DESTAQUE OUTUBRO 2022

DESTAQUE OUTUBRO 2022

 

Caixa-escritório “Buhl”

 

Em Inglaterra, o gosto pela decoração de marqueteria do marceneiro francês André-Charles Boulle (1642-1732) deu origem, na primeira metade do século XIX, a um revivalismo deste tipo de trabalho, executado pelos chamados “Buhl Manufacturers”.

Peças de mobiliário ou de pequeno porte como a caixa-escritório recentemente depositada na Fundação Medeiros e Almeida, foram produzidas e transacionadas pelos melhores estabelecimentos da época.

Caixa-escritório

Caixa-escritório

 

Caixa escritório em madeira marchetada a tartaruga e latão com as armas de Pio IX (1792-1878). Tampa cilíndrica em cujo interior se escondem diversas divisórias forradas a veludo contendo tinteiro, caixa de aparos, tesouras, caneta de aparo, lapiseira, corta-papéis, sinete, lacre, raspador, em prata dourada decorada com turquesas apresentado as armas papais gravadas e duas tesouras em aço. Apresenta tampo inclinado para escrita (dobrável) forrado a veludo carmesim, contornado a folha de ouro gravada. Pasta em seda moiré com papel mata-borrão e bolsa do mesmo tecido.

 

Caixa-escritório

 

Caixa-escritório ou estojo de escrita?

 

O desenvolvimento do uso de caixas-escritório está relacionado com a evolução socioeconómica operada em Inglaterra no século XVIII, fruto em particular da revolução industrial. O aumento de transacções e deslocações de pessoas e bens levou à necessidade do uso de objectos de escrita de forma prática e portátil.  Isto incluía não só as peças de escrita propriamente ditas (estojo de escrita) como também, o uso de uma caixa para as transportar e de um tampo sobre o qual se pudesse escrever.

Surgem assim, as caixas-escritório que integram todas estas funções, podendo inclusive ser assentes sobre o colo e utilizadas em qualquer ambiente ou ocasião. Apesar de a sua função primordial ser utilitária, não deixou também, de ser um objecto personalizado reflectindo o gosto, educação, conhecimento, mundo dos negócios e posses do seu proprietário no entanto… acessível apenas a alguns.

A sua portabilidade transformou-a num objecto de uso pessoal e posse individual, ideal para a escrita de cartas particulares, postais de viagem, documentos privados, em contexto doméstico, mas também em conjuntura oficial, uma vez que, podia acompanhar expedições militares, viagens de negócios, ou de qualquer outro tipo podendo estar presente em salas de biblioteca públicas e privadas.

Se no século XVIII os estojos se apresentavam com maior simplificação, com caixas cujos tampos eram um pouco inclinados e com gavetas laterais para o papel, o aproximar do final do século trouxe tampos planos, mais fáceis de transportar. O seu uso passou a acompanhar exércitos – guerras napoleónicas e grand touristas.

Planos militares mas também escritos pessoais podiam assim ser feitos em qualquer lugar. O incremento das viagens nomeadamente do Grand Tour, foi igualmente factor de desenvolvimento e uso desta peça de mobiliário, que permitiu a existência de relatos de acontecimentos na 1ª pessoa, guias de viagem, descrições de sítios arqueológicos, de paisagens, cartas… Por outro lado, a expansão do Império e a deslocação dos seus súbditos implicava a utilização de semelhante objecto, quer fosse em contexto oficial, de negócio ou privado.

No século XIX, o rápido desenvolvimento económico aliado ao caminho de ferro, às deslocações e transporte de bens e pessoas, levou a que as caixas-escritório continuem a ser produzidas, acompanhando a evolução da sociedade, seguindo a sua produção o gosto da época: o revivalismo.

Pode conhecer vários modelos de caixas-escritório aqui: http://www.hygra.com/writing.html.

