Com a sua gramática decorativa e o seu corpo alto e cilíndrico, esta caneca apresenta ainda as características específicas dos tankards produzidos nas cidades do norte da Alemanha e na costa do Báltico, de finais do século XVI até inícios do XVIII. Estas regiões são comummente apelidadas de cidades hanseáticas, i.e., cidades que integraram a Liga Hanseática – uma aliança entre as cidades mercantis ao longo da costa do Mar do Norte e do Báltico que estabeleceu um monopólio comercial sobre todo o norte da Europa do século XIII ao XVII, exportando madeira, ferro, cobre, sal, trigo, peixe seco, lã e peles, entre outros artigos. De grandes dimensões e opulência ornamental, este recipiente de aparato popularizou-se nas cidades enriquecidas graças à prosperidade que adveio deste comércio, e é por isso ocasionalmente denominado “Hansekanne”, ou “Hanse tankard” [1].
Tankard. Engelbrecht II Becker (at. 1601-25). Lübeck (Alemanha), 1622. © The Trustees of the British Museum
Tankard. Prov. Friedrich Hildebrandt (at. 1621-39). Tallinn (Estónia), 1627. © Ashmolean Museum, University of Oxford
Hansekanne. Lübeck, c. 1580-1630. © Nordenfjeldske Kunstindustrimuseum [2].
Descrição
Caneca de corpo alto e cilíndrico com tampa articulada, em prata repuxada, cinzelada, gravada, soldada, brunida, com elementos obtidos por fundição e parcialmente dourada.
Caneca – pormenores. Christoph Lützenberger (at. 1633-53). Toruń, c. 1633-53. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1906.
A tampa e a base, em prata dourada, apresentam registos alternados de faixas lisas, decoradas com folhas de acanto, e com um motivo composto por cabeças de putti, folhagem, flores e frutos repuxados e cinzelados.
A tampa, de bordo liso e topo alteado em cúpula dupla, é rematada por uma pinha, de fundição, fixa com rosca, dissimulada no seu interior por uma cobertura em chapa circular. Nesta, encontra-se gravado um escudo de armas bipartido com uma estrela de seis pontas e duas árvores, encimado por elmo e paquife em árvore, com as iniciais “C” e “L” no exterior, a ladeá-lo, e uma guirlanda florida que os emoldura (até à data, não identificado). Comparativamente com outros exemplares desta produção, analisados adiante, consideramos que este remate em pinha e a cobertura do interior da tampa poderão, eventualmente, tratar-se de acrescentos posteriores [3].
O interior é liso, em prata dourada.
A tampa articula-se por meio de uma dobradiça. É ainda provida de um apoio para polegar que auxilia a sua abertura e fecho, de grandes dimensões, fundido, cinzelado (na parte de trás) e soldado, representado uma figura mitológica feminina com cauda de peixe bifurcada, elemento comum nesta tipologia de peça já desde meados do século XVI [4].
Caneca – pormenores da tampa. Christoph Lützenberger (at. 1633-53). Toruń, c. 1633-53. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1906.
A asa, igualmente dourada, prolonga-se desde o apoio para polegar, abaixo do bordo, em direção à parte inferior do corpo da caneca, em acentuada curva em “S”. De superfície lisa com uma fiada perlada ao longo do seu eixo vertical, terminando em forma de escudo liso, apresenta, como veremos, um formato característico deste tipo de produção durante o século XVII.
O corpo encontra-se fina e profusamente gravado, segundo três representações de episódios do Novo Testamento, inscritas em grandes reservas ovaladas, equidistantes e legendadas, sobre um fundo gravado com grotescos, enrolamentos vegetalistas e figuras infantis aladas.
O programa iconográfico: cenas do Novo Testamento
O programa iconográfico fundamental que esta peça apresenta corresponde a três temas referentes ao Novo Testamento. Cada um dos episódios bíblicos, inseridos nos medalhões no corpo cilíndrico da peça, é identificado numa inscrição gravada numa cartela sob estes, leia-se: “MATTAEI XV” (Mateus 15), “JOHANNIS III” (João 3) e “JOHANNIS IV” (João 4).
Caneca – pormenor. Christoph Lützenberger (at. 1633-53). Toruń, c. 1633-53. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1906.
