Dioníso e Ariadne : duas caixinhas de rapé – Destaque em Maio 2019

Dioníso e Ariadne : duas caixinhas de rapé

 

FMA 949 – Caixa de tabaco oval

Adelaide-Catherine Duponnois, Paris c. 1822 -1838

Malaquite, sanguínea e ouro

A: 2,50cm x C: 7,10cm x P: 5,50cm

 

 

FMA 969 – Caixa de tabaco retangular

Rémond Lamy & Compagnie, Genebra, c. 1801 -1804

Ouro e esmaltes policromados

A: 1,40cm x C: 9,80cm x P: 6.80cm

 

 

 

FMA 949 – Caixa de tabaco de forma oval em malaquite, sanguínea e ouro com representação esculpida do mito de Dioníso e Ariadne na tampa, rematada por cercadura de flores e insectos em ouro.

FMA 969 – Caixa de tabaco de forma rectangular em ouro decorada por esmaltes polícromos. A tampa apresenta cena mitológica com representação de Dioníso e Ariadne, rematada por cercadura de motivos vegetalistas em ouro.

 

Mito de Dioníso e Ariadne

Na mitologia grega, Ariadne, era uma princesa, filha de Minos rei de Creta e de Pasifae.  Apaixonou-se por Teseu e ajudou-o a sair do labirinto do Minotauro, fugindo juntos para a ilha de Naxos, onde Teseu a abandonou enquanto dormia. Desesperada ao ver o navio de Teseu afastar-se, chorava até que ouviu uma música trazida pelo vento e viu um alegre cortejo liderado por Dioníso, deus grego do vinho (O Baco da mitologia romana). Este foi ter com Ariadne e consolou-a levando-a a esquecer Teseu, tendo ficado noivos. O casamento foi celebrado com grande alegria e Dioníso ofereceu à sua esposa uma coroa de sete estrelas brilhantes, que após a morte dela, atirou aos céus onde ainda pode ser vista como a constelação de Ariadne ou Corona. Depois da morte de Ariadne, Dioníso perdeu toda a alegria, desinteressando-se da música, dança e folia até que Júpiter impressionado pelo seu luto, decidiu restaurar a vida de Ariadne dando-lhe imortalidade e devolvendo-a aos braços do deus.

Há dois tipos de representação principal de Dioníso: a mais antiga na qual o deus surge já de idade avançada, com barba, vestido com panejamentos que lhe cobrem a maior parte do corpo. A outra, mais recente, surge, gracioso, charmoso, quase efeminado, com cabelo longo de caracóis ou então apanhado ao alto. Aparece nu ou então com uma capa de pele de leão ou de pantera sobre o ombro. Na cabeça apresenta uma coroa de folhas de videira, segurando numa das mãos uma taça de vinho e na outra um bastão (thyrsus) que lhe serve de ceptro.

 

O Tabaco

Trazido da América no século XVI, o tabaco  (também designado por “erva de Nicot”)  era plantado por Damião de Goes em Lisboa, que o deu a conhecer ao embaixador de França em Portugal, Jean Nicot que, por sua vez, o introduz em França, com a crença nas suas propriedades medicinais e curativas, tendo-o apresentado na corte de Catarina da Medicis.

À época, as suas folhas eram reduzidas a pó (rapé) sendo depois inaladas, tanto por homens como por mulheres. Este novo hábito levou ao aparecimento de objectos (caixas) e códigos de conduta relacionados com o seu uso e designados por “exercício da tabatière”. Frequentemente o tabaco era oferecido nos círculos sociais, passando a caixa que o continha, de mão em mão, havendo regras de comportamento para o seu uso. As caixas deviam ser abertas apenas com uma mão, ficando a outra livre para retirar alguns grãos com o polegar e indicador e levá-lo ao nariz com um gesto arredondado (que permitia admirar as joias que se usavam na mão) aspirando o tabaco suavemente.

 

A moda da caixa de tabaco

O consumo de tabaco em pó (rapé) difunde-se em finais do século XVII, levando ao aparecimento de novos códigos de sociabilidade assim como, de objectos ligados ao seu uso, como por exemplo, recipientes específicos para o guardar.

A origem destes recipientes /caixas remonta às designadas pomanders – recipiente / caixinha em forma de bola ou de maçã para aromas e às vinaigrettes – caixas (geralmente retangulares) em prata, para colocar um lenço ou um pedaço de algodão embebido em perfume ou vinagre aromático. A forma das mais antigas destinadas a conter tabaco, deriva directamente deste tipo de caixa.

O desenvolvimento do uso da tabatière ou caixa de tabaco, coincide com o reinado de Luís XIV, grande apreciador deste tipo de objecto mas, não de tabaco, o que deu origem ao aparecimento de um novo tipo de caixa: a “caixa com retrato” (boite-à-portrait) que se converteu num presente diplomático muito apreciado, mas que não se destinava ao uso de rapé. Continha um retrato em miniatura no fundo do interior ou na tampa (interior ou exterior) sendo em geral contornado por uma peça de ourivesaria.

