“We may not aprove of the design, we may dislike the proportions, we may criticize unnecessary elaboration of detail (…), but bad worlmanship: never!”
N.M. Penzer
Par de terrinas em prata profusamente cinzelada e gravada, ostentando no bojo, dos dois lados, o brasão com as armas dos Beauvoir, Benyon, Tyssen e outras. A decoração é feita à base de motivos vegetalistas, legumes, conchas e mariscos. As travessas, que estão aparafusadas às terrinas, ostentam duas grandes pegas e quatro pés e seguem o mesmo tipo de esquema decorativo.
A ourivesaria em Inglaterra:
São vários os acontecimentos históricos que levaram a que o número de peças de ourivesaria inglesa anteriores ao século XVI que se conservam, seja infinitamente menor aquele que, pelos inventários, se sabe que existiram, nomeadamente em relação à ourivesaria sacra. Entre estes acontecimentos podemos destacar dois: a fundição de muita da ourivesaria sacra com a chegada do Protestantismo e, já no século XVII, a Guerra Civil que levou ao sacrifício de muitas peças pertencentes a tesouros privados.
Durante o Renascimento, e apesar das várias influências externas, a ourivesaria inglesa manteve um estilo muito próprio e um nível de qualidade elevado sendo que, a partir de inícios do século XVII, e tal e como também aconteceu no resto de Europa, esta qualidade diminuirá. Com a Restauração de 1660 surge a necessidade de reabastecer o tesouro real, o que dará um novo impulso à ourivesaria, embora uma das características que diferencia o mercado inglês do de outros países é que as grandes encomendas não só vinham da Casa Real, como também da nobreza e da burguesia, que nesta época também quiseram aumentar as suas coleções de prata, tanto com peças de grande requinte como com aquelas mais simples para uso quotidiano.
A revogação do Édito de Nantes no outono de 1685 pelo rei Luís XIV, dará lugar à chegada à ilha de um considerável número de ourives franceses, e serão estes Huguenotes que trarão não só um estilo mais moderno, num momento em que em Inglaterra ainda dominava o barroco tradicional, como também novos métodos e técnicas de produção. Em meados do século XVII, vários arquitetos ingleses, entre os quais se destacam os irmãos Adam, interessam-se pela antiguidade clássica, rejeitando a exuberância decorativa do Rococó, o que afetará profundamente as artes decorativas no geral e a ourivesaria em particular. Por outro lado, no início do século XIX, quando países como a França ainda estavam mergulhados no Neoclassicismo, em Inglaterra o ecleticismo já se fazia sentir de forma muito evidente. O trabalho de Paul Storr, cujas primeiras obras serão mais clássicas, virará o seu olhar, logo nas primeiras décadas do século XIX, para o Egito, para o Gótico e para o Rococó – como no caso da peça em destaque – como fonte de inspiração.
Paul Storr: o último grande ourives:
Para Penzer, autor da monografia de 1954 sobre Paul Storr, este foi o “último dos grandes ourives”, um bom artesão e um grande artista. Paul Storr (1771-1844) começa o seu percurso de ourives como aprendiz do sueco Andrew Fogelberg de 1785 a 1792 – os sete anos habituais de que constava a formação de um ourives até ter o direito de cunhar a sua própria marca. Após este período Storr junta-se, ainda que brevemente, a William Frisbee mas logo se estabelecerá por sua conta e começará a ganhar reconhecimento entre os melhores ourives em Londres. Em 1801 casa com Elisabeth, amiga de adolescência, e juntos terão dez filhos; sete raparigas e três rapazes (um dos quais morre ainda criança), dos quais nenhum seguirá as pegadas do pai. Será por essa altura que Philip Rundell – da “Rundell, Bridge and Rundell”, casa nomeada como ourives, joalheiros e medalhistas reais em 1797 – começa a fazer encomendas a Paul Storr que, para salvaguardar a sua identidade, funda em 1807 a “Storr & Co.”, até que finalmente em 1811 se associa à firma, na qual permanecerá durante quase dez anos até, embora a parceria fosse lucrativa para todas as partes, decidir tornar-se novamente independente para recuperar maior liberdade criativa.
A necessidade de encontrar um local no West End londrino para poder mostrar e vender os seus produtos, leva-o a associar-se novamente em 1822, criando a firma “Storr and Mortimer”, onde John Mortimer gere o negócio enquanto Storr se ocupa da produção. Em 1826 um terceiro parceiro junta-se à firma, John Samuel Hunt, sobrinho de Paul Storr, sendo que, quando Storr decide reformar-se em 1838, a empresa passa a denominar-se “Mortimer & Hunt”. Paul Storr morre em Março de 1844, apenas uns meses após a sua mulher. O único retrato conhecido que se pensa pode representar Paul Storr, é uma pintura pertencente à coleção Stapleton-Champneys, sendo que Frances Mary Champneys é a neta de uma das filhas de Paul Storr, e esta pintura foi encontrada numa caixa junto com outros retratos familiares.
O crédito de Paul Storr como sendo um dos grandes ourives da história é indiscutível. O seu trabalho influenciou não só aos seus contemporâneos ingleses como também além-fronteiras, estendendo-se para gerações sucessivas. A sua reputação assenta em diversos fatores; o absoluto domínio da técnica, a atenção ao pormenor no desenho e na execução de cada peça, o seu profundo conhecimento do material que o levou a extrair o máximo potencial do seu trabalho, a capacidade de adaptar desenhos de arquitetos, pintores e escultores à prata e, não menos importante, o facto de procurar a perfeição não só nas peças de maior prestigio como também nas pequenas encomendas.
