No acervo de arte chinesa do Museu existe um pequeno conjunto de peças em esmalte cloisonné chinês, uma técnica que empresta às peças grande atratividade.
A arte do esmalte:
A arte de aplicar esmaltes sobre o metal – principalmente ouro e cobre – enquanto camada protetora e alternativa decorativa, terá surgido na Antiguidade paralelamente na Europa e no Médio Oriente. Desde logo se conhecem duas técnicas; o ‘cloisonné’ e o ‘champlevé’. Os trabalhos mais antigos conhecidos são em cloisonné, provenientes de Chipre, datando do séc. XIII a.C.. Os Celtas também produziram esmaltes champlevé mas foi no império bizantino que se desenvolveu grandemente esta arte, a partir dos séculos IX, X da nossa era.
A produção bizantina caracterizava-se pela técnica de cloisonné sobre ouro, nomeadamente em alfaias religiosas e joalharia. De Bizâncio a produção estendeu-se à Europa central aquando do casamento em 972, da princesa bizantina Teofânia (neta do imperador Constantino), com o imperador do Sacro-Império Romano-Germânico Otão II, que levou no seu dote peças de cloisonné bem como artífices desta arte. Os germanos substituíram o ouro por cobre, embaratecendo ainda mais a produção que depois se espalhou por toda a Europa, sendo os principais centros produtivos, os mosteiros. A fama destas peças propagou-se com a extraordinária produção das oficinas de Limoges.
A técnica do cloisonné:
Acredita-se que a técnica de esmaltagem tenha surgido da necessidade de uma alternativa ao oneroso processo de adorno de peças de metal (ouro, prata, cobre e bronze) com pedras preciosas e semipreciosas por um processo mais barato mas de aspeto igualmente luxuoso.
A técnica de cloisonné consiste na aplicação de finas tiras de metal – cerca de 0,5 mm. -, que são soldadas perpendicularmente ao corpo de uma peça seguindo um padrão decorativo. O material mais utilizado é o cobre pela facilidade com que é maleável. As paredes miniatura criadas formam alvéolos que são posteriormente cheios com pó de esmaltes coloridos. A peça é levada ao forno a cerca de 800º C, para que os esmaltes se derretam, se fundam com a superfície de metal e solidifiquem. Após a cozedura – diferente para cada cor -, os esmaltes são polidos várias vezes e o metal das tiras dourado, adquirindo as peças um aspeto colorido e brilhante.
O termo ‘cloisonné’ provém da palavra francesa ‘cloison’ que significa divisória, cela.
O esmalte é uma matéria vítrea, composta por uma mistura de pederneira ou areia, chumbo vermelho e soda ou potássio, fundidos, estes materiais produzem um fluxo translúcido que é a base à qual se juntam os corantes. Os corantes são óxidos metálicos – cobre para o verde, cobalto para o azul, ferro para o vermelho, zinco para o branco, manganésio para o violeta e antimónio, chumbo ou prata para o amarelo – que introduzidos no processo de fusão resultam na cor. Após as misturas e a secagem, o esmalte é reduzido a pó.
Existe outra técnica de esmaltagem de metais; o ‘champlevé’, neste caso, os alvéolos são criados por depressões escavadas directamente na superfície dos objetos.
O cloisonné na China:
Segundo a tradição, a tecnologia do trabalho de esmaltes foi importada – provavelmente do Médio Oriente – no século XIV, aquando da presença Mogol na China – a dinastia Yuan (1279-1368).
Neste período chegaram muitos islâmicos à província de Yunnan (no sudoeste), de onde é proveniente o trabalho de cloisonné. Por outro lado, aquando da queda de Constantinopla, em 1453, vários artesãos bizantinos refugiaram-se na China, podendo estes ter também tido algum papel no desenvolvimento da técnica.
Em 1388, o letrado Cao Zhao no seu influente ‘Guia para o estudo das Antiguidades’ (Gegu Yaolun), desmereceu este tipo de trabalho, considerando-o estrangeiro e próprio dos apartamentos femininos. Poucos anos mais tarde, durante o reinado do culto imperador Xuande (1426-1435) da dinastia Ming, o cloisonné tornou-se muito apreciado, tendo sido largamente utilizado o novo corante vindo da Pérsia; o azul (à semelhança do que aconteceu com a porcelana).
