Caixa de hóstias
Caixa de forma circular que pela sua iconografia (se crê) destinada a conter hóstias.
A tampa, presa por dobradiça, apresenta uma representação da Crucificação. Cristo preso à Cruz rodeado pelos soldados romanos e pelas três Marias (Virgem Maria, Maria Madalena, Maria Cleofás). A representação cuja fonte iconográfica não foi possível determinar, parece inspirar-se, no entanto, pela sua estética (hierática), simplificação e posicionamento, em gravuras de origem quinhentista alemã(?).
A Deposição da Cruz baseia-se na pintura de Peter-Paul Rubens (1577-1640) realizada entre 1612 e 1614. Obra do barroco, integra um tríptico com painéis dedicados à Visitação e à Apresentação de Jesus no Templo, foi concebida para a catedral de Antuérpia onde ainda hoje se encontra. Feita a partir de um desenho actualmente no acervo do State Hermitage Museum de São Petersburgo, datado de cerca de 1611.
Deposição da Cruz – Peter-Paul Rubens (1612/14), óleo sobre tela, – Vrouwekathedraal, Antuérpia
A representação segue de perto (embora em posição invertida) o original: dois homens inclinados por cima dos braços da cruz seguram o lençol que envolve Cristo para O descer, um dos quais o segura com os dentes. José de Arimateia e Nicodemos descem o corpo retorcido de Cristo, enquanto São João O ampara, apoiando-se na escada. Maria Madalena de joelhos segura um dos pés de Cristo que se apoia num dos seus ombros, enquanto a Virgem, em sofrimento estica um braço na Sua direção. O ourives omitiu a representação da figura de Maria Cleofás que na pintura surge entre Maria Madalena e a Virgem.
Toda a representação é bastante fiel ao seu modelo com excepção da figura da Virgem, em que o autor optou por uma figuração hierática frontal, afastando-se do original no qual Maria surge de lado e inclinada em direção a Cristo. O ourives não esqueceu detalhes cenográficos como a representação de vegetação ou de nuvens tornando mais realístico o enquadramento da cena.
O corpo da caixa é totalmente preenchido por uma arcatura de carácter arquitectónico renascentista na qual se inserem os doze Apóstolos com os respectivos atributos.
A peça produzida no século XIX insere-se no período do historismus ou no historicismo alemão (?), em que o retomar (e por vezes remisturar estilos anteriores de forma aleatória) estava na moda. De facto, a Crucificação parece ter sido inspirada numa gravura, eventualmente de século XVI, que contrasta com a representação da Descida da Cruz, barroca. Por outro lado, sabemos que os ourives neste período, recorriam ao ecletismo e por isso não é de estranhar a figuração renascença dos Apóstolos, que decora integralmente o corpo da caixa.
A dita apresenta na base quatro punções: Leão coroado, N coroado, L coroado dentro de escudo de cantos truncados, cisne dentro “medalhão” ovalado.
Todas as marcas permanecem com identificação desconhecida à excepção da última que se refere a uma remarcação de origem francesa aplicada a partir de 1 de Julho de 1893 “…às joias provenientes da Alemanha, China, Estados Unidos, Rússia.” [1]
O facto de três das quatro marcas permanecerem não identificadas, apenas nos permite atribuir uma origem para esta peça: a cidade de Hanau, principal centro de produção de prata revivalista puncionada com “marcas de fantasia” em finais do século XIX.
Hanau e a produção de prataria revivalista / historismus
A cidade alemã de Hanau na região de Hesse, foi desde o século XVI um importante centro produtor de ourivesaria no qual se instalaram ourives franceses huguenotes fugidos de França, em consequência da revogação do édito de Nantes em 1685, levando ao êxodo de milhares de pessoas. Também ourives (calvinistas) de origem holandesa e flamenga se fixam na cidade aquando do domínio espanhol (católico) nos Países Baixos. Estas comunidades contribuíram para o progresso desta actividade na cidade embora no século XVIII esta, tenha decaído, só vindo a reflorescer no século seguinte.
O espírito revivalista do século XIX difunde-se a partir de Inglaterra por toda a Europa, atingindo todos os aspectos artísticos incluindo a ourivesaria, aliás com grande sucesso.
Em Hanau, o revivalismo historicista, aqui designado por historismus, encontrou um nicho de mercado, que incluía casas reais, aristocráticas, famílias burguesas que permitiu à cidade desenvolver na segunda metade do século XIX, mas em particular, nas duas últimas décadas do século, uma relevante actividade no sector da ourivesaria.