Mateus 15:21-31 – A mulher cananeia
“«Tem piedade de mim, Senhor: Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio» (…) Então, Jesus respondeu-lhe: «Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas». E, a partir desse instante, a filha dela achou-se curada.” (Mt. 15:22-28)
O episódio aqui representado encontra-se descrito em dois dos quatro Evangelhos canónicos que integram o Novo Testamento: o de São Mateus e o de São Marcos. Contudo, a legenda identifica-o como referente ao relato de São Mateus, no capítulo 15 do seu Evangelho.
Este narra a história da petição de uma mulher cananeia (entenda-se, de religião politeísta) a Jesus, que este inicialmente rejeita, alegando não ser justo “que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorros”; a mulher responde humildemente que “até os cachorros comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos” (Mt. 15:26-27), servindo-se da mesma metáfora para argumentar que a sua bênção poderia incluir e “alimentar” os crentes de outras fés. Face à perseverança e habilidade da cananeia, Jesus concede-lhe o milagre que ela lhe solicitara.
Caneca – pormenor. Christoph Lützenberger (at. 1633-53). Toruń, c. 1633-53. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1906.
João 3:1-21 – Nicodemos vai ter com Jesus
“Havia entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais entre os judeus. Foi ter com Jesus, de noite, e disse-Lhe: «Sabemos que vieste, como Mestre, da parte de Deus, pois ninguém pode fazer os milagres que Tu fazes, se Deus não estiver como ele” (Jo. 3:1-2)
Nicodemos foi um fariseu, membro proeminente da sociedade judaica de Jerusalém no primeiro século d.C. É mencionado apenas três vezes na bíblia, todas estas no Evangelho segundo São João – embora lhe seja também atribuído um Evangelho apócrifo. A imagem aqui representada ilustra a passagem do capítulo 3, versículos 1 a 21 deste Evangelho, segundo a qual Nicodemos vai ter com Jesus, à noite, para não ser reconhecido como um dos seus discípulos, e interroga-o, com interesse, acerca dos seus ensinamentos.
Nicodemos é mencionado novamente em João 7:50-53, aquando da procura dos judeus por Jesus para o prender, insurgindo-se então em sua defesa e sendo aqui já referido como “um deles”. Na terceira passagem, João 19:39-42, é Nicodemos, juntamente com José de Arimateia, que se encarrega do corpo de Jesus no momento da sua sepultura, assumindo-se publicamente como seu discípulo, quando anteriormente o tinha visitado em segredo. Daqui advém a ênfase dada por esta imagem em demonstrar que a cena se desenrola de noite, vendo-se ao centro da composição uma lua, através de uma janela, e um castiçal com uma vela acesa sobre a mesa e entre os dois protagonistas – no caso da gravura original, é também visível uma grande lareira acesa, pormenor que se encontra truncado na caneca.
Caneca – pormenor. Christoph Lützenberger (at. 1633-53). Toruń, c. 1633-53. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1906.
João 4:1-26 – Jesus e a samaritana
“Fatigado da caminhada, Jesus sentou-Se, à vontade, à beira do poço. (…) Chegou uma mulher da Samaria para tirar água (…) «Senhor, disse ela, nem sequer tens um balde e o poço é fundo; de onde Te vem, pois, essa água viva?» (…)” (Jo. 4:6-11)
O capítulo 4 do Evangelho de São João descreve um encontro entre Jesus e uma mulher da Samaria, povo desprezado pelos judeus. Para grande surpresa da samaritana, encontrando-a junto ao poço, Jesus interpela-a, pedindo-lhe água do seu balde, ignorando todos os preceitos inerentes à sua condição – de mulher, samaritana e pecadora… Por sua vez, Jesus convida-a a beber da sua “água viva” – a palavra de Deus – e a compartilhá-la com o seu povo, para que este nunca mais tenha “sede”.
As imagens representadas seguem de perto três gravuras de autoria original por apurar, concebidas provavelmente em meados do século XVI, encontrando-se reproduzidas em diferentes publicações em circulação até ao XVIII.
A mais antiga (que nos foi possível localizar), constitui a que figura na “Icones novi testamenti…”, gravada por Jost Amman (1539-1591), em Frankfurt em 1571, que inclui a imagem correspondente ao episódio narrado no capítulo 3 do Evangelho segundo São João: “Nicodemos vai ter com Jesus”.