As terrinas da Casa-Museu:
Embora não seja clara a verdadeira origem das terrinas enquanto peças do serviço de mesa, estas serão sem dúvida o elemento estrela das mesas a partir do século XVIII juntamente com os centros de mesa. Há que salientar, porém, que o número de terrinas de prata não é comparável ao número de terrinas em faiança ou porcelana, de facto, o próprio nome de terrina vem do francês ‘terrine’, o que remete para o universo da cerâmica. Em Inglaterra a terrina foi introduzida pelos Huguenotes e rapidamente assimilada como parte do serviço de mesa, apesar de presentar algumas características próprias.
As terrinas da Casa-Museu foram possivelmente – dado o brasão e a datação atribuída – uma encomenda de Richard Benyon de Beauvoir (1769-1854), latifundiário e filantropo inglês. Muito provavelmente, foram passando de geração em geração, a par das propriedades herdadas, primeiro para Richard Fellowes Benyon (1811-1897), sobrinho do primeiro, posteriormente para James Herbert Fellowes Benyon (1849-1935), sobrinho do segundo, e finalmente para o filho deste último, Henry Arthur Fellowes Benyon (1849-1935), que vendeu as terrinas e outras peças de ourivesaria no leilão da Sotheby’s & Co. de 24 de abril de 1958.
A decoração das duas terrinas da Casa-Museu é muito semelhante e corresponde a uma etapa na qual Paul Storr, superada já a sua primeira época num estilo neoclássico contido, procura inspiração em épocas anteriores, nomeadamente na exuberância rococó, e cria peças que, apesar da aparente estravagância e incontinência criativa, são perfeitamente equilibradas e harmoniosas. As pegas destas terrinas são troncos e folhas de carvalho enrolados que se estendem pela base; os quatro pés de cada uma delas têm forma de folhas de aipo; na tampa, um brócolo forma a pega e as suas folhas, entre as quais podemos encontrar cogumelos e uma beterraba, estendem-se para os lados, sendo que em uma das terrinas debaixo de uma das folhas está escondido um lagostim enquanto na outra as folhas são menores deixando ver um talo de aipo. As travessas, fixadas à base por quatro grandes parafusos, seguem o mesmo esquema decorativo vegetalista, com folhas de carvalho, talos de aipo e ostras.
Em relação às marcas presentes nestas duas peças, cabe recordar que em Inglaterra a partir do século XIX todos os objetos em prata tinham de ter quatro marcas para poder ser comercializados: a marca do padrão de prata que atesta que a peça tem a pureza requerida da prata (neste caso, dado serem peças fabricadas em Londres, a marca é o leão passante – lion passant -); a marca da cidade (a marca de Londres desde o século XV até 1822 é o leopardo coroado); a marca de datação, uma letra do alfabeto que indicará o ano de fabrico, sendo que o ano para os ourives iria de Maio a Maio (para estas terrinas é um “s” que indica o período de Maio de 1813 a Maio de 1814); e, finalmente, a marca do autor (embora sendo frequente os ourives mudarem de marca com certa frequência, Paul Storr manterá a sua marca – PS -, que tinha registado durante a sua parceria com William Fresbee, ao longo do seu percurso com apenas pequenas variantes). Nas terrinas aparece uma outra marca, a chamada Duty Mark, que era usada para indicar que tinha sido pago o imposto à coroa e que corresponde ao perfil da cabeça do monarca reinante, no caso que nos ocupa o rei Jorge III. Para além destas duas terrinas existem outras peças de Paul Storr na Casa-Museu – legumeiras, molheiras, travessas, terrinas – sendo a mais antiga um samovar de 1807-1808, em prata, ébano e osso, e a mais recente uns saleiros de ca. 1836-37.
Proveniência:
As terrinas, como já foi referido, pertenceram à coleção de Richard Benyon de Beauvoir (1770-1854), de Englefield House, condado de Berkshire, Inglaterra.
Foram adquiridas por Medeiros e Almeida em leilão da Sotheby’s, New Bond St., Londres, de 24 de Abril de 1958, lote 127 – por £ 1.700. Neste leilão Medeiros e Almeida também adquiriu outros dois lotes (nº 143 e nº144) de peças de Paul Storr composto por quatro molheiras e outras duas terrinas.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
PENZER, N.M., Paul Storr. The Last of the Goldsmiths, Londres: B.T. Batsford Ltd., 1954
HARTOP, C., The Classical Ideal. English Silver, 1760-1840, Cambridge: John Adamson for Koopman Rare Art, 2010
HERNMARCK, C., The Art of the European Silversmith, 1430-1830, Londres: Sotheby Parke Bernet, 1977
Catálogos de venda:
Catalogue of important English and continental silver and plate, Londres: Sotheby’s & Co., 1958
Revistas:
DAVIS, Frank, Silver tureens and Jade Horses Country Life, maio 1953, p.1190
Webgrafia:
MCNAB, Jessie. “Nineteenth-Century English Silver”. In: Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000 http://www.metmuseum.org/toah/hd/19es/hd_19es.htm (October 2004)
MCNAB, Jessie. “English Silver, 1600–1800”. In: Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000. http://www.metmuseum.org/toah/hd/esilv/hd_esilv.htm (October 2003)
Paul de Lamerie (1688-1751); Paul Storr (1771-1844)
1813-1814
Inglaterra, Londres
Prata
Alt. 33 cm x Comp.55 cm x Larg.34 cm Peso: 11 720 gr.