No reinado do sétimo imperador da dinastia Ming; Jingtai (1450-1457), o cloisonné atingiu tal popularidade que o trabalho é conhecido como ‘jingtailan’, juntando-se o nome do imperador ao da famosa cor (lan=azul).
Em 1456, o letrado Wang Zuo refere os cloisonnés como sendo feitos por artesãos muçulmanos no sul da China, o que pode ajudar a esclarecer o facto de o cloisonné não ser tido como uma das artes tradicionais chinesas. São destes reinados as peças mais apreciadas. Uma técnica semelhante ao cloisonné foi utilizada desde a dinastia Ming na porcelana – a porcelana ‘fahua’.
De início as tiras de cobre (que na China são coladas ao corpo com uma cola vegetal), eram mais grossas – cerca de 1 mm. -, as divisões do cloisonné menos complexas e a paleta de cores mais restrita. Em inícios do século XV, a técnica estava amplamente desenvolvida tendo-se complicado o nível dos padrões decorativos e dado a introdução e mistura de novas cores.
A complexidade e alto custo de produção bem como o aspeto luxuoso e brilhante das peças de cloisonné restringia o seu uso às elites; assim, desde o início que as peças eram destinadas ao entorno religioso – em forma de interpretações de bronzes arcaicos como queimadores de incenso ou jarras de altar – sendo utilizadas em cerimónias e rituais budistas e ao entorno palaciano, enquanto peças decorativas sendo as tipologias inspiradas na porcelana imperial antiga; aquários para carpas, taças, jarras, pratos, castiçais etc..
O imperador Kangxi (1662-1722), na senda da confirmação da sua nova dinastia Manchu, foi fevroso adepto das artes, costumes e religiões tradicionais chinesas, tendo reabilitado esta arte algo abandonada desde meados do século XVI, ao fundar em 1693 um atelier de trabalhos de cloisonné na Cidade Proibida pertencente ao grupo de cerca de 30 manufaturas que patrocinou directamente, onde, apesar dos avanços técnicos, se produziram cópias do período Ming.
Com o imperador Qianlong (1722-1795), a paleta de cores sobe para cerca de 20 esmaltes (incluindo o famoso rosa, o preto, o laranja e variantes de roxo, verde e azul) e a exuberância – patente em toda a produção artística deste imperador – vai marcar as peças do seu reinado. O século XVIII é, pois, o mais prolífero produtor tanto de peças de consumo interno (nomeadamente imperiais) – que mantêm a sua simbologia mas são essencialmente decorativas -, como de peças de exportação.
Cloisonné chinês de exportação:
No âmbito do gosto pela estilo chinês/oriental que se desenvolveu no ocidente a partir de meados do século XVII, desde finais dessa centúria que grandes quantidades de peças cloisonné foram produzidas na cidade de Cantão – província de Guangdong no sul da China onde se concentrava o comércio com os estrangeiros -, destinando-se exclusivamente à exportação para a Europa e Estados Unidos. As peças mais correntes incluíam estatuetas e outros objetos do quotidiano como caixas, taças e bules ao ‘gosto chinês’ destinando-se a cumprir a moda da ‘chinnoiserie’ que se generalizou no século XVIII.
As peças da Casa-Museu:
A guarnição de chaminé composta por um elefante encimado por relógio e dois candelabros compostos a partir de duas perdizes e o par de queimadores de incenso em forma de garças, são peças em cloisonné chinês para o mercado de exportação. A garniture data entre finais do século XVIII e início do século XIX e o par de garças será do século XIX tendo sido produzido portanto, na senda das inúmeras encomendas europeias oitocentistas.
O trabalho do cloisonné revela uma técnica avançada, recorrendo a um padrão decorativo muito detalhado e ao uso de numerosas cores – note-se as penas das asas dos pássaros que são trabalhadas com seis (perdizes) e nove cores (garças) ou a sela e arreios do elefante de complexa decoração e riqueza cromática e no dos pássaros, a sua plumagem.