Jost Amman. Icones novi testamenti… Frankfurt: Feyerabend, 1571, 108. Münchener DigitalisierungsZentrum (MDZ) [5].
No “Thesaurus Historiarum Veteris et Novi Testamenti”, com gravuras desenhadas por Matthäus Merian, o Velho (1593-1650), em Frankfurt, posteriormente gravadas por Gabriel Bodenehr (1673-1765) e reeditadas em Augsburgo em 1760, encontramos já reunidas as três imagens correspondentes às representadas na nossa caneca.
Thesaurus Historiarum Veteris et Novi Testamenti… Augsburg: Kaiserlich Franziszische Akademie, 1760, 403, 405, 429. Staats- und Stadtbibliothek [6].
Na série “Die Wunder Christi”, da autoria de gravador desconhecido e publicada pelo célebre gravador e impressor Claes Janszoon Visscher, o Jovem (1587-1652), em Amsterdão em cerca de 1606-1652, identificamos uma gravura que, embora com algumas diferenças, apresenta o mesmo esquema compositivo da imagem referente ao capítulo 15 do Evangelho de São Mateus – “A mulher cananeia”.
Die kanaanäische Frau bittet Christus um Hilfe (Die Wunder Christi). Claes Janszoon Visscher (der Jüngere) (1587-1652), 1606-52. Herzog Anton Ulrich-Museum [7].
Na “L’histoire du Vieux et du Nouveau Testament…”, publicada pela primeira vez em 1670 e muito popular em França durante o século XVIII, encontramos novamente reunidas estas três gravuras [8].
Sieur de Royaumont. L’Histoire du Vieux et du Nouveau Testament… Paris: Chez Pierre Le Petit, 1680, 395, 397, 423 [9].
Marcas de fabrico
Esta peça encontra-se duas vezes puncionada na orla lisa da sua base.
Caneca – marcas. Christoph Lützenberger (at. 1633-53). Toruń, c. 1633-53. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1906.
À direita, perfeitamente legível, identificamos as letras “CL” inscritas em perímetro retangular horizontal com um dos lados menores curvo, que correspondem à marca de Christoph Lützenberger, ourives ativo entre 1633 e 1653, em Toruń (Polónia). Esta marca encontra-se identificada por diversos autores, e inclusivamente Eugen von Czihak (1853-1918) e Marc Rosenberg (1852-1930) mencionam, como primeiro exemplo de uma obra da produção deste mestre, uma caneca parcialmente dourada com gravuras pertencente ao Barão Carl von Rothschild em Frankfurt, o que, como adiante veremos, nos permite concluir, com algum grau de certeza, tratar-se da presente peça [10].
Marc Rosenberg. Der Goldschmiede Merkzeichen, vol. 4. Frankfurt: Frankfurter Verl.-Anst., 1922, 451. / Eugen von Czihak. Die Edelschmiedekunst früherer Zeiten in Preussen. Leipzig: Westpreussen, 1908, 131. / Gradowski, Michał e Kasprzak-Miler, Agnieszka. Złotnicy na ziemiach północnej Polski, część I, Varsóvia: Ministerstwo Kultury, 2002, 186.
O uso documentando mais recuado de marcação de pratas em Toruń ocorre na segunda metade do século XVI – mais especificamente, numa peça datada de 1567 [11] -, inicialmente de forma esporádica, mas, já durante o primeiro terço do século XVII, de forma bastante consistente.
A marca da cidade de fabrico da nossa peça é pouco legível, mas identificável como o “T” desta cidade polaca, identificada também pelos acima mencionados autores. Cruzando-a com as datas de atividade conhecida do ourives (1633-1653), podemos presumir tratar-se de uma das primeiras marcas puncionadas em pratas produzidas em Toruń durante a primeira metade do século XVII [12].
Eugen von Czihak. Die Edelschmiedekunst früherer Zeiten in Preussen. Leipzig: Westpreussen, 1908, 128. / Marc Rosenberg. Der Goldschmiede Merkzeichen. Vol. 4. Frankfurt: Frankfurter Verl.-Anst., 1922, 450. / Tadeusz Chrzanowski e Marian Kornecki. Złotnictwo toruńskie. Studium o wyrobach cechu toruńskiego od wieku XIV do 1832 roku, Varsóvia: 1988. 130.