 

 

Boulle ou Buhl

 

O século XIX caracteriza-se pelo retomar (e remisturar) dos estilos artísticos precedentes. Neste contexto em França, tal como em Inglaterra, o neoclássico, o neogótico, a neorrenascença, suscitam interesse durante a primeira metade do século.  O advento da monarquia francesa de Julho (1830-1848) traz consigo uma aproximação ao século XVIII, cópias de peças e reproduções são feitas para completarem conjuntos ou decorações. Ebanistas franceses especializam-se neste tipo de trabalho atingindo grande perfeição técnica e artística, surgindo nesta época um profícuo mercado de reproduções com especial apreço pelas peças elaboradas por André-Charles Boulle (1642-1732).

Inglaterra não foi imune a este movimento revivalista. Impulsionado pela presença francesa na Exposição de Londres de 1851, o gosto pelo mobiliário do século XVIII, deste país, populariza-se em Inglaterra e coleccionadores ingleses atraídos pelas peças expostas, começam a adquirir inúmeros originais. Em paralelo, desenvolve-se um mercado inglês assumidamente especializado no consumo e fabrico de cópias de grande qualidade que completavam conjuntos decorativos ou decorações, particularmente de móveis de estilo dito Boulle ou Buhl como era designado em Inglaterra e onde foram produzidas incontáveis reproduções das peças francesas (e igualmente de outros autores).

Nomes como o do marquês de Hertford, Richard Seymour Conway (1800-1870), Ferdinand de Rothschild (1839-1898) ou John Jones (1799-1882) são referências entre os colecionadores de mobiliário francês de época e de cópia de qualidade, onde encontramos também a família real. Entre os ebanistas especializados destacamos em Londres as firmas de Robert Hume & Son (1808 -1845), de John Webb (1825-1880) de que o Museu Medeiros e Almeida possui a secretária que pertenceu ao marquês de Hertford, e a de Robert Blake & Co. (1826-1880) todas especializadas na produção de trabalhos à maneira de Boulle ou Buhl.

Tal como no século anterior, a decoração é feita com materiais contrastantes como o latão e tartaruga tendo no entanto, a evolução técnica permitido que o latão fosse recortado mecanicamente. A decoração cuidada e intrincada afasta-se, no entanto, dos motivos de Boulle originais ou dos inspirados nos de Jean Bérain. Agora a complexidade decorativa resume-se a enrolamentos e entrelaçados vegetalistas e arabescos mais ou menos elaborados, tendo-se perdido toda uma complexidade e panóplia decorativa existente no século XVII.

 

 

De prata e aço

 

As peças que integram o estojo da caixa são em prata dourada e em aço.

 

Caixa-escritório

 

As de prata (tinteiro e caixa de aparos) minuciosamente gravadas, estão marcadas com um conjunto de punções que asseguram a qualidade dos objectos: as iniciais TJ dentro de rectângulo, leão passante, cabeça de leopardo, letra Q, perfil da rainha Vitória.

 

Caixa-escritório

As iniciais TJ referem-se a Thomas Johnson I (sucedido pelo filho Thomas Johnson II) ourives londrino com oficina aberta em Dyers Building Holborn, Londres. A sua primeira marca foi registada nesta cidade em 1850. Especializou-se na realização de trabalhos de pequenas dimensões que exigiam decorações detalhadas como conjuntos de toilete, de viagem, caixinhas para diversos fins, ou como no caso, peças para estojos de escrita.

O leão passante atesta a qualidade da prata (925). A peça foi registada na cidade de Londres por isso, foi marcada com uma cabeça de leopardo. Prova do pagamento do imposto devido à Coroa, foi a aposição da marca com o perfil da rainha Vitória. Finalmente, foi puncionada a letra Q (em gótico) referente ao ano de execução das peças: 1851.

As peças em aço (tesouras, canivete) foram executadas em Sheffield, proeminente centro de produção de cutelaria. Para este sucesso da cidade, não terá sido alheia a invenção em 1743, do old Sheffielfd plate: a sobreposição de uma placa de cobre e uma de prata que quando aquecidas em conjunto se fundem, tornando desta forma os objectos de prata mais acessíveis. Igualmente, foi nesta cidade que, se passou a produzir aço de alta qualidade garantindo-lhe a liderança no mercado mundial de cutelaria.

Algumas das peças em aço estão marcadas como certifica a marca presente no canivete: Rodgers Cutlers to Her Majesty, nº6 Norfolk Street, Sheffield.

Caixa-escritório

A companhia foi fundada em 1724 por John Rodgers a que posteriormente se juntaram os seus três filhos.  Na década de 80 do século XVIII instalou-se no n.º 6 de Norfolk Street, a sua morada mais famosa, onde inovou ao criar um showroom onde os clientes podiam apreciar e simultaneamente adquirir os produtos.

À época, produzia sofisticados canivetes e canetas de grande qualidade, sem paralelo no mercado, tornando-se um importante exportador para todo o império britânico e estrangeiro, passando também a fornecer a casa real. Os seus dois símbolos cruz de Malta e estrela, como aparecem no canivete, foram registados em 1764 como pertencentes à companhia (até aí eram alugados à Cutler’s Company). A marca subsistiu até ao presente embora actualmente seja propriedade da Egginton Brothers.

 

 

Caixa-escritório

Caixa-escritório

Recebeu o Museu Medeiros e Almeida em julho de 2021, em empréstimo por parte de familiar de Margarida Pinto Basto, uma caixa-escritório, em estilo Boulle (ou Buhl) inglês.

Adquirida num antiquário em Estocolmo em cerca de 1935/6, manteve-se na mesma família até ao presente. Na realidade, a sua história até à data de aquisição suscita inúmeras questões: quem a mandou fazer? Em que contexto? Porque não foi (ou parece ter sido) entregue ao seu destinatário? Onde esteve entre o período de execução e o de aquisição? Como e quando sai de Inglaterra e em que circunstâncias? Como aparece à venda em Estocolmo? Tudo perguntas até ao momento em aberto. Em contrapartida, as peças respondem-nos a outras: quem, quando, onde foram feitas e a quem se destinavam.

O conjunto de grande qualidade técnica e estética envolveu diversos artesãos na sua execução: marceneiros, ourives, cuteleiros, todos de primeira água, integrando-se plenamente, no gosto vigente na época em que foi feito: meados do século XIX.

A caixa rectangular de tampo (dobrável) inclinado com parte sobrelevada abaulada é marchetada em première partie – fundo em tartaruga e decoração em latão, apresenta decoração de enrolamentos de folhagem, ostentando ao centro as armas papais de Pio IX, motivo que repete em todas as peças (excepto nas tesouras) que integram o conjunto. O interior (e tampo) da caixa é forrado a veludo  carmesim contornado a folha de ouro gravado sendo por sua vez emoldurado por ébano(?) embutido a metal, marfim, coral(?), lápis-lazúli(?). As dobradiças e cabeças dos parafusos do tampo são minuciosamente gravadas com motivos florais, revelando a excelência da qualidade da execução pretendida para esta encomenda. A parte superior do tampo levanta permitindo o acesso a um vão em madeira onde se guardam duas bolsas em seda moiré uma delas com papel mata-borrão.

O estojo propriamente dito, é constituído por um tinteiro e uma caixa de aparos, um corta-papel, uma caneta de aparo, uma lapiseira, um raspador, um canivete, um sinete, um lacre, todos em prata dourada gravada com enrolamentos, apresentando ao centro as armas papais. À excepção dos tinteiros todos são também decorados com turquesas. Para além destas peças, integram ainda o conjunto duas tesouras em aço de tamanho diferente ambas decoradas com folhagem dourada sem os símbolos papais.

Através das marcas de ourives apostas nalgumas das peças foi possível determinar uma parte dos artesãos envolvidos na sua execução: TJ (tinteiros) – Thomas Johnson I assim como, da data em que estas foram feitas 1851. Curiosamente, apenas estas duas peças foram feitas por este ourives. As outras aparentemente, terão sido todas entregues a outra oficina uma vez, que o corta-papel apresenta um outro conjunto de marcas, seguindo todas estas peças o mesmo discurso decorativo. Até ao momento ainda não foi possível identificar o ourives que marcava com as iniciais EN, também em Londres, no ano de 1851.

 

Marca corta papel

 

O trabalho de cutelaria, tesouras e canivete com lâminas em aço ficou a cargo da empresa Rodgers Cutlers de Sheffield, a mais famosa desta cidade. Por uma razão desconhecida as tesouras apresentam gravado o nome de uma pequena localidade escocesa: Leuchars.

