Cómoda-secretária com alçado de fabrico inglês, de generosas proporções, com frente e lados (ilhargas) ondulantes – em “serpentina” – e cantos chanfrados, decorada com embutidos em latão e elementos escultóricos, formando uma rara e valiosa tipologia.
O corpo inferior forma uma cómoda de barriga composta por quatro gavetões que na realidade são três pois o superior é falso, formando o tampo de uma secretária que se revela ao deslizar as duas pernas dianteiras, disfarçadas na estrutura. Ao contrário do habitual, os gavetões que são curvados seguindo as linhas do móvel, são revestidos com folheado de mogno, uma característica dispendiosa. O tampo da secretária, forrado a cabedal, desliza descobrindo uma gaveta com diversos compartimentos secretos. O alçado superior, um armário, é fechado por duas inusuais portas da largura de metade do corpo do móvel, que têm, pelo lado de dentro, uma estrutura tipo contador, com um escaninho central rodeado de doze pequenas gavetas, encimada ainda por prateleiras. O fundo central é dividido por prateleiras amovíveis. O móvel é encimado por desenvolvida cimalha dentilhada que acompanha o recorte do móvel, sendo decorada com o mesmo tipo de incisos em latão. As ferragens, puxadores e espelhos, são em bronze dourado trabalhado com enrolamentos vegetalistas.
Todas as superfícies do móvel são delimitadas por incisos em latão que formam filetes – em vez da tradicional madeira contrastante – que decoram o móvel com elegante simplicidade. Nas portas do alçado, os filetes complexificam-se formando faixas que compõem elementos geométricos e, aos cantos, desenvolvidos florões estilizados.
As esquinas frontais do móvel, chanfradas, são decoradas com elementos escultóricos adossados, em madeira de padouk, mais escura, ostentando no topo dois bustos femininos de cariz orientalizante – de um lado com um barrete frígio e do outro com um crescente lunar na cabeça – e frisos de flores que percorrem a prumada até aos pés.
O esqueleto do móvel é inteiramente folheado a mogno polido, o que confere um tom avermelhado e brilhante ao conjunto, contrastando com os elementos escultóricos em madeira de padouk africano, um pouco mais escura e o dourado dos incisos em latão.
As proporções do móvel fora de comum, a forma de serpentina, a qualidade do material e a exímia técnica decorativa são indicadores de um design e construção muito cuidados, bem como de um nível técnico de excelência conferindo a esta peça um lugar de destaque na produção deste original marceneiro.
John Channon
Entre finais do século XVII e a primeira metade do século XVIII, nos reinados de Jorge I e Jorge II, a alta aristocracia inglesa constrói grandes mansões, tanto em Londres como no campo que decora com grandiosidade. Vinda principalmente da Jamaica (e posteriormente de Cuba), uma nova madeira fazia sensação; o mogno. Para trás fica a madeira de nogueira. À imagem do pau-santo utilizado pelos Portugueses, de cerne muito denso, o mogno é muito difícil de trabalhar mas permite a criação de móveis de tipologias complexas. Devido ao seu elevado custo, pouco mogno chega a Inglaterra antes de meados do século pelo que os marceneiros que o utilizavam forneciam móveis de alta qualidade.
O estilo Rococó francês, um aligeiramento do pesado barroco de Luís XV, conquistou a Inglaterra a partir do primeiro quartel do século XVIII, conferindo ao mobiliário uma exuberância de tipologias e decoração, pouco comum nas ilhas britânicas. Os antiquários da época foram ao mercado continental e encheram o mercado com mobiliário francês e alemão que viria a influenciar o gosto da época e subsequentemente a produção de mobiliário coeva. Desde cedo são publicados em Londres livros de ornamentos como “Sixty Different Sorts of Ornament” (Gaetano Brunetti – 1732), “Masks and Other Ornaments” (B. Toro – 1745) e “A New Book of Ornaments” (P. Babel – 1752) nos quais os artistas se inspiravam. É nesta sequência que, em 1754, o marceneiro Thomas Chippendale publica o famoso “The Gentleman and Cabinet Maker’s Director”, um álbum de desenhos de mobiliário, ilustrado, que vem lançar as bases de desenho para os marceneiros ingleses.