Toruń – Ourivesaria na transição do maneirismo para o barroco
A cidade de Toruń integrou a Liga Hanseática de 1264 a 1411, e foi do século XV ao XVIII um importante ponto comercial e um dos centros artísticos mais importantes da Polónia. À semelhança de outras cidades polacas, como Gdansk, possuía uma florescente comunidade de ourives, de ascendência ou influência alemã.
A execução desta peça coincide com o período que corresponde ao auge da indústria de ourivesaria em Toruń – durante a primeira metade do século XVII existiam 34 mestres de guilda ativos em Toruń e o número de oficinas ativas variou entre 11 e 16; estes valores correspondem a cerca de um terço dos de Gdansk, o maior centro de ourivesaria do norte da Polónia nesta altura, mas ao dobro do que existia, por exemplo, em Elbląg [13].
O conjunto de ourives em atividade em Toruń em inícios do século XVII forma uma primeira geração de marcado carácter maneirista, à qual pertencem, por exemplo, Jan Chrystian Bierpfaff (1600-c.1675) – um dos mais destacados ourives da corte em Varsóvia, mudando-se para Toruń por volta de 1653 -, Wilhelm de Lassensy (1625-após 1650) e Zacharias Lange (1627–1652), seguidos de Christoph Lützenberger (1633-1654), ligeiramente mais novo, Thomas Schmidt (1637-após 1665), Nickel III Gerlach (1638-1656) e Hans Martelius (1641-após 1646). Estes últimos introduzem, sobretudo durante o segundo quartel deste século, alguma originalidade às suas peças e, embora timidamente formulados, já alguns elementos do repertório barroco [14].
A nossa peça insere-se num pequeno, mas representativo, grupo de canecas produzidas por alguns destes mestres ourives em atividade em Toruń, neste período de transição entre os estilos maneirista e barroco. A tipologia específica de caneca em que se insere constitui uma das especialidades dos ourives do norte da Polónia, sendo que noutros centros deste ofício raramente encontramos a produção destas peças [15].
Imponentes nas suas dimensões, de corpo perfeitamente cilíndrico (e não ligeiramente cónico, como o de algumas Hansekanne provenientes de outros centros artísticos) com decoração exclusivamente gravada, apresentado três principais reservas ovaladas, tampas e bases repuxadas, asas em “S” de secção angular e bastante maciças, estas canecas apresentam suficientes particularidades comuns para que possamos discernir um estilo, ou regionalismo, próprio desta manufatura [16] – comparativamente, por exemplo, à mais numerosa produção desta tipologia, nomeadamente em Gdansk, de proporções mais baixas e exibindo por norma decoração repuxada no corpo da peça [17].
Destas conhecem-se, para além do nosso, dois exemplares produzidos por Jan Chrystian Bierpfaff (provavelmente um pouco posteriores), nas coleções do Germanisches Nationalmuseum em Nuremberga e do Magyar Nemzeti Múzeum em Budapeste, e um por Thomas Schmidt (1607-1676), no Muzeum Narodowe w Gdańsku, em Gdansk [18].
Tankard. Johann Christian Bierpfaff (1600-c.1675). Toruń, c. 1670. Germanisches Nationalmuseum, Inv. HG11551.
Tankard. Johann Christian Bierpfaff (1600-c.1675). Toruń, séc. XVII. Magyar Nemzeti Múzeum, cf. reproduzida em Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 241.
Tankard. Thomas Schmidt (1607-1676). Toruń, séc. XVII. Muzeum Narodowe w Gdańsku, Inv. MNG/SD/122/Mt.
O terceiro exemplo que enunciámos constitui um interessantíssimo termo de comparação ao presente estudo, pois apresenta características formais e decorativas muito semelhantes às da nossa peça.
