Este trabalho analisa um grande pano de seda bordado chinês pertencente ao acervo da Casa-Museu Medeiros e Almeida. Trata-se de uma colcha comemorativa de aniversário chamada ‘Shou Shang’, produzida na dinastia Qing, provavelmente do reinado Daoguang (1821-1850) ou Xianfeng (1851-1861).
A Seda A palavra China deriva do nome chinês para um tipo de seda; sí. Tal é a importância da seda, produzida no país desde o período Neolítico (c. 7000-1600 a.C.). Reza a lenda que Hsi Ling Shi, noiva do Imperador Amarelo (2698 a.C.-2599 a.C.), inventou a fiação da seda quando, tomando chá debaixo de uma amoreira, um casulo caiu na sua chávena, fazendo – a água quente – com que os filamentos que envolvem o casulo se soltassem, originando um fio. Havendo ou não algum fundo de verdade em lendas como esta ou outras que povoam o imaginário chinês, o certo é que a sericultura foi praticada na China desde muito cedo, tendo o processo de produção sido mantido como segredo de estado.
Assim, a seda fez parte da economia da China, sendo trocada com os países vizinhos – até mesmo usada para comprar a paz – e exportada através da Rota da Seda iniciada na dinastia Han (206 a.C.-220) e o segredo só se tornou conhecido, na Índia, em cerca de 300. Pela sua beleza e qualidades, a seda era usada no vestuário – principalmente da corte – na decoração em bordados e tapeçarias e na arte, servindo de suporte de pintura, poesia e caligrafia.
Fenix
O segredo da produção de seda está no ciclo de vida da lagarta da espécie bombyx mori: o vulgarmente chamado ‘bicho-da-seda’. No processo de evolução, a lagarta depois de se ter alimentado exclusivamente de folhas de amoreira silvestre durante trinta dias, tece um casulo à sua volta expelindo através das glândulas o líquido da seda – a fibroína – envolvido por uma goma – a sericina – que solidificam com o contacto com o ar. Dentro do casulo transforma-se em crisálida, após sair do casulo rompendo-o, transforma-se em borboleta e antes de morrer põe ovos renovando o ciclo. O processo de tecelagem da seda começa com a imersão dos casulos em água quente antes da saída da crisálida, provocando, pela ação do calor, a dissolução da sericina que une os filamentos num só fio que se desprende do casulo. Com os casulos dentro de água, os fios são recolhidos com um pente e depois dobados. Seguem-se as fases de enrolar, tingir com colorantes vegetais, secar e tecer. São necessários cerca de 5 kg de casulos para produzir 1 kg de seda.
A Longevidade e a sua celebração
A longevidade é celebrada na China desde a antiguidade, sendo os anciãos venerados como sinónimo de sabedoria, numa atitude difundida pelo Confucionismo. Em bronzes da dinastia Zhou (1027-256 a.C.) leem-se inscrições alusivas à “augusta longevidade, os textos do filósofo confucionista Mêncio (370 a.C.-289 a.C.), referem o respeito para com os que tinham chegado à velhice, bem como os seus privilégios sociais. O caráter para longevidade – shou – é usado, em forma de selo, desde cedo em todo o tipo de decoração.
Selo da Longevidade / Grou / Peonia
O gosto oriental pelos grandes festejos e presentes, gerou uma quantidade de celebrações, tanto na corte imperial como em todas as camadas sociais, principalmente nas dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911). Entre estas está o Pai Shou que celebra a longevidade; de acordo com a tradição chinesa, quando se completa um ciclo de dez anos após se ter atingido a velhice, realiza-se uma festa em que os parentes e amigos oferecem presentes, nomeadamente este tipo de colchas chamadas Shou Shang, pinturas ou outros objetos, decorados com motivos alusivos à longevidade.
Tradicionalmente o aniversário é celebrado só no primeiro ano da década, tal tem a ver com a ideia de que só então se entra na respetiva década. Como se verá, esta colcha é uma Shou Shang, celebrando o 81º aniversário de uma anciã pertencente a uma venerável família, oferecida pelo seu irmão.