Entre os marceneiros do século XVIII, destacam-se grandes nomes como Giles Grendey (1693-1780), Thomas Chippendale (1718-1779) e Thomas Sheraton (1751-1806), existe porém um grupo, até há uns anos despercebido, que tem vido a ser identificado e estudado, que inclui nomes como William Gomm (activo c. 1725-1760), Frederick Hintz (activo c.1730) que se especializou em móveis pequenos com embutidos de latão e madrepérola, e John Channon.
Pensa-se que John Channon (c.1711-1783) tenha ascendência huguenote tendo nascido de uma família de marceneiros proveniente do condado de Essex em Inglaterra. Pouco se sabe da sua formação; em 1726 era aprendiz de seu irmão Otho (1689-1756), um fabricante de cadeiras e em 1737 muda-se para Londres estabelecendo a sua oficina em St. Martin’s Lane, perto da Catedral de São Paulo, onde reúne diversos patronos do meio aristocrático. Esta zona tornou-se o centro de marcenaria – Thomas Chippendale também aí se instalou – e incubadora das novas ideias baseadas no gosto continental. Em 1742 dois anúncios de jornal anunciam o seu “Cabinet Wharehouse” que fornecia mobiliário, molduras e também estampas as quais serviam de inspiração tanto para a tipologia como para a decoração do mobiliário.
O trabalho de Channon é caraterizado por móveis de grandes dimensões, ao gosto rococó, assimétricos, com movimento de curvas e contracurvas e profusa decoração com concheados e aplicações de bronzes dourados trabalhados e embutidos em latão – a sua assinatura. A técnica de embutir latão no folheado de madeira esteve na moda em Londres, entre 1735 e 1760, sendo Channon o seu mais dotado representante. Pensa-se que, para além do mobiliário continental, a prática de embutir latão seja inspirada na aplicação de filetes de latão nas caixas de relógios de mesa. Tal como foi dito, esta gramática é inspirada mais no mobiliário continental do que no Britânico, quanto a este último aspeto, Channon pode ter sido influenciado pela estadia em Londres, a partir de 1731, de Abraham Roentegen (1711-1793) que se notabilizou pelo seu inventivo mobiliário, carregado de complicações mecânicas e decorado com bronzes dourados e embutidos em latão.
Nota: A John Hayward, conservador chefe de Mobiliário do Museu Victoria & Albert, se deve a identificação do trabalho de John Channon, com a publicação de um artigo no Boletim do Museu de 1965-66 sobre duas peças do acervo do museu.
Outros móveis de John Channon:
Cómoda secretária “Beckford” (uma de um par), atribuída a John Channon, Londres, c.1750-55 – Museu Victoria & Albert, Londres – https://collections.vam.ac.uk/item/O60668/writing-table-unknown/
Estante, John Channon, Londres, 1740 – Museu Victoria & Albert, Londres – http://collections.vam.ac.uk/item/O73830/bookcase-channon-john/
Secretária com alçado “Murray”, atribuída a John Channon, Londres, c.1735-40 – Temple Newsam House, Leeds (Leeds Museums and Galleries) – http://www.leedsartfund.org/collection/temple-newsam-house/writing-cabinet.html
The Rt. Hon. The Viscount Leverhulme, Sir William Hesketh Lever (1851-1925) e a Lever Brothers
William Lever foi um industrial, filantropo, político e colecionador inglês que nasceu em 1851 em Bolton (Lancashire, Inglaterra) e morreu em 1925 na sua casa em Hampstead. Devido ao seu notável percurso, em 1911 o rei Jorge V agraciou-o com o título de Barão Lever (de Thornton Manor), em 1917 recebeu o título de Barão Leverhulme (de Bolton-le-Moors in the County Palatine of Lancaster) e em 1922 foi elevado a 1º Visconde Leverhulme (de The Western Isles in the Counties of Inverness and Ross and Cromarty).