Infelizmente até ao momento, não foi possível determinar qual o ebanista que executou o trabalho de marchetaria da caixa.

Visto as armas do papa Pio IX estarem presentes, sem dúvida que este conjunto se destinava a este Papa. De origem nobre Pio IX (Giovanni Maria Mastai Ferretti 1792-1878) como aliás demonstram as suas armas, (Mastai no 1.º e 4.º campo blau – azul com leão, Ferretti 2.º e 3.º campo em argente e gole – prateado e encarnado) foi eleito Papa em 1846 tendo tido um longo pontificado, até 1878.

Foi durante o seu pontificado em 1850, que foi restabelecida a hierarquia católica em Inglaterra, através da bula Universalis Ecclesiae com a criação da Arquidiocese de Westminster em Londres, mas também por toda a Inglaterra e País de Gales num total de 13 dioceses.

Parece-nos ser esta uma razão plausível para esta encomenda, o reconhecimento por parte da comunidade católica inglesa, no ano imediatamente a seguir.  Mantém-se, no entanto, incógnita a razão pela qual não se concretizou a sua entrega e qual o seu percurso até 1935/6 em Estocolmo.

O conjunto não terá tido uso, dado o seu bom estado de conservação e manutenção junto do mesmo proprietário desde a aquisição num antiquário em Estocolmo, em 1935/6, até ao seu depósito no museu em 2021.

 

 

Proveniência

 

Empréstimo sem prazo ao Museu, realizado em 29 de Junho de 2021, por Mafalda de Lima Mayer Quartin Bastos (sobrinha materna de Margarida Pinto Basto de Medeiros e Almeida, irmã de sua mãe, Teresa Binto Basto de Lima Mayer) e do seu marido Manuel Pimentel Quantin Bastos ( 21.09.1934 – ) que herdou a caixa-escritório de seus pais.

A peça foi adquirida em Estocolmo, na Suécia, desconhece-se se num leilão ou antiquário, pela quantia de 600.000 reis (de acordo com um pequeno papel que sempre se encontrou junto à peça, guardado pela anterior proprietária Helena Pimentel), em 1935-1936, período em que Fernando Quartin de Oliveira Bastos chefiou a missão diplomática portuguesa naquele país – Legação em Estocolmo – como Ministro Plenipotenciário (1935-06-27 / 1937-10-09).

Cristina Carvalho

Museu Medeiros e Almeida

 

Como citar / How to cite:

Carvalho, Cristina (2022). Caixa-escritório “Buhl”. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/destaque-outubro-2022/

 

A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt

 

 

Bibliografia:

MESTDAGH, Camille, LÉCOULES, Pierre – L’Ameublement d’Art Français 1850-1900. Les Éditons de L’Amateur, Paris, 2010

PAYNE, Christopher – 19th century European Furniture. Antique Collector’s Club, Suffolk, 1989

 

 

Webgrafia:

https://antiquevestas.com/thomas-johnson/

https://archive.catholic-heritage.net/Overview.aspx

https://www.artisanantiques.net/products/a-huge-solid-silver-table-snuff-box-victorian-thomas-johnson-1869

http://www.hygra.com/writing.html

https://bifmo.history.ac.uk/entry/blake-robert-co-1826-1880

https://bifmo.history.ac.uk/entry/hume-robert-1808-40

https://bifmo.history.ac.uk/entry/webb-john-1825-1880

https://www.regentantiques.com/blog/joseph-rodgers/

http://www.sheffieldcutlerymap.org.uk/location/joseph-rogers-and-sons/

https://www.silvercollection.it/englishsilverhallmarks.html

https://www.yorkshirepost.co.uk/whats-on/arts-and-entertainment/nostalgia

Autor

Thomas Johnson I (ourives act. 1850) - Londres; EN - não identificado (ourives act. 1851); Joseph Rodgers & Sons (1724 - presente) - Sheffield

Data

1851

Local

Inglaterra

Materiais

Madeira, tartaruga, latão, prata, aço, turquesa, marfim, ébano, folha de ouro, veludo, lápis-lazúli, vidro, seda, papel

Dimensões

A. 15 x P. 28,3 x L. 38 cm

Category
Destaque