Os Bordados Chineses
Aliada à sericultura, nasce a arte de bordar que originou desde logo panos ricamente decorados, utilizados em rituais, festas e no quotidiano. Esta é uma arte feita por mulheres, existindo tanto produção local como a nível industrial, a perfeição atingida é tal, que os bordados chineses são conhecidos como ‘pinturas de agulha’. Os aspetos técnicos e artísticos foram-se desenvolvendo ao longo dos séculos, dando origem a um grande número de pontos de bordado. Nascem na dinastia Qing as grandes escolas de bordado chinesas, para dar vazão aos pedidos da corte imperial, nomeadamente a de Suzhou, na província Jiangsu, à qual pertence a colcha em estudo.
Descrição Formal Trata-se de um pano de armar para pendurar em portas ou paredes ou para usar como colcha, de grandes dimensões, retangular, em seda vermelha, bordada a fios de ouro e de seda policromados. A estrutura da decoração é de leitura vertical desenvolvendo-se a partir de um campo central retangular, envolto em duas barras e ainda rematado no topo superior por uma faixa larga. A colcha é bordada com três tipos de pontos feitos com agulha; o ponto Suzhou (K’o-ssu), utilizado há séculos, em que o fio vai de um lado ao outro do desenho, com uma inclinação de 45 graus, correndo paralelamente. O fio dourado que é feito com uma alma de seda enrolada em papel de ouro, não é bordado, mas define os desenhos ou contornos enrolando-se ao longo do campo e sendo preso ao suporte com um ponto simples, o ponto dos pormenores, chamado de contorno, é também inclinado, mas é desencontrado. Estes pontos resultam em três tipos diferentes de reverso.
Pontos de bordado e reverso
O motivo central do pano é uma figura feminina chinesa, representada em tamanho quase natural (93 cm.), a seu lado, um veado, dois morcegos e inscrições bordadas que se traduzem por: (lado direito) “Grande festejo do 81º Aniversário da Madrinha Tai Shu Ren (1) Wen (2) Congratulações à Gao Feng (3) Shu Ren (4) Yang” (5). Lado esquerdo: “Com as cortesias do irmão jurado (mais novo), Tong Zhi (6) na reserva Chen Wen Cheng (7), dos seus filhos: Zhong Han, Han Zhang, Ying Pei, Wei e dos seus netos: Jin Shou, Jin Chao, Jin Sheng, Jin Lin, Jin Pei”.
A faixa que delimita o campo central, é composta por peonias, a rainha das flores e emblema de riqueza e distinção, alternando com o caráter Shou – longevidade – em forma de selo circular, criando uma barra larga a toda a volta. No topo superior, alinham-se horizontalmente, três figuras masculinas; a Tríade da Longevidade, entre elas, um veado com um cogumelo mágico – lingzhi – na boca e um grou.
Dos lados direito e esquerdo dispõem-se verticalmente quatro figuras de cada lado, representando os Oito Imortais Taoistas, entre enrolamentos de nuvens estilizadas e no topo inferior figuram-se um pagode rodeado por morcegos, dois grous, e grupos de rochas e flores nos cantos. Este campo é delimitado por outra faixa, mais estreita, composta por elementos geométricos alternados com flores. A barra exterior é decorada no topo superior por duas fénixes a voar em direção a um sol, os lados com fénixes em voo alternadas com grandes peónias e a parte inferior é decorada com três cães de Fó, machos, brincando com bolas de brocado. O campo do topo superior tem ao centro um dragão de quatro garras segurando uma inscrição, rodeado por duas fénixes com um rolo pendurado no bico, esta área, por não ter estado tão exposta como o resto da colcha, apresenta um vermelho mais vivo, dando uma ideia da policromia original.
Veado / Xi Wang Mu / Morcego
Descrição Iconográfica
A decoração da colcha obedece às grandes regras da arte chinesa – tudo é simbólico e o papel da natureza é preponderante; por isso se contam inúmeras figurações de elementos da natureza como árvores, flores e nuvens (tão forte é a carga simbólica de uma peónia, como a de uma divindade) e vinte e três elementos, todos eles carregados de carga simbólica, sumariamente apresentada. A coroar a composição está o simbolismo hierárquico. A decoração desta colcha evoca os ensinamentos da tradição filosófica e religiosa do Taoismo e relaciona-se com outras duas temáticas base da simbólica chinesa; a Longevidade e a Imortalidade. O pano é vermelho, aludindo à crença que esta cor espanta os maus espíritos.
Os personagens principais pertencem ao panteão taoista; segundo esta filosofia, os imortais são figuras que se libertaram de um mundo terreno cheio de limitações e sofrimento para atingir um mundo celestial onde reinam vivendo pacificamente nas montanhas.