Thomas Schmidt (ou Smidt) foi um mestre ourives de atividade conhecida em Toruń de 1637 (data em que se tornou mestre ourives) a 1665. Com 28 centímetros de altura (e, portanto, pouco menor que a nossa), esta peça é igualmente produzida em prata repuxada, cinzelada, gravada e dourada no seu interior. Nos três medalhões no seu corpo cilíndrico encontram-se gravadas as alegorias das virtudes “Paciência”, “Fé” e “Esperança” – esta última segundo gravura de Hendrick Goltzius (1558-1617), pintor, desenhador e gravador dos Países Baixos. Possui uma inscrição na sua base – “D. G. Janusch” – e no interior da tampa encontra-se gravado um brasão de armas com os nomes “GERT DVNTE” e “ANNA SCHVCZHEN”. Atentem-se os vários elementos em comum entre estas duas peças, nomeadamente os três medalhões ovais gravados, o contorno e o perlado da asa, o formato da tampa, da sua articulação e do apoio de polegar, este último absolutamente idêntico ao nosso.
Tankard (pormenores). Thomas Schmidt (1607-1676). Toruń, séc. XVII. Muzeum Narodowe w Gdańsku, Inv. MNG/SD/122/Mt.
Christoph Lützenberger (at. 1633-1653)
Christoph Lützenberger (ou Lützenburger) foi um proeminente ourives de atividade conhecida em Toruń, de 1633, data em que se tornou mestre ourives, até 1653. Deste curto período de tempo, e para além do nosso, conhecemos os seguintes objetos representativos da sua obra:
- Quatro cálices, encontrando-se um na Igreja da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria em Toruń (Kościół Wniebowzięcia NMP); um na igreja de Makowiska [19]; um em Inowrocław e outro em Schweikershain (Alemanha) [20];
- Uma cruz de altar, no Museu Diocesano de Płock (Muzeum Diecezji Płockiej, anterior Catedral Basílica da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria), datada de cerca de 1640 a 1650 [21].
- Um lampadário na Igreja de Nieszawa, que constitui a única peça deste mestre ourives que se encontra datada, exibindo a inscrição “1652”, e sendo, portanto, uma obra relativamente tardia para o seu período de atividade.
- Duas custódias, que infelizmente não constituem bons exemplos da produção deste ourives – a da Igreja de Raciąż, que não é uma obra original de Lützenberger, tratando-se de uma transformação, por elementos acrescentados, de uma custódia gótica da primeira metade do século XVI [22]; e a de Płochocin, que sofreu alterações consideráveis durante o século XIX ou inícios do XX.
Cálice da igreja de Makowiska, século XVII / Lampadário da igreja de Nieszawa, 1652 / Custódia de Raciąż, 1ª metade do século XV, com acrescentos de meados do século XVII (cf. reproduzidos em Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, il. 89; 179 e il. 9; il. 90).
Contudo, consideramos que é a nossa peça, a única que até à data conhecemos de caráter secular, que melhor representa a mestria técnica, decorativa e artística deste mestre ourives. Assim o afirmam igualmente os autores Chrzanowski e Kornecki, no seu aturado estudo de 1988 sobre peças de ourivesaria produzidas em Toruń, do século XIV até 1832:
«(…) As obras listadas, produzidas para igrejas, não nos dão uma ideia adequada deste artista. O seu trabalho mais importante no campo dos objetos seculares é, infelizmente, conhecido por nós apenas a partir de reproduções: uma caneca descrita como um “jarro decorativo para a Ceia do Senhor”, outrora na coleção de Karl von Rothschild em Frankfurt, é, tanto quanto se pode julgar pelas fotografias, de uma alta qualidade ornamental» [23].
Proveniência
O Museu Medeiros e Almeida possui em arquivo um documento da casa seguradora de obras de arte Thomas Lumley Ltd., datado de 12 de março de 1958, avaliando para efeitos de seguro a presente peça a pedido de Dorothy Hart, seguramente antes da intenção da sua venda. Estabelece-se assim que esta tem como última proveniência a coleção de James Geoffrey Hart (Whych Cross Place, Middlesex, Inglaterra), e depreende-se que Medeiros e Almeida a tenha adquirido a Dorothy Hart, sua viúva, em data desconhecida, mas posterior a 1958 e ao falecimento do marido, como várias outras peças da sua coleção.
Nesta avaliação a peça encontra-se descrita como “uma caneca em prata alemã, parcialmente dourada, finamente gravada e cinzelada, do início do século XVII. Proveniente da coleção Rothschild” (tradução da autora), e este breve descritivo sugere uma pista fundamental ao estudo da sua procedência anterior.
FMA 1906 – Avaliação de Thomas Lumley Ltd., de 12 de março de 1958. Arquivo documental do Museu Medeiros e Almeida.
