Destaque Novembro de 2011
Conjunto escultórico “Cabra-Cega”
Na Sala Luís XIV, destaca-se a ornar a lareira, um elegante conjunto de porcelana composto por curiosas personagens que chama a atenção pela delicadeza do material e pelo colorido dos trajes.
Trata-se de uma representação do popular jogo da “cabra-cega”.
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O conjunto:
Em porcelana branca brilhante, este conjunto escultórico, composto por quatro estatuetas moldadas em separado, representando um homem e três mulheres a jogar à “cabra-cega”, foi produzido em Nápoles, no último quartel do século XVIII.
Elegantemente vestidos, os personagens evocam um ambiente palaciano do século XVIII, onde este jogo era um dos entretenimentos de salão e de exterior, envolvendo por vezes jogos de sedução. O personagem masculino enverga que casaca e calção está vendado e, com as mãos no ar, procura apanhar as companheiras. As três jovens, trajando elegantes vestidos e exibindo elaborados penteados, fazem requebros fugindo graciosamente ao toque do vendado.
O pormenor com que as figuras são representadas, as diferentes e dinâmicas posições, a atenção ao detalhe tanto na fisionomia (todas diferentes) como na indumentária, a graciosidade dos gestos, são indicadores da qualidade e cuidado posto neste conjunto que ilustra a qualidade da produção caraterística de Nápoles e a sua popularidade.
É de realçar a finura dos dedos, os penteados armados, a venda de pontas soltas bem como os pormenores decorativos do colete, laço, casaco e sapatos da figura masculina, ou do movimento ondulante dos vestidos das figuras femininas, cheios de detalhes como laços, folhos, tufados, fitas e cintos, laboriosamente pintados e avivados a ouro.
Não é comum encontrarem-se estatuetas individuais compondo um mesmo grupo sendo mais frequente a representação de vários personagens unidos pela mesma base. Neste conjunto as figuras femininas assentam sobre os delicados pés sendo a figura masculina a única que assenta sobre base simulando solo com ervas. Ao invés das raparigas, cujos amplos vestidos ajudam ao equilíbrio e escondem o seu suporte, o janota encosta-se a uma semi-coluna marmoreada.
A atestar a sua origem, as peças estão marcadas na base com um N coroado (coroa de cinco pontas), pintado a azul-cobalto sobre o vidrado, marca da manufatura de Nápoles, correspondente à época do reinado de Fernando IV; utilizada entre 1771 e 1806 e o número de série 611 (figura masculina).
A Real Fábrica de Capodimonte:
A “Real Fabbrica della Porcellana di Napoli” ou “Real Fabbrica di Capodimonti” (Capo di Monte), foi fundada em 1743, no pavilhão de caça do Palácio Real de Capodimonte em Nápoles (Campânia), por Carlos VII de Bourbon (1716-1788), rei de Nápoles e da Sicília, filho de Filipe V de Espanha e de Elizabete Farnese.
Reza a história que a sua mulher, a Rainha Maria Amália da Saxónia (1724-1760), neta de Augusto II “O Forte”, Eleitor da Saxónia e Rei da Polónia (1670-1733), fundador em 1710 da primeira fábrica de porcelana dura da Europa, a famosa manufatura de Meissen, levou no seu dote diversos serviços de porcelana, despertando no marido o interesse em fundar uma fábrica de porcelana em Nápoles. Carlos VII tinha o secreto desejo de deixar a sua marca, criando uma produção caraterística o que veio a acontecer pelas caraterísticas do caolino encontrado no sul de Itália de um branco leitoso caraterístico, pela vivacidade da paleta de esmaltes vermelhos, laranjas, amarelos, azuis e verdes, e pelo acabamento de vidrado brilhante resultado de uma segunda queima.
Em 1700 o escultor G.Gricci , o chimico Livio Vittorio Scherps, e o decorador Giovanni Caselli aperfeiçoaram a composição da pasta, melhoranso a qualidade. Caselli foi o responsável pelo famoso apartamento régio de Amália da Saxónia, divisão inteiramente forrada a porcelana (paredes, motivos decorativos, luminárias e teto), epítome máximo da expressão artística e qualidade plástica e pictórica dos artistas de Capodimonte, hoje visitável no Museu de Capodimonte: https://capodimonte.cultura.gov.it/collezione/appartamento-reale/
A fábrica laborou até 1759, produzindo peças decorativas de pasta mole e de pasta dura como caixas de rapé, recipientes vários, serviços de mesa, etc., seguindo a estética de Meissen, por sua vez muito influenciada pelos desenhos das fábricas de faiança europeias ao gosto barroco de meados do século XVIII e pelos modelos de porcelana da China que chegavam, por essa altura aos milhares, à Europa.
A produção napolitana é, porém, mais conhecida pelas suas figurinhas – também elas produzidas em Meissen -, muito bem modeladas, graciosas, cuidadosamente policromadas, representando uma infinidade de personagens históricas, populares e profissões, grupos escultóricos com representações de teor europeu como cenas de mitologia, Commedia del’arte ou cenas pastoris. São ainda de destaque as famosas flores (estas as preferidas do monarca que era alérgico às flores verdadeiras), as jarras, vasos e urnas, as delicadas miniaturas, os animais e as famosas chinoiseries, peças inspiradas na estética da China tão em voga na época.