A figura central prefigura a Deusa Mãe taoista do oeste; a imortal He Xiangu / Xi Wang Mu*. A deidade que começou por ser uma rebelde, reside no paraíso, onde cultiva pessegueiros mágicos que só dão frutos a cada nove mil anos, esses pêssegos dão a imortalidade a quem os come, pelo que a deusa simboliza a longevidade sendo também a patrona das mulheres (alusão à presenteada). Os seus atributos são o penteado apartado em dois, decorado com um ramo de artemísia, os pêssegos que segura e a companhia de um veado, símbolo também ele de uma longa vida, por se tratar do único animal que consegue descobrir os cogumelos mágicos – lingzhi – que conferem a longevidade a quem os come, e cujo caráter é foneticamente similar ao da longevidade – shou. Os dois morcegos que acompanham a deusa, são também símbolos de longevidade e da felicidade conjugal, aludindo à vida da presenteada (o seu caráter é foneticamente semelhante ao da felicidade – fu).
Fu Xing / Shou Xing / Lu Xing
A Tríade San Xing (três estrelas); Fu Xing, Shou Xing e Lu Xing (da esquerda para a direita) representa a felicidade/sorte, a riqueza/prosperidade e a longevidade, sendo, portanto, uma iconografia adequada à colcha. Estes três personagens imortais, criados na dinastia Ming (1368-1644), são independentes das religiões sendo venerados como imortais ou deuses do lar desde o Palácio Imperial ao mais humilde dos lares:
Do alargado panteão de imortais taoistas, os mais populares e como tal, largamente utilizados em representações artísticas, são conhecidos como os Oito Imortais Taoistas – Pa Hsien. Na iconografia chinesa surgem frequentemente associados à Deusa Mãe e à Tríade, sendo igualmente relacionados com as mesmas temáticas. As suas mágicas vidas no caminho para a imortalidade são contadas no famoso livro Lieh Hsien Chuan da autoria de Liu Hsiang (1 a.C.). Entre relatos que juntam o real e a magia, os oito imortais são caracterizados pelos seus atributos – Pao Pei. (à direita, de cima para baixo):
Os Oito Imortais Taoístas (4) – Han Chung Ti / Ts’ao Kuo Ch’iu / Hsiang Tsü / Lan Ts’ai Ho
(à esquerda, de cima para baixo)
Os Oito Imortais Taoístas (4) – Lü Tung Pin / Han Chang Kuo Lao / Li T’eh Kuai / Ho Hsien Ku
A existência de várias fénixes alude à condição feminina da presenteada – pois são o símbolo da imperatriz – e à alegria, justiça e paz que estão relacionadas com a presença desta criatura sobrenatural que só aparece em tempos de paz e de um reinado justo. As duas fénixes com um rolo no bico, deverão simbolizar o gosto pela pintura, poesia e caligrafia, logo a erudição da presenteada. O dragão do topo da composição remete para a posição social da família; o facto de ter quatro garras indica que são nobres (5 garras é de uso exclusivo do imperador e três dos não nobres). Pelas inscrições podemos verificar que se trata de uma família de mandarins (oficiais da corte), de grau III (numa escala de nove), uma honra muito elevada.
A tradição continua…
A China tem a mais longa tradição cultural do mundo sendo o campo das artes, por excelência, guardião das mais antigas tradições como a permanência das formas e a rigidez de valores estéticos advindos do sistema de aprendizagem artística que se fundamentava na cópia dos mestres antigos.
Apesar da colcha ter sido feita já no século XIX, ela encerra em si elementos que se mantiveram inalterados através de séculos como o simbolismo ideológico, a celebração da longevidade, o ritual das ofertas, a veneração dos antepassados e o perfeccionismo, proporcionando uma leitura das características tradicionais chinesas – mais do que as fórmulas, são os valores que se mantiveram eternos.
Proveniência:
Adquirida em leilão da Soares e Mendonça, R. Luz Soriano, 53, 1º, Lisboa, de 18 de novembro de 1967, lote 481, por 5.000$00.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
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WILLIAMS, C.A.S., Chinese Symbolism and Art Motifs; Singapore, Tuttle Publishing, 2006
Escola Suzhou
Dinastia Qing, reinado Daoguang (1821-1850) ou reinado Xianfeng (1851-1861)
China, província Jiangsu
Seda, fio de seda e fio de seda laminado a folha de ouro
Alt. 324cm x Larg. 187cm