Os Rothschild são uma família judia originária da Alemanha que estabeleceu um império bancário de sucesso incomparável na segunda metade do século XVIII. Ao longo das suas sucessivas gerações, esta família empregou a sua fortuna para reunir uma das mais extraordinárias coleções de arte privada do mundo. Mayer Amschel Rothschild (1744-1812), nascido em Frankfurt e “fundador” desta dinastia, teve cinco filhos que se estabeleceram nos principais centros financeiros da Europa (Londres, Paris, Viena, Frankfurt e Nápoles), o que, juntamente com o hábito de realizar casamentos estratégicos (por vezes entre primos), contribuiu para o desenvolvimento e conservação da fortuna – e das coleções de arte – na família.
Várias das coleções dos Rothschilds foram desde então doadas a museus, como o British Museum, em Londres, ou o Musée du Louvre, em Paris, e a mais de 150 museus europeus e americanos; mas muitas das suas peças vieram a dispersar-se, distribuídas por herança fora desta família, colocadas no mercado de arte, ou mesmo desaparecidas durante as guerras napoleónicas [24].
O carácter sucinto do nosso documento de 1958 não permite determinar a que ramo da família Rothschild procede a peça da nossa coleção. É sabido que Mayer Carl von Rothschild (1820-1886) acumulou em Frankfurt uma importante coleção com cerca de 5.000 peças de ourivesaria alemã [25], ou que Alphonse von Rothschild (1878-1942), do lado da família vienense, estabeleceu uma das melhores coleções de peças religiosas em ouro e prata renascentista alguma vez reunida. Mas estes são apenas alguns exemplos das muitas coleções reunidas por membros da família Rothschild que incluem peças de ourivesaria deste período.
A consulta do catálogo da coleção de Nathaniel Mayer Victor Rothschild, 3.º Barão de Rothschild (1910-1990) – mais conhecido como Victor Rothschild –, levada a leilão pela Sotheby & Co. de 26 a 28 de abril de 1937, permite por fim a identificação das origens “Rothschild” desta peça.
De acordo com o prefácio deste catálogo, as peças listadas constituem uma impressionante amostra daquilo que representa apenas um quinto do património originalmente reunido por Mayer Carl von Rothschild, em Frankfurt [26]. Por sua morte, em 1886, este é distribuído entre cinco das suas seis filhas – uma destas, Margarethe, é deserdada por conta do seu objetável casamento com um marido “francês, católico, viúvo e de fortuna moderada” [27]. Consideramos, na verdade, que a parte substancial da sua coleção de arte propriamente dita seja repartida entre duas das suas filhas, Adèle e Emma.
Catalogue of the celebrated collection of German, Dutch, & other Continental silver and silver-gilt of the 15th, 16th, 17th and 18th centuries, also massive English silver of the 18th and early 19th centuries, removed from 148 Piccadilly, W.1, sold by order of Victor Rothschild, Esq. Londres: Sotheby & Co., 1937.
A parte legada à sua segunda filha, Emma Louisa von Rothschild (1844-1935), é trazida para Londres e exposta na célebre mansão de 148 Piccadilly, residência do seu marido (e primo), Nathaniel Mayer de Rothschild (1840-1915), reunindo-se com as peças que este, por sua vez, herdara da considerável coleção do pai, Lionel Nathan de Rothschild (1808-1879). A casa e o respetivo recheio foram legados a Victor Rothschild, que dispersa a coleção no aparatoso leilão de 1937. Nesse mesmo ano, vendia também a célebre propriedade, que viria a ser demolida pouco tempo depois.
Catalogue of the magnificent contents of 148 Piccadilly, W.1, sold by order of Victor Rothschild, Esq. Londres: Sotheby & Co., 1937.
A nossa peça constitui o lote 260, colocado em praça no terceiro dia deste leilão, descrita no catálogo em pormenor e ilustrada com qualidade:
Catalogue of the celebrated collection of German, Dutch, & other Continental silver and silver-gilt of the 15th, 16th, 17th and 18th centuries, also massive English silver of the 18th and early 19th centuries, removed from 148 Piccadilly, W.1, sold by order of Victor Rothschild, Esq. Londres: Sotheby & Co., 1937, 83 e fig. XXIX.