A realização peças quer fossem cópias ou “novas criações” inspiradas a partir de modelos já existentes, passou a ser a principal produção desta cidade. A inspiração vinha de modelos da renascença, do maneirismo, do barroco, do rococó, gerando criações ecléticas “feitas à medida” a pedido do cliente ou segundo o gosto do ourives, misturando elementos de vários estilos, a partir de desenhos fruto da sua imaginação. A produção era vasta: da peça de uso quotidiano como talheres, à produção de requintadas peças de aparato.
Para o eclodir deste gosto e desenvolvimento da produção, muito contribuíram alguns artesãos com a sua perícia técnica e artística ainda no primeiro quartel do século XIX, como no caso de Johann Daniel Christian Schleissner (1793-1862) ourives originário de Augsburgo. Aqui, aprendera e contactara com desenhos da renascença e do maneirismo recuperando com sucesso este gosto, na empresa que estabelece em Hanau. O seu filho Daniel Philipp August (1825-1891) prossegue com igual êxito trabalhando inclusivamente numa importante encomenda para o palácio de Bebenhausen, para onde forneceu peças decorativas como centros de mesa, taças de aparato, salvas ou gomis.
O triunfo de pai e filho acabou por se estender a outros artesãos / firmas que se dedicaram com igual êxito ao mesmo tipo de produção como Georg Roth & Company, W.H. Laufs and Backs & Co. ou Neresheimer.
Em qualquer outra região da Europa, o comércio e produção de ourivesaria estava fortemente regulamentado, através das contrastarias oficiais e registo das marcas de ourives. Em Hanau, cidade de comércio livre, tal não acontecia, não havendo entidade oficial de controlo da qualidade / autenticidade das peças. Este “vazio legal” abriu espaço para a reprodução, imitação e criação de peças “à maneira antiga”, que passou a ser um objectivo, não enquanto reprodução clara mas, visivelmente tentando assumir o aspecto antigo. Para tal não só era imitado o objecto antigo mas também as marcas que eram apostas. Era prática corrente numa peça de determinada estética e época, puncioná-la com marcas que se assemelhassem ou remetessem de alguma forma para as originais, sendo estas designadas por “marcas de fantasia” ou pseudo-marcas, incluindo as do ourives. Por exemplo: numa peça de estética francesa do século XVII, eram apostas marcas que lembrassem as francesas dessa época (ex: combinação de letras correspondentes ao ourives sob flor-de-lis). Estamos, pois, perante a reprodução / recriação da peça, mas também da própria marca que a acompanha. Tal prática seria considerada ilegal em qualquer outra região da Europa mas em Hanau, cidade de comércio livre, sem um sistema de controlo, nem de contrastaria oficial, era o local ideal para a proliferação de uma florescente indústria de ourivesaria “à maneira antiga” mas que na realidade gerou peças pseudo-renascença, pseudo-barrocas, pseudo…
Impulsionada pelo historismus cortes europeias, aristocracia, burguesia todos sucumbiram ao apelo de elaboradas peças, umas vezes vendidas como genuínas outras, nem por isso… mantendo-se até hoje em aberto a dúvida se, as mesmas foram executadas com intuito fraudulento, ou não.
Embora Hanau tenha sido o principal centro produtor deste tipo prata, não foi o único, tendo havido outras regiões que também se dedicaram à feitura de peças com as mesmas características, como aconteceu nas cidades de holandesas de Groningen e de Schoonhoven, que puncionaram igualmente as suas peças com “marcas de fantasia”.
Proveniência
A caixa de hóstias pertenceu ao coleccionador Francisco Barros e Sá que a colocou à venda em leilão da Leiria e Nascimento em 1958, tendo sido adquirida por António Medeiros e Almeida, pelo valor de 2.700 escudos.
Cristina Carvalho
Museu Medeiros e Almeida
[1] TARDY, Les Poinçons d’argent, 9eme édition, s/d. p. 207
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https://www.silvercollection.it/germansilverhallmarks4.html [acedido 27-03-2023]
TARDY, Les Poinçons d’argent, 9eme édition, s/d
COMO CITAR / HOW TO CITE:
Carvalho, Cristina. Caixa de hóstias. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida, 2023. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/caixadehostias/.
NOTAS:
O Museu Medeiros e Almeida através da autora, agradece a informação disponibilizada por Luís Castelo Lopes, avaliador de arte, que permitiu ir mais além na pesquisa desta peça.
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.