História do vidro em Inglaterra e na Irlanda
“O vidro […] um líquido solidificado” cuja data e local de descoberta não são consensuais – Mesopotâmia, Síria, Egipto – é um material constituído por sílica misturada com potássio ou sódio e óxido de cálcio fundidos a alta temperatura, formando uma pasta moldável que ao arrefecer solidifica, permanecendo com a forma desejada.
Dependendo das matérias-primas usadas na sua composição, adquire características diferentes: o vidro sódico produzido em Itália (cristallo) e o produzido a norte dos Alpes, potássico, de cor esverdeada devido às impurezas presentes na sua constituição.
São escassas as referências à existência de vidro ou de fabricantes do mesmo, em Inglaterra e na Irlanda durante a Idade Média embora, haja menção a artesãos que trabalhavam nesta área, talvez referindo-se a esmaltadores e a vidraceiros que executavam vitrais para as igrejas góticas que então se erguiam.
Só no século XVI temos notícia do fabrico de vidro em Inglaterra, com a presença de vários operários de Murano (Veneza) que tinham emigrado para a Flandres e daí para as Ilhas Britânicas. A primeira referência na Irlanda surge em 1567, quando um operário dos Países Baixos pede autorização para construir fornos em Inglaterra e Irlanda. Inicialmente os fornos eram abastecidos a lenha mas, o excessivo abate de árvores levou à proibição do mesmo e à sua substituição por carvão, o que colocava questões técnicas na qualidade da produção uma vez que, os fumos adulteravam a cor da pasta vítrea.
O grande impulso no desenvolvimento da manufactura vidreira inglesa, dá-se em meados do séc. XVII, com a produção de garrafas de um vidro verde escuro e grosso, resistente ao transporte, fazendo com que Inglaterra se tenha tornado no principal produtor e exportador de garrafas da Europa.
Por essa altura, um comerciante inglês, (George Ravenscroft 1632-1683) que trabalhara em Veneza, funda um forno de vidro (no antigo Savoy Palace) associado a um vidreiro italiano do Piemonte, John Baptiste da Costa, onde os dois conduzem experiências com vista ao aperfeiçoamento da qualidade do vidro que já incluía chumbo na sua composição. Desta parceria surge o cristal (patenteado em 1674) um tipo de vidro mais claro, pesado, resistente, com maior ductilidade, podendo ser trabalhado durante mais tempo e com uma invulgar capacidade de refracção da luz. Estas características permitiram o desenvolvimento de técnicas decorativas como o vidro lapidado ou cut glass, que se irá tornar na particularidade dominante do vidro inglês.
“A partir de meados do século XVIII podemos falar num estilo inglês de lapidação no qual, as superfícies eram cobertas por um motivo regular facetado…” que dava às peças um brilho particular. O desenvolvimento deste tipo de ornamentação em Inglaterra levou ao aparecimento de peças sofisticadas, adornadas com diferentes motivos geométricos e que aumentavam a refracção da luz de uma forma surpreendente.
Uma vasta gama de tipologias de objectos começa então a ser produzida: copos, centros de mesa e castiçais… tornando a actividade vidreira florescente. No entanto, em 1746 a indústria vidreira inglesa sofreu um rude golpe, com a entrada em vigor da lei aprovada um ano antes pelo parlamento e que criava um imposto The Glass Excise Act sobre o vidro, passando este a ser taxado com base no seu peso. Numa tentativa proteccionista da produção inglesa, a lei proibia ainda a exportação de vidro irlandês para Inglaterra, permitindo apenas a importação de vidro inglês para a Irlanda. Em 1780 esta lei foi revogada na Irlanda, passando a consentir a exportação do vidro irlandês. Tal alteração conduziu a um desenvolvimento da produção neste país mas, feita por muitos ingleses que, aproveitando esta oportunidade se mudam para a Irlanda, onde irão abrir diversas manufacturas que passam a exportar para a Europa, para o mercado americano e para os territórios no Oriente.
Waterford (est. 1783) e Cork estão entre as manufacturas irlandesas mais famosas desta época, tendo o seu período áureo durado até meados do séc. XIX, mas, estas não são as únicas, menção deve também ser feita a Dublin, Belfast, Drumrea, Newry e Portarlington.
O facto de uma grande parte do vidro irlandês ter sido produzido por ingleses, que trouxeram com eles não só a técnica, como os materiais e as formas, torna quase impossível a destrinça entre os dois, tal como entre os irlandeses.