A marca desta época – rara atualmente – é uma flor de lis pintada em azul ou ouro dentro de um círculo ou aplicada em relevo na base das peças.
Quando em 1759 Carlos VII de Nápoles se torna rei de Espanha – como Carlos III -, trono herdado após a morte prematura de seu irmão Fernando VI (casado com a princesa Bárbara de Portugal, 1711-1758), a sua paixão pela porcelana leva-o a mudar a fábrica para Madrid. De modo a concretizar este projeto, decide levar consigo o escultor principal Giuseppe Gricci (c. 1700–1770), a maior parte dos ceramistas (cerca de 50), os moldes, toneladas de pasta e o segredo da utilização do caolino que são mudados para perto de Madrid. Nasce no parque do Bom Retiro, em 1760 a Real Fábrica do Bom Retiro (Real Fabrica del Buen Retiro), popularmente chamada “La China”.
Nesta manufatura começa-se por produzir porcelana de pasta mole e, a partir de 1803, porcelana de pasta dura. A nível artístico, a produção vai incidir nas já populares peças decorativas (figurinhas, jarras, etc.), bem como peças de servir à mesa, seguindo a estética rococó evoluindo com o tempo, para o gosto neoclássico.
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Por seu lado, a produção napolitana sofreu até 1771 um período de esquecimento, altura em que Fernando IV de Nápoles (Fernando III da Sicília, Fernando I Duas Sicílias a partir de 1816), filho do então Carlos III de Espanha, decidido a recomeçar a produção em Nápoles, arranca com novo projeto na cidade de Portici, perto de Nápoles. Em 1773 a manufatura é transferida novamente para o Palácio Real de Nápoles, onde vem a laborar até 1806. O apogeu da Real Fábrica de Capodimonte fica registado quando, nos últimos vinte anos do século XVIII, Domenico Venuti assumiu a direção artística, fundou uma escola de artes dando lugar à criação de elaboradas peças, altamente decorativas na continuação do estilo “Capodimonte”. É desta época que data a peça da coleção Medeiros e Almeida.
A partir desta data, devido a diversas condicionantes sociais e políticas, como a ocupação napoleónica entre 1806 e 1815 (e consequentes pilhagens), a fábrica acabou por mudar diversas vezes de proprietários, até 1817 (1834 de acordo com outros autores), altura em que foi definitivamente extinta.
A porcelana “Capodimonte” foi retomada em 1920, apresentando uma marca N com uma “coroa” aproximada sendo, porém, uma produção em massa, sem qualidade que, em nada, deve ser confundida com as peças produzidas na época áurea do século XVIII. Acresce ainda o facto de a marca não ter sido devidamente registada, levando à existência de diversas imitações que geram confusões na correta identificação das peças usando a denominação “porcelana de Nápoles” ou “Capodimonte”.
Hoje em dia existe o Museu de Capodimonte onde se mantêm milhares de moldes das peças produzidas na manufatura desde o seu início e o Museu de Cerâmica Duca di Martina, também em Nápoles, que alberga uma grande coleção de peças Capodimonte.
A “cabra-cega”:
A “cabra-cega” é um jogo de grupo em que um dos participantes sorteado, de olhos vendados, depois de girar algumas vezes para ficar desorientado, procura agarrar e adivinhar a identidade dos outros, que fogem à sua volta. Aquele que é agarrado, assume a posição de olhos vendados.
Hoje em dia a “cabra-cega” é um jogo infantil, mas começou por ser um jogo de adultos, conhecido desde a época da Grécia clássica. Há iluminuras medievais que retratam o jogo e testemunhos de várias épocas atestam que o jogo era um passatempo de adultos, de todas as classes, mais tarde também jogado por crianças. O cronista inglês Samuel Pepys descreve (no seu famoso “Diary”) um jogo de cabra-cega em 1664 com a sua mulher e amigos.
British Library – Miniatura Cabra-cega, in: Pierre Sala’s Petit Livre d’Amour: http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/ILLUMIN.ASP?Size=mid&IllID=58376
Na pintura Flamenga e Holandesa do século XVII – altura em que se retratava o quotidiano – são frequentes as representações de jogos da cabra-cega, nesta época já jogado por adultos e crianças. Do período galante do barroco são ainda famosas a pintura de Goya chamada La Gallina Ciega (1789, Museu do Prado) : https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/la-gallina-ciega/0e23d968-5a4a-426f-ab7b-075d1dc1c03b,e uma pintura de Fragonard chamada Le Jeu de Colin-Maillard (1751, Toledo Museum of Art, Ohio): http://emuseum.toledomuseum.org/objects/55186/blindmans-buff?ctx=ef560587-b3ff-4324-bc58-64ec7095f69b&idx=12
O nome do jogo varia de país para país:
Inglês = blind man’s buff game
Francês = jeu du Colin-Maillard (herói militar do século X que, apesar de ter perdido os olhos em batalha, continuou a lutar)
Espanhol = juego de la gallina ciega
Italiano = gioco della mosca cieca
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt