O possui no seu espólio de joalharia um curioso grilhão com pendentes, peça de aparato para o colo, realizada em ouro com aplicação de pingentes decorados com esmaltes polícromos e diamantes. A peça é composta por grilhão principal com pendente em forma de cruz grega, e quatro segmentos de grilhão dispostos na horizontal. Dos grilhões horizontais dispõem-se seis pendentes: uma laça, quatro corações filigranados e um pendente em ouro cinzelado encimado por coroa fechada.
Breve nota sobre a joalharia em Portugal
São escassas as joias que se conservam anteriores ao século XVI em Portugal, o que se deve principalmente a dois motivos: a escassez de matérias-primas para o seu fabrico e o facto de muitas vezes as joias serem desfeitas e refeitas consoante as modas da época. Como consequência, a maioria da joalharia medieval e quinhentista que chegou até os nossos dias diz respeito a objetos devocionais ou objetos cerimoniais.
Durante o século XVI a chegada de ouro e pedras preciosas a Lisboa através de Goa propicia um aumento da produção joalheira. As gemas aliam-se aos coloridos esmaltes dando lugar a deslumbrantes peças que aliam as influências orientais com as trazidas pelos ourives e lapidários estrangeiros que, atraídos por estas riquezas, se estabelecem na capital. Este predomínio das pedras preciosas continua durante o século XVII, com a sua utilização em harmoniosos exemplares de prata ou ouro.
No século XVIII o grande protagonista vai ser o diamante, agora chegado não só da India como também do Brasil; a experimentação com diferentes tipos de talhe e a sua conjugação com o ouro e a prata proporciona um requinte e esplendor únicos. Do Brasil chegam também as gemas coloridas com as quais Portugal atinge, na segunda metade do século, um dos pontos altos da arte da joalharia, com peças de grande cromatismo e dinamismo formal (laças, brincos articulados, trémulos, sequilés, …) que assentam perfeitamente nesta época de ostentação que, neste campo, ficará caracterizada como “a festa da cor”. O início do século XIX vem a ser uma continuação do século anterior, embora com formas mais estilizadas e um gosto de tendência romântica sendo que, no final do século, volta a olhar para o medievo e o renascimento dentro do espírito revivalista que carateriza a época.
Paralelamente ao desenvolver deste tipo de joalharia, no qual as pedras jogam um papel fundamental, existiu sempre uma outra tendência em Portugal, nomeadamente no Norte: a joalharia em ouro. Nesta tipologia, o que prima é a pureza do material que pode ou não, dependendo da época, fazer uso de outros recursos como o esmalte ou a inclusão de diamantes ou cristais translúcidos.
O ouro na joalharia do Norte de Portugal
Ao longo da história foram muitas as civilizações para as quais o ouro era o material mais valioso, não só pelo seu valor intrínseco, mas também pelas conotações simbólicas a ele associadas. As joias no geral, e a joalharia em ouro em particular, têm a capacidade de, aparentando ser objetos de mera frivolidade, satisfazer as mais variadas inquietações humanas, seja como objetos de valor simbólico, de devoção religiosa, como símbolos de poder ou de vaidade, ou como forma de atesourar riquezas. Isto é especialmente evidente no Norte de Portugal, onde o ornamento em ouro está ligado intimamente com os episódios mais importantes da vida (o batizado, o casamento, a ida à igreja, as romarias, as feiras), existindo joias específicas para cada ocasião, sendo que a joia assume uma relevância que se sobrepõe à função estética para transformar-se numa forma de se apresentar em sociedade. A forma de aquisição das joias também está ligada ao seu papel sociológico, assim a joia podia ser adquirida como forma de investimento (tanto económico como social), podia ser herdada, fruto de uma dádiva ou parte do dote, sendo que muitas vezes proveniência e forma estavam associadas.
Os principais núcleos de produção desta joalharia em ouro eram o Porto, Gondomar e a Póvoa de Lanhoso, aos que se unem ainda Braga e Guimarães. Porém existiam oficinas de menor dimensão por todo o Minho e Douro Litoral. Para além das vendas realizadas a partir dos centros de fabrico, foi fundamental o papel dos ourives feirantes, que não só fizeram chegar a ourivesaria a todo o território, como também foram veículo para a transmissão de influências estéticas e técnicas.
Quando se fala na joalharia de ouro do norte de Portugal existem algumas dificuldades na diferenciação entre ourivesaria popular e erudita. Embora, obviamente, existam disparidades no uso e tipo de joias entre os diferentes estratos sociais, muitas vezes estas diferenças não dizem necessariamente respeito à qualidade das mesmas. Na verdade, a joalharia popular era do agrado de todos as classes sociais e muitas vezes não eram estas as peças mais simples nem de menor qualidade, sendo muitas vezes imitadas pela joalharia dita erudita.
De forma simplista poderíamos agrupar a joalharia popular minhota e do Douro Litoral em duas categorias: peças de festejo e peças de uso quotidiano. Entre as primeiras as grandes gramalheiras (grossa corrente em ouro formada por elos uniformes), os grilhões (fio, como o da peça em estudo, formado por grossos elos), pendurezas de grande tamanho (como cruzes de Malta ou grandes corações) ou brincos à Rainha. Entre as segundas existia sempre algum tipo de brinco, o colar de contas ou pendentes de menor tamanho em fios simples ou em fitas de seda. Tanto umas como outras estariam sempre intimamente associadas ao traje, sendo que as mulheres se “ouravam” no peito, nas orelhas e no pescoço e, em muito menor medida, nas mãos e pulsos.
Embora o ouro fosse o material fundamental, e muitas vezes único, a partir do qual era constituída a peça, desde meados do século XIX será frequente o uso de esmaltes, nomeadamente azuis e brancos, introduzindo a possibilidade de jogos cromáticos e recuperando uma técnica decorativa de reminiscências setecentistas. Em relação à pedraria, quando existia, era normalmente na base de gemas de pouco valor, embora isso também variasse dependendo do destinatário, sendo que em peças mais eruditas é frequente o uso de diamantes que trazem luz e brilho à joia, enquanto nas peças mais populares estes são substituídos por vidros ou pontas de ouro facetado de modo a criar um efeito semelhante.
A filigrana – ou trabalho em fio de ouro – também é uma constante na joalharia do norte de Portugal e tem grande êxito durante o século XIX constituindo, de modo semelhante ao que acontecia com os esmaltes, o reviver de uma técnica antiga. Esta arte, de origem pré-romana, era já trabalhada pelos povos ibéricos, embora a atual filigrana portuguesa possua um caracter diferenciado que remonta aos séculos XVII e XVIII.
O colar da Casa-Museu
A peça em estudo é, pela sua forma e pela sua decoração, uma peça claramente de aparato, produzida para uma ocasião específica e não para o seu uso quotidiano. Realizado inteiramente em ouro, com esmaltes polícromos e pedraria, este colar apresenta difícil classificação. Embora inspirada nos trabalhos de ourivesaria popular minhota, a presença de alguns elementos leva-nos a pensar que será uma peça erudita fruto de uma encomenda específica.
Este colar, de disposição complexa, é constituído por um grilhão principal de uma única volta atravessado horizontalmente por quatro secções de igual estrutura. O grilhão é formado por elos circulares, sendo que na corrente exterior existe uma alternância entre elos lisos e elos cinzelados com motivos fitomórficos, enquanto nas secções interiores todos os elos são lisos. Estas peças estão unidas em ambos os lados por pequenas argolas lisas alternando com rosetas. Pendendo de cada uma das secções do grilhão encontramos diferentes pendentes. Na secção mais próxima do pescoço pende um laço de filigrana trabalhada com motivos florais, composto pelas laçadas propriamente ditas, as fitas e botão central emoldurado por pétalas, decorado com flor sextafolia em esmalte azul sobre fundo branco, compõe-se ainda de dois pingentes unidos à peça principal por fina malha. Na segunda secção, dois corações filigranados (embora não flamejantes), tridimensionais, apresentando ao centro composição floral em esmalte azul e branco com pedra encastrada. No terceiro segmento encontra-se um pendente composto por três secções: uma coroa fechada (real?) na parte superior; ao centro uma chapa de ouro recortada e cinzelada, de formato retangular com os bordos lobulados e decoração à base de esmaltes azuis e brancos e pedraria de onde pendem três pingentes iguais formados por enrolamento de folhas em ouro de onde pede uma flor de pétalas esmaltadas a azul e botão central com pedra engastada. Na última secção horizontal outros dois corações filigranados com decoração ligeiramente diferente, com sendas flores quadrifólias em esmalte azul e pedraria ao centro. Da corrente principal pende uma cruz grega, de braços concheados com trabalho em canutilho e rosetas decorada tendo ao centro cinco pedras circulares dispostas em cruz.
São diversas as características formais e estilísticas desta peça que nos levam a apontar para uma data de produção de meados do século XIX. Existe uma ampla difusão de peças em ouro que como esta apresentam diamantes e esmaltes durante todo o século XIX. Também no século XIX se recupera a arte da filigrana em peças de ourivesaria, muitas vezes em peças eruditas, mas de clara inspiração popular, como é o caso. A partir do século XIX surge uma profusão de corações, que podem ou não ser filigranados, com aplicação de pedraria.
Embora existam marcas em diversos lugares da peça, a sua difícil leitura não nos dá respostas conclusivas. Uma das marcas, que parece corresponder à marca de ourives, poderia ser atribuível ao ourives do Porto Joaquim Correia, registada em 1848 por Vicente Manuel de Moura, o que se enquadraria dentro da hipótese de datação anteriormente sugerida. No livro Reais Joias no Norte de Portugal, de Gonçalo Vasconcelos e Sousa, existe uma fotografia de um grilhão de corrente idêntica a esta (embora corrente simples e sem pendentes), pertencente à coleção de Ourivesaria Luís Ferreira & Filhos, datado da segunda metade do século XIX (apresenta marcas do ensaiador do Porto Vicente Manuel de Moura, embora o ourives não esteja identificado).
Para além da marca de ourives e outras marcas ainda por identificar, a peça apresenta buriladas de ensaio (as vulgarmente conhecidas como bichas), linhas incisas em forma de ziguezague, que denotam a recolha de metal para ensaio.
O colar é apresentado no seu estojo original o que o liga às peças de joalharia erudita, já que as populares normalmente não tinham estojo; este facto reforça a nossa teoria de esta se tratar de uma encomenda específica, de alguém com poder aquisitivo. Os estojos têm uma grande importância na joalharia por constituírem, em si mesmos, uma peça de coleção e um documento sobre a joia que guardam. A partir de meados do século XVIII os estojos adquirem cada vez maior destaque, com caixas de couro que os estojeiros decoram com elaborados gravados a ouro seguindo a estética da época (maioritariamente com motivos fitomórficos e arabescos). Os interiores são acondicionados para acomodar a joia para a qual foram feitos, com bases de veludo e cetim ou seda no interior das tampas. Porém, a partir da primeira metade do século XIX os estojos libertam-se de decorações supérfluas perdendo interesse em relação aos do século anterior. O estojo da Casa Museu é de madeira forrada com um papel verde lavrado com flores tendo o interior forrado a veludo bege; o facto de estar despido de ornamentação é mais um fator que nos leva a apontar os meados do século XIX como uma datação possível para esta peça e o seu estojo.
Uma história por contar…
Continuam a ser muitas as questões que este colar levanta. Se por um lado é uma peça, como já foi dito, de clara inspiração na joalharia popular do Norte, esta não se enquadra em nenhuma das tipologias existentes. Enquanto na tradição popular um dos fatores de ostentação é dado pela acumulação de diversas peças, aqui encontramos uma única peça que, em si própria, é luxuosa.
O que mais chama a atenção neste colar, é a presença de uma coroa de oito arcos perlados fechados rematados por esfera encimada por cruz latina, tal como a usada pelos monarcas portugueses até 1580 e que a partir de 1640, após a oferenda do rei D. João IV, é dedicada à Nossa Senhora da Conceição, “a verdadeira rainha de Portugal”. Embora seja frequente aparecer esta coroa na ourivesaria popular a encimar medalhões da Nossa Senhora, o seu uso como elemento autónomo é por nós desconhecido, o que nos leva a pensar mais uma vez numa encomenda específica.
Perante a utilização deste elemento diferenciador e não sendo este, por si, um elemento característico deste tipo de joalharia, juntando ao facto de não existir qualquer informação sobre a proveniência desta peça ou sobre o seu modo de integração na coleção Medeiros e Almeida, este curioso colar levanta mais dúvidas do que certezas, ficando a sua história por contar…
O MMA agradece à investigadora Rosa Maria Mota as suas valiosas observações em relação a esta peça.
Samantha Coleman
Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@museumedeirosealmeida.pt
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Atribuível a Joaquim Correia (at. 1848)
Meados a finais do século XIX
Porto, Portugal
Ouro, esmaltes e diamantes; madeira, veludo, fita de nastro, papel e metal comum (estojo)
Alt. 39,9 cm / Peso 210 g
FMA 865