Depois de trabalhar na mercearia de seu pai, William e o irmão James (que mais tarde se retirou por doença), direcionaram o negócio para a produção de um só produto, uma invenção feita em parceria com o químico William Hough Watson; uma barra de sabão a que chamou “Sunlight”. O sabão era feito com glicerina e óleos vegetais (como óleo de palma), em vez do tradicional sebo (sabão azul e branco) garantindo mais suavidade e poder de lavagem e era produzido em barras embaladas, em vez de ser vendido ao peso. Em 1885 os irmãos compram uma pequena manufatura de sabão, em Warrington (Cheshire) nascendo a Lever Brothers, aí nasceram marcas ainda hoje famosas como Lux, Vim, Omo, Palmolive, Tide, etc.. Mais tarde a fábrica cresce, mudando-se para a área da península Wirral, perto do rio Mersey e de Liverpool.
Em 1888 Lever, que já demonstrava grandes preocupações sociais pois pagava e dava condições acima da média, construiu, perto das novas instalações, uma vila modelo com habitação, escola, hospital, igreja, jardins, piscina, uma sala de concertos e um museu – do qual adiante se falará – para os trabalhadores da sua fábrica, à qual chamou Port Sunlight (nome inspirado na sua primeira marca). Os trabalhos continuaram até 1914.
Aproveitando o rápido crescimento do consumo em geral, a companhia expandiu-se para o resto da Europa, Estados Unidos da América, África e Austrália contando, em 1925, com um total de 85.000 trabalhadores. O seu enorme sentido de negócio, aliado a uma fortíssima vertente comercial e de marketing, garantiram o sucesso do negócio que chegou aos nossos dias. Em 1930 a empresa transformou-se na multinacional Unilever, pela fusão com a empresa holandesa Margarine Unie.
Lever foi ainda um dos pioneiros do marketing promocional, tendo percebido a importância das campanhas de divulgação, conta-se que, à imagem do seu concorrente direto Pears Soap (fundado em 1807 em Londres), adquiriu obras de arte nas quais se inspirou para fazer anúncios dos seus produtos. Foi o caso da pintura “The New Frock” (o novo vestido), de William Powell Frith (1889) que serviu para anunciar o sabão Sunlight. (http://www.historyworld.co.uk/advert.php?id=107&offset=1575&sort=0&l1=&l2=)
Em 1887 Lever lançou a revista promocional “Sunlight” tendo contratado ilustradores para criarem os anúncios das diferentes marcas. Para além disso divulgava os seus produtos em diversos outros meios como o London Illustrated News. Veja alguns anúncios aqui: https://www.pinterest.pt/search/pins/?q=sunlight%20adverts&rs=typed&term_meta[]=sunlight%7Ctyped&term_meta[]=adverts%7Ctyped
Acompanhando o sucesso dos seus negócios, Lever torna-se um dos maiores colecionadores ingleses, tendo adquirido principalmente arte inglesa (as coleções de pintura Pré-Rafaelita, mobiliário do século XVIII e de porcelana Wedgwood são famosas) mas também porcelana da China, artefactos arqueológicos e objetos etnográficos, provenientes das suas múltiplas viagens. Numa altura em que na América do norte os grandes industriais legavam à nação museus públicos com as suas coleções (o magnata do aço Henry Clay Frick funda, em 1913, a Frick Collection em Nova Iorque), Sir William é o primeiro britânico a fundar, em 1922, uma instituição com as mesmas caraterísticas, inclusive arquitetónicas pois recorreu a um edifício de cariz neoclássico à imagem das instituições norte americanas coevas.
A Lady Lever Art Gallery é um museu dedicado à mulher de Sir William (Lady Elizabeth Ellen Hulme 1850-1913), o qual foi dotado com parte* da sua grande coleção de arte, que tinha reunida na sua mansão Thornton Manor (Wirral, Merseyside). Os seus propósitos filantrópicos ficaram expressos na inauguração quando disse: “Art can be to everyone an inspiration. It is within the reach of all of us…” (A arte é uma inspiração para todos. Está ao alcance de todos), “Art and the beautiful civilize and elevate because they enlighten and ennoble.” (A Arte e o belo civilizam e elevam porque esclarecem e enobrecem.) Atualmente a instituição encontra-se sobre a tutela dos Museus de Liverpool (National Museums Liverpool).
Site da instituição: http://www.liverpoolmuseums.org.uk/ladylever/
*Nota – A restante coleção de Lord Leverhulme, herdada pelo seu único filho William, foi vendido em 2001 na leiloeira Sotheby’s de Londres.
Proveniência:
O móvel em estudo foi adquirido por Lord William Hesketh Lever, 1º Visconde de Leverhulme em data desconhecida. Em 1926 foi vendido no leilão pós-morte do Visconde Leverhulme, realizado na Anderson Galleries em Nova Iorque (parte I, lote 21), a comprador desconhecido.
Em Julho / Agosto de 1946, o móvel é anunciado na revista “The Antique Collector”, pelo antiquário londrino M. Harris & Sons (44-52, New Oxford Street), que o expõe na 7ª Feira de Antiguidades de Grosvenor House, Park Lane, Londres, realizada em Junho de 1947. É neste certame que o móvel é adquirido para Medeiros e Almeida, a 21 de Junho de 1947, por £ 900. Medeiros e Almeida assinalou na revista, junto ao anúncio: “no meu quarto de vestir”.
A secretária foi transportada para Lisboa no vapor “Colón” que zarpou de Londres a 9 de Outubro de 1947, tendo atuado como transitário a firma Bolton & Fairhead, Ltd., 106, Regent Street, Londres W1.
Em Junho de 1987 a National Museums and Galleries on Merseyside, de Liverpool (hoje National Museums Liverpool); organismo que tutela a Lady Lever Art Gallery escreveu à Fundação Medeiros e Almeida, tentando recuperar este móvel, já que tinha integrado o espólio do Lord Leverhulme. De acordo com a missiva, o móvel teria sido vendido, após a morte do colecionador, devido a “circunstâncias inesperadas”. A FMA respondeu que não podia, por estatuto, alienar peças da coleção ao que o diretor da instituição respondeu ficarem devastados mas contentes de a marcenaria inglesa estar tão bem representada em Portugal (“… At the same time, I am delighted that English cabinet-making is so well represented in Portugal.”).
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
THE ART COLLECTIONS OF THE LATE VISCOUNT LEVERHULME [PART ONE] to be sold by order of the executors, The Anderson Galleries, 489 Park Avenue at 59th, New York, 1926
“The Antique Collector”, Julho-Agosto 1946
“The Connoisseur”, número especial 7ª, 8ª e 9ª Antique Dealer’s Fair, 1947
BAKER, Malcolm, RICHARDSON, Brenda, eds.; A Grand Design: The Art of the Victoria and Albert Museum, London: V&A Publications, 1997
BOYNTON, Lindsay; William and Richard Gomm, in: The Burlington Magazine, vol. 122, nº 927, Junho 1980
COLERIDGE, Anthony; Chippendale Furniture, The work of Th. Chippendale and his Contemporaries in the Rococo Style, London: Clarkson N. Potter, Inc., 1968
EDWARDS, Ralph; The Dictionary of English Furniture, rev. ed., 1954
GILBERT Christopher, MURDOCH, Tessa; John Channon and Brass-Inlaid Furniture 1730-1760, New Haven: Yale University Press in association with Leeds City Art Galleries and the Victoria and Albert Museum, 1993
GILBERT Christopher, MURDOCH, Tessa; Channon Revisited, in: Furniture History, vol. 30, 1994
HAYWARD, John; English Brass-Inlaid Furniture, in: Victoria & Albert Museum Bulletin, vol. I, no. 1, January 1965
HAYWARD, John; The Channon Family of Exeter and London, Chair and Cabinetmakers, in: Victoria & Albert Museum Bulletin, vol. II, no. 2, April 1966
??, Abraham Roentgen, Englische Kabinettmacher and some further reflections on the work of John Channon, in: Victoria & Albert Museum Bulletin, vol. II, no. 4, October 1966
STÜRMER, Michael, Die Roentgen-Manufaktur in Neuwied, in: Kunst und Antiquitäten, vol. 79, October/November 1979
SYMONDS, R.W.; Furniture of the Nobility (1700-50), in: Country Life, Mai 7, 1948
John Channon (c.1711 – c.1783)
1740
Londres, Inglaterra
Madeira (carvalho ou pinho) folheada a mogno, padouk, latão e bronze dourado
Alt. 202,4cm. x Comp. 126cm. x Larg. 73cm.