Ficam apenas por apurar a proveniência (polaca?) original desta peça e as circunstâncias da sua aquisição por Mayer Carl von Rothschild.
Curiosamente, a nossa caneca foi, ao longo de largos anos, referenciada e por vezes ilustrada em diversas publicações da especialidade [28], sempre como pertencente “à coleção Rothschild”, esclarecendo-se agora, portanto, o seu destino subsequente e atual localização.
Joana Ferreira
Museu Medeiros e Almeida
[1] Timothy Schroder. British and Continental gold and silver in the Ashmolean Museum. Oxford: Ashmolean Museum, 2009, vol 3, 1290-1293.
[2] The British Museum. “Tankard WB.128”. https://www.britishmuseum.org/collection/object/H_WB-128; Ashmolean Museum, University of Oxford. “Tankard WA2013.1.185”. https://collections.ashmolean.org/object/780036; Nordenfjeldske Kunstindustrimuseum. “Hansekanne, NK4244”. https://digitaltmuseum.no/021065973035/hansekanne-drikkekanne.
[3] Veja-se a utilização desta mesma solução construtiva, com um brasão de armas de desenho similar, no tankard de produção provavelmente alemã de cerca de 1640-50, em: PeterSzuhay, “1650 fire gilt silver tankard”, https://www.peterszuhay.com/ads/1650-fire-gilt-silver-tankard/.
[4] Vejam-se, a título exemplificativo, os exemplares que figuram em: Schroder, British and Continental gold and silver in the Ashmolean Museum, vol 3, 1010-1011; Ashmolean Museum, University of Oxford. “Tankard, WA1949.90”. https://collections.artsmia.org/art/18351/tankard-nathanial-schlaubitz; Christie’s. “A Continental silver-gilt tankard”. https://www.christies.com/lot/lot-4527213; Sotheby’s. “A German silver-gilt tankard, unmarked, circa 1600”. https://www.sothebys.com/en/buy/auction/2022/hotel-lambert-une-collection-princiere-volume-ii-kunstkammer/a-german-silver-gilt-tankard-unmarked-circa-1600.
[5] Jost Amman, Icones novi testamenti…, Frankfurt: Feyerabend, 1571, 108. The Munich DigitiZation Center (MDZ). “Icones novi testamenti…”. https://mdz-nbn-resolving.de/details:bsb00024383.
[6] Thesaurus Historiarum Veteris et Novi Testamenti…, Augsburg: Kaiserlich Franziszische Akademie, 1760, 403, 405, 429. StaatsStadtbibliothek. Bayerische Staatsbibliothek (BSB). “Thesaurus Historiarum Veteris et Novi Testamenti…”. https://opacplus.bsb-muenchen.de/title/BV011203422.
[7] Virtuelles Kupferstichkabinett. “Die kanaanäische Frau bittet Christus um Hilfe”. Herzog Anton Ulrich-Museum. http://kk.haum-bs.de/?id=visscher-c-j-exc-ab3-0066.
[8] Esta obra é publicada originalmente sob anonimato em 1670 e depois reimpressa em 1680, com a autoria de “Sieur de Royaumont, Prieur de Sombreval”, pseudónimo que é atribuído tanto a Nicolas Fontaine (1625-1709) como a Isaac-Louis Lemaître de Sacy (1613-1684) – ambos estiveram presos na Bastilha de 1664 a 1669 e terão possivelmente colaborado na produção desta obra.
[9] Sieur de Royaumont, Prieur de Sombreval, L’Histoire du Vieux et du Nouveau Testament…, Paris: Chez Pierre Le Petit, 1680, 395, 397, 423. Google Books. “L’Histoire du Vieux et du Nouveau Testament”. https://books.google.pt/books?id=nuSxEwpDbHUC&printsec=frontcover&dq=L%27+Histoire+du+vieux+et+du+nouveau+Testament&hl=pt-PT&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false.
[10] Eugen von Czihak, Die Edelschmiedekunst früherer Zeiten in Preussen, Leipzig: Westpreussen, 1908, 131; Marc Rosenberg, Der Goldschmiede Merkzeichen, vol. 4, Frankfurt: Frankfurter Verl.-Anst., 1922, vol. 4, 451; Gradowski e Kasprzak-Miler, Złotnicy na ziemiach północnej Polski, część I, Varsóvia: Ministerstwo Kultury, 2002, 131, 186; Tadeusz Chrzanowski e Marian Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, Varsóvia: Państwowe Wydawnictwo Naukowe, 1988, 131.
