na coleção da Casa-Museu Medeiros e Almeida existem duas réplicas, de tamanho reduzido, em bronze dos grupos escultóricos concebidos por Girardon e Marsy para o Parterre d’Eau dos jardins de Versalhes.

É habitual, ao longo da história do mercado de arte que as peças escultóricas que se destacaram em certo momento pela sua qualidade, sejam objeto de reproduções, muitas vezes – no caso de peças de grande tamanho, nomeadamente aquelas pensadas para o exterior – numa escala reduzida e, frequentemente, com variações no material, sendo que esculturas em mármore, como os originais do par de peças em estudo, são habitualmente reproduzidas em bronze.

 

Em França, durante o século XVIII, estes bronzes eram de grande qualidade técnica, muitas vezes realizados pelo mesmo autor e de forma geral, com um acabamento à base de uma pátina escura e brilhante que, na altura, se pensava especialmente adequada para complementar pinturas que pudessem estar expostas na mesma sala, como no caso do Petit appartement du roi.

Em inícios do século XIX este tipo de cópias de esculturas da antiguidade, ou de reconhecidos artistas dos séculos anteriores, proliferou enormemente. As reproduções são de menor ou maior qualidade, as dimensões eram alteradas para poderem ser colocadas em locais específicos e, quase sempre, apresentam pequenas variações nos pormenores em relação aos originais, em especial no que diz respeito à base, que muitas vezes respondia a um esquema completamente novo, sendo por vezes em bronze dourado de modo a fazer ressaltar a escultura.

Este tipo de cópias são presença habitual em museus e coleções particulares em todo o mundo, sendo que continuam a aparecer também com certa frequência à venda em leilões e antiquários.

 

O tema dos dois conjuntos em exposição na Casa-Museu, está baseado em duas histórias da obra clássica Metamorfoses de Ovídeo (8a.C.) – Oritias (Livro VI ); Proserpina (Livro V) – e o momento escolhido em ambos os casos é o do momento preciso do rapto, instante que tem não só uma maior leitura e força simbólica, como também permite explorar um maior leque de expressões e criar composições de grande movimento . Tal como os restantes grupos projetados para o Parterre d’Eau, estes são constituídos por três das personagens centrais à história.

 

No caso de “O rapto de Prosérpina por Plutão”, as três personagens escolhidas são Plutão (deus do infra mundo), Prosérpina (formosa deusa a quem Plutão fará sua mulher após tê-la raptado) e, aos pés, Ceres (deusa das colheitas e das estações do ano), mãe de Prosérpina cuja presença aumenta a emotividade do conjunto.

 

No caso de “O r

apto de Oritias por Bóreas”, encontramos Bóreas (o vento do Norte e personificação do inverno) no momento em que agarra Oritia (filha de Erecteo, rei de Atenas) por quem se tinha apaixonado sendo que caído no chão está uma outra figura masculina, Zéfiro, o vento do Oeste.

Proveniência:

Embora seja muito provável que os dois bronzes tenham sido comprados como um par – já que, como foi dito, era habitual estes grupos serem expostos em conjunto (e sendo as medidas semelhantes) -, nada sabemos da sua proveniência ou da altura em que foram incorporados na coleção.

 

Samantha Coleman Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

Bibliografia
BOSTRÖM, A. (Ed.); The Encyclopedia of Sculpture. London & New York: Fitzroy Dearborn, 2004

OVÍDEO; Metamorfoses. trad. Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Livros Cotovia, 2007

POPE-HENNESSY; J.W., An Introduction to Italian Sculpture. London & New York:, Phaidon, 1970-1972

SOUCHAL, F.; French sculptors of the 17th and 18th centuries. The reign of Louis XIV. London: Faber & Faber, 1977

THOMPSON, I.; The Sun King’s Garden. Louis XIV, André Le Nôtre and the Creation of the Gardens of Versailles. London: Bloomsbury, 2006

VERLET, P.; Versailles. Paris: Librarie Arthème Fayard, 1961

VV.AA.; Bronzes français. De la Renaissance au Siècle des Lumières. Paris: Musée du Louvre Editions, 2008

VV.AA.; El Barroco. Arquitectura, Escultura, Pintura. Alemanha: Ullmann & Konemann, 2007

VV.AA.; The Wallace Collection. London: Scala, 2005

Autor

Desconhecido

Data

Finais séc. XVIII

Local

França

Materiais

Bronze patinado

Dimensões

Alt. 55cm x Larg. 28cm / Alt. 55cm x Larg. 32cm

Category
Destaque