Descontextualizadas, as peças são despidas da sua simbologia original; o elefante, que seria parte de um par (cada um virando a cabeça para um lado) e que serviria como queimador de incenso, suporte de jarra ou de urna, não fazia conjunto com as perdizes e seria uma peça de oferta portadora de desejos de esperança já que o seu nome – hsiang – tem o mesmo som que a palavra ‘esperança’. O elefante apresenta-se ricamente ajaezado como seria no caso de uma parada sendo que os desejos auspiciosos seriam reforçados pela decoração da sela onde se representa uma elaborada pedra de soar (um dos oito objetos preciosos da simbologia chinesa) e as características nuvens em forma de cabeça de ruyi, rochas e ondas com espuma.
Moldado realisticamente, é de notar outra das características do esmalte chinês no corpo do elefante bem como no das perdizes ou das garças; os fios do cloisonné não servem unicamente para separar cores, mas também para enriquecer a decoração e emprestar realismo e movimento ao conjunto; no caso do elefante, pretende-se imitar o enrugado da pele e no dos pássaros, a sua plumagem.
Tanto as garças como as perdizes seriam queimadores de incenso, objetos na sua origem dedicados aos rituais budistas, pelo que as asas dos pássaros se removem para colocar o incenso e os bicos são abertos para libertarem os vapores.
As três peças da guarnição foram posteriormente montadas em França com bronzes dourados já no século XIX. Esta foi uma moda lançada pela Marquesa de Pompadour que se aplicava principalmente a peças de porcelana da China.
À peça central da guarnição foi retirada a parte de cima (o dorso do elefante apresenta uma abertura que corresponde a um anterior encaixe de uma jarra ou urna), tendo sido acrescentada uma composição em bronze dourado na qual se inclui um relógio em cima do qual se senta, numa espécie de cesto, um menino trajando ‘à chinesa’ segurando um leque e uma taça.
O par de perdizes perdeu a sua função para servir de decoração a elaborados candelabros de três lumes, compostos por ramos de flores e folhas que se entrelaçam, decorados com seis delicadas flores de porcelana francesa e uma borboleta em bronze. Esta encenação, bem como as bases em que assentam as peças bem ao estilo rocaille, ilustram a ideia errónea que se fazia no Ocidente, do que era a distante e exótica China.
Proveniência:
A garniture com relógio e par de candelabros pertenceu ao colecionador inglês Michael Renshaw, Esq., tendo sido comprada por Medeiros e Almeida em leilão da Christie’s, de Londres, de 4 de dezembro de 1969, lote 35, por Gns 1.600, por intermédio do antiquário Stanley J. Pratt (27 Mount Street), de Londres.
Quanto ao par de queimadores de incenso, este foi adquirido em leilão da Christie’s, Londres, de 5 de outubro de 1970, por £1.000, por intermédio do antiquário John Sparks Ltd. (128, Mount Street), de Londres que atuava diversas vezes como intermediário de peças chinesas para o colecionador.
A Casa-Museu agradece as valiosas informações fornecidas pela conservadora das coleções asiáticas do Museu de Artes Decorativas de Paris (Musée des Arts Décoratifs – MAD), Béatrice Quette.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
COSGROVE, Maynard G.; The enamels of China and Japan: Champlevé and cloisonné. London: Robert Hale, 1974
MARGERIE, A., POSSELLE, L. ; L’Oeuvre de Limoges, émaux limousins du Moyen Âge. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1995
SEELER, Margaret Rosa; The art of enameling: how to shape precious metal and decorate it with cloisonné, champlevé, plique-à-jour, mercury gilding and other fine techniques. New York: Van Nostrand Reinhold, 1969
WESSEL, Klaus. Byzantine Enamels. Germany: Verlag Aurel Bongers, 1967
WILLIAMS, Haydn; Enamels of the World 1700-2000: the Khalili Collections. London: The Khalili Family Trust, 2009
Desconhecido
Séc. XVIII / Séc. XIX
China, França
Esmalte, cobre, bronze dourado
Elefante: Alt. 57cm x Larg. 30,5cm Perdizes: Alt. 35,5cm x Larg. 14cm Garças: Alt. 29cm x Larg. 7,5cm