[11] Gradowski e Kasprzak-Miler, Złotnicy na ziemiach północnej Polski, część I, 130.
[12] Czihak, Die Edelschmiedekunst früherer Zeiten in Preussen, 128; Rosenberg, Der Goldschmiede Merkzeichen, vol. 4, 450; Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 130.
[13] AA. VV., Królewskie miasto – trzy stulecia przemian kultury artystycznej Torunia (1454-1793). Wystawa na 160-lecie Muzeum Okręgowego, Toruń: Muzeum Okręgowe w Toruniu, 2021, 84.
[14] AA. VV., Królewskie miasto…, 86; Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 43, 48, 53.
[15] Katarzyna Krupska-Lyczak, Thomas Schmidt – złotnik toruński z połowy XVII wieku. Toruń: Rocznik Toruński, 2020, 227.
[16] AA. VV., Królewskie miasto…, 87-90; Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 43, 48.
[17] Vejam-se, a título exemplificativo, os exemplares ilustrados em: Barbara Tuchołka-Włodarska, Złotnictwo od XIV do XX wieku w zbiorach Muzeum Narodowego w Gdańsku, Gdansk: Muzeum Narodowe w Gdańsku, 2005, 66-67, cat. III.2 e cat. III.3.
[18] Acerca desta peça, consultem-se: Tuchołka-Włodarska, Złotnictwo od XIV do XX wieku…, 65-66, cat. III.1; AA. VV., Królewskie miasto…, 87, 273-275; Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 54, 114, il. 92; e, de acordo, com as informações amavelmente prestadas por Anna Baranowska-Fietkiewicz, do Muzeum Narodowe w Gdańsku, as seguintes referências que não nos foi possível consultar: M. Woźniak, Sztuka złotników toruńskich manieryzmu i baroku, Warszawa-Poznań-Toruń 1987, 46; Danziger Silber – Die Schätze des Nationalmuseums Gdańsk, B. Tuchołka-Włodarska, red. A. Löhr, Bremen 1991, cat. 37; Klejnot w koronie Rzeczypospolitej. Sztuka zdobnicza Prus Królewskich, t. II, Gdansk 2006, 180, cat. III.19. Mărturii ale credinţei, semne ale mândriei. Creaţii ale meşterilor orfevrieri pentru patricienii oraşului Gdańsk din colecţiile Muzeului Naţional din Gdańsk / Confessions of faith, symbols of pride. The works of goldsmiths for Gdańsk patricians from the collection of the National Museum in Gdańsk, Gdansk 2011, 86, cat. 39.
[19] Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 54, il. 89.
[20] De acordo com as informações prestadas por Anna Baranowska-Fietkiewicz, do Muzeum Narodowe w Gdańsku, vd. M. Woźniak, Sztuka złotników toruńskich manieryzmu i baroku, Warszawa-Poznań-Toruń, 1987.
[21] Ilustrada e descrita em AA. VV., Królewskie miasto…, 264, cat. 24.
[22] Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 26, il. 9, 53.
[23] Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, il. 89 (tradução da autora).
[24] The Rothschild Archive, “Rothschild art and object collections”, https://www.rothschildarchive.org/collections/rothschild_faqs/rothschild_art_and_object_collections.
[25] AA. VV., Trésors de l’orfèvrerie allemande du XVIᵉ siècle…, Toulouse: Fondation Bemberg, 2016, 33; Philippa Glanville, “Mayer Carl von Rothschild: collector or patriot?”, The Magazine Antiques (2005), 36.
[26] Catalogue of the celebrated collection of German, Dutch, & other Continental silver and silver-gilt of the 15th, 16th, 17th and 18th centuries, also massive English silver of the 18th and early 19th centuries, removed from 148 Piccadilly, W.1, sold by order of Victor Rothschild, Esq. Londres: Sotheby & Co., 1937, 1a.
[27] Glanville, “Mayer Carl von Rothschild: collector or patriot?”, 41.
[28] Chrzanowski e Kornecki, Złotnictwo toruńskie…, 8, 54, il. 91; Czihak, Die Edelschmiedekunst früherer Zeiten in Preussen, 131.