Waterford produziu todo o tipo de vidro em diversas cores e com grande variedade de motivos decorativos lapidados apresentando grande qualidade técnica e estética. Cerca de 1815, faz prismatic cut também designado (incorrectamente) por step cut (cortes profundos) de muito boa qualidade, ao ponto de as peças “parecerem de prata quando, bem iluminadas.”
Uma grande variedade de objectos decorativos e utilitários é então produzida, correspondente a uma nova sociabilidade na qual, para além da individualização de funções, assistimos ainda, ao nascer da ideia de conjunto decorativo, como por exemplo: centro de mesa e castiçais; de serviço de jantar, de chá, de café, de chocolate, etc. Para além da multiplicidade de peças assistimos também, à proliferação de motivos decorativos, consequência do aprimorar da técnica assim como, à complexificação das peças, o que obrigava por vezes, a que as mesmas fossem acompanhadas por um operário para as montar in situ.
A introdução de maquinaria ao longo do século XIX, levou à progressiva substituição das pequenas oficinas pelas grandes manufacturas, onde o trabalho da máquina supria o trabalho manual de lapidação feito com roda de corte giratória, que de finais do século XVIII até cerca de 1830, granjeou fama aos artesãos ingleses e irlandeses.
Cut glass
O termo inglês cut glass (onde se insere o prismatic cut) refere-se genericamente ao vidro lapidado, que se desenvolve a partir da 2ª metade do século XVII em Inglaterra, consequência da descoberta do cristal de chumbo, atribuída a George Ravenscroft (1632-1683) em 1674, ao substituir a sílica por óxido de chumbo. Esta nova composição química, deu ao vidro características de resistência, maleabilidade e brilho até então desconhecidas, que permitiram o aperfeiçoamento e desenvolvimento da técnica de lapidação, praticada já no século XVII, mas conhecida desde a época romana (séc. I a.C.).
A lapidação irá ser a principal marca do vidro irlandês e inglês ao longo do século XVIII até ao período Regência. Introduzida por artesãos alemães e boémios, a lapidação irá assumir características próprias que irão definir a produção inglesa, decorada essencialmente por organizados motivos geométricos facetados.
Em geral, os lapidadores faziam o trabalho em oficinas caseiras e depois entregavam as peças às fábricas para as quais trabalhavam. Esta especificidade permitia a execução de um trabalho individualizado e de cariz artístico.
Inicialmente, o vidro era cortado à mão através de uma roda de torno em metal e outra em pedra, accionadas pelos pés do trabalhador, com o tempo, passaram a ser movidas a vapor. Cada tipo de roda tinha a sua função: a metálica de bordo chanfrado e sobre a qual é deitada uma mistura de areia com água (a partir de um vaso suspenso) faz os cortes da decoração, (pré definida num desenho) esgrafitada no vidro com um instrumento afiado. Em seguida, o vidreiro usa o disco de pedra (com uma acção abrasiva mais suave) para polir os cortes passando por fim, a peça por uma terceira fase na qual, é brunida por um disco de madeira e as arestas dos cortes suavizadas. Finalmente, é escovada com pós de polimento até se obter um acabamento suave e brilhante.
O perfil da aresta da lâmina determinava o tipo de corte executado: liso, com ranhuras ou com relevo.
Genericamente podemos considerar 3 períodos distintos no fabrico do vidro lapidado:
1º – Lapidação submete-se à forma da peça
2º – Lapidação e forma equilibram-se mutuamente
3º – Lapidação sobrepõe-se à forma
Esta evolução no processo de fabrico que inicialmente se inspirava na lapidação do cristal de rocha, levou a que o vidro progressivamente se tivesse tornado mais espesso permitindo que os cortes fossem cada vez mais profundos (aumentando a refracção da luz) e as decorações mais complexas até que, a forma da peça foi ultrapassada pela profusão decorativa lapidada.
A decoração variava, havendo uma multiplicidade de motivos que resultavam da lâmina empregue e do cruzamento dos cortes efectuados, podendo ir dos mais simples até à decoração mais complexa. Esta podia formar apenas prismas verticais e horizontais feitos em esquadria prismatic cutting, (alternados ou não), chamas, filetes, em leque (ou concha de vieira). O seu cruzamento levou ao aparecimento de motivos triangulares, cruzamento de cortes elípticos, motivos como diamante, diamante morango, em mesa, estrelado, axadrezado, estrelas pontiagudas (?), estrelas de Brunswick (?).
Estilo Regência
No Reino Unido, designa-se por estilo Regência o período compreendido entre 1811 e 1820 durante o qual, o príncipe de Gales (George 1762-1830) substituiu o seu pai George III (1738-1820) no trono. Do ponto de vista artístico, este período pode ser antecipado (1795) e prolongado (1837), não sendo necessariamente coincidente com o político.
Estilisticamente caracteriza-se por uma forte influência da estética da Grécia e Roma antigas, tanto na simplicidade das linhas e estruturas, como dos ornamentos, incutida de forma directa pelo interesse na arqueologia. O antigo Egipto resultado das campanhas napoleónicas é também, um forte factor de inspiração assim como, os orientalismos em particular os chineses e japoneses.
É neste contexto de simplicidade de linhas que integramos as peças prismatic cut da colecção da Casa–Museu, que possui no seu acervo, um importante núcleo desta tipologia de lapidação.
Núcleo da Casa–Museu
Possui a Casa-Museu Medeiros e Almeida no seu acervo um núcleo de 187 peças de prismatic cut. A forma como foi constituída esta colecção permite-nos identificar diversos conjuntos, (provavelmente) de origem variada. Se, nalguns casos é possível determinar um serviço, noutros tal não acontece. Dentro das numerosas tipologias e peças, encontramos variantes tanto na qualidade do vidro, como no tipo de lapidação (apesar de todas apresentarem prismatic cutting). Existem peças só de prismatic cutting horizontal mas, também as que associam prismas verticais e ainda as com talhe em diamante, para além das de prismas alternados. A particularidade desta colecção centra-se no entanto, no facto de ser constituída na sua quase totalidade por peças integralmente talhadas em prismatic cut designadas informalmente por “all step cut”, sendo esta característica assaz rara. Efectivamente, é difícil encontrar apenas esta tipologia de decoração, sendo mais frequente a sua conjugação com outros motivos nomeadamente os talhes em diamante.
A utilização deste tipo de incisão, obriga a que os objectos sejam mais grossos e pesados comparativamente com outros, permitindo assim, a execução de sulcos mais profundos, o que também pressupõe o uso de maquinaria (rodas) movida a vapor com maior capacidade para a execução de talhes mais fundos. Há ainda peças que adquirem um brilho especial dado o tipo de lapidação que têm, apresentando um aspecto ou um reflexo prateado.
A existência de um motivo estrelado no fundo das peças denota a sua execução tardia, cerca de 1820, dissimulando ao mesmo tempo, o remate do corte da massa vítrea.
De grande heterogeneidade tipológica, a colecção centra-se quase toda em objectos de mesa como vasos para aipo, saleiros (que seguem muitas vezes o modelo das saladeiras), manteigueiras, cremeiras, taças para doces, garrafas, jarros, pratos de bolo, etc. Alguns destes estão claramente associados a hábitos ingleses, como os vasos altos para colocar hastes de aipo (servidas entre pratos para limpar o palato) os recipientes para pickles ou ainda o “piggin” com asa em forma de leque. Há ainda uma grande variedade de garrafas destinadas a diferentes bebidas entre as quais as de forma cónica com base plana e gargalo estreito designadas, em inglês por ship decanters, que se destinavam a ser usadas a bordo de navios, aparecendo esta (rara) tipologia decorada apenas em prismatic cut.
Proveniência
O conjunto de vidros foi adquirido ao antiquário especializado W. G. T. Burne, 27, Davies Street, Berkeley Square, W.1, Londres, entre 1945 e 1957. Ao longo de cerca mais de uma década, Burne trocou correspondência com Medeiros e Almeida fornecendo informação detalhada, desenhando pormenorizadamente algumas peças, realçando a sua importância e singularidade.
Em fevereiro-março de 1958 as peças estiveram patentes na “Exposição de Arte decorativa Inglesa” que decorreu na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, figurando como: “Guarnição completa de cristais para mesa – step cut and diamond cut (lapidação diamante)” Col. António de Medeiros e Almeida”.
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
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Webgrafia
https://www.britannica.com/art/Regency-style
http://www.glassmaking-in-london.co.uk/industries
http://www.waterfordvisitorcentre.com/content/history-waterford-crystal
Fábrica de Waterford
1820 - 1830
Waterford, Irlanda
Vidro lapidado.
Conjunto de 187 peças de serviço de mesa.