O uso do tabaco era feito tanto por homens como por mulheres, tendo originado caixas com dimensões diferentes, consoante o proprietário a que se destinavam, passando a o vestuário a estar adaptado ao seu uso com bolsos.

A popularidade que estes objectos adquiriram, levou a que surgissem peças decorativas, para estarem pousadas em cima de mesas, havendo inclusivamente, caixas para todas as ocasiões: “de baile, de jogo, de visita, de caça, de Verão [e Inverno] de luto, de casamento…”

 

A tabatière originou também, caixas destinadas a outras funções como: a caixa de moscas para guardar “sinais” artificiais, que se podiam colocar na cara para disfarçar cicatrizes ou simplesmente para enfeite; a caixa de rouge e mosca dividida em dois compartimentos e com espelho, as bombonnières para guardar doces e cuja tampa era separada da caixa, o carnet-de-bal para tomar nota dos candidatos a dançarem com a dona do carnet. Estojos (para agulhas, estiletes ou para cera de selos), necessaire por exemplo de costura, caixas da liberdade (?) de reconhecimento dos feitos de um indivíduo, caixas de micro mosaico, recordações italianas do grand tour. Existiam ainda caixas para drageias – pequenos doces feitos de pedaços de fruta, raízes ou cascas aromáticas e cobertos por açúcar duro.

Tornou-se um objecto de sociabilidade e aparato fazendo parte da toillete de homens e mulheres, tendo originado gestos de elegância masculina que passavam pelo tirar do bolso a caixa, abri-la, aspirar o tabaco, fechá-la e limpar o casaco dos resquícios de pó que pudessem ter caído. Entre as senhoras a caixa também tinha um papel importante, não raras vezes, tinha o retrato do marido na tampa, mas se a relação não fosse oficial, o retrato estava no interior ou até mesmo num compartimento escondido. Faziam ainda parte do enxoval das noivas enquanto presente oferecido aos convidados do casamento.

Foram consideradas desde o século XVII, objectos de grande valor e de colecção (tendo sido por isso, ao longo dos tempos bem conservadas) e o presente por excelência, tendo sido oferecidas em reconhecimento por trabalhos / serviços prestados. Enquanto presente diplomático foram oferecidas aos visitantes oficiais de Versailles, mas faziam igualmente parte dos bens oficiais dos embaixadores franceses no estrangeiro, apresentando em geral o retrato do soberano a quem se destinavam.

 

A execução da caixa de tabaco tinha que ser meticulosa de forma a permitir uma boa conservação do produto. Daí, ter que fechar hermeticamente, constituindo a realização das dobradiças um passo relevante, pois estas deveriam ser invisíveis, disfarçadas pela moldura de ouro que contorna a caixa e a tampa.

Os materiais usados na sua feitura eram dos mais variados: ouro (que podia ter tonalidades diversificadas quando se lhe juntavam outros metais como a prata, cobre, platina, ferro), prata dourada ou não, tartaruga, pedras duras, esmalte, porcelana, âmbar, laca, verniz, madrepérola, concha, corno, madeira.

O seu interior também era diversificado: das mais simples às que podiam apresentar dois compartimentos ou um espelho na tampa, as que tinham um mecanismo para se aceder ao seu conteúdo, a variedade era grande.

Como noutras artes, em particular em França, as profissões estavam agrupadas em corporações que se regiam por regras rigorosas, havendo distinção entre os ourives que fabricavam as peças grandes (por exemplo de mesa) e os que fabricavam pequenos objectos, designados por ourives bijoutier. São estes últimos que realizam a estrutura das tabatières e o forro em ouro sobre o qual são montados os painéis de outros materiais como porcelana, pedras – duras, madrepérola, esmaltes, etc. Em geral, o trabalho era cinzelado e não feito a partir de moldes. Posteriormente, a invenção de maquinaria para guilhochar permitirá a gravação de uma infinidade de decorações de motivos repetitivos dos fundos.

 

As caixas decoradas com esmaltes pressupõem também, o trabalho de pintores esmaltadores especializados, verdadeiros miniaturistas reproduzindo muitas vezes pinturas de outros artistas sob esta forma.

Especializada na produção de caixas de presente diplomático, Genebra constituiu um importante centro de pintura esmaltada em miniatura, no início do século XIX e de produção destes objectos. Distinguiu-se no uso de um esmalte translúcido e brilhante em cores intensas como azul – rei, verde-esmeralda, vermelho brique (por vezes também em cores mais suaves como o azul cinza) que permite ver o trabalho do ouro guilhochado do fundo, como aquele que surge na caixa de Rémond Lamy et Comp. (FMA 969).

A esmaltagem é uma técnica decorativa vitrificada resultado da fusão de pó de esmalte, que se agrega a uma superfície metálica, produzindo variados efeitos decorativos. O esmalte basse-taille ou esmalte translúcido cobre baixos-relevos cinzelados no metal, formando tonalidades diferentes, segundo a sua espessura, permitindo ver à transparência os motivos decorativos subjacentes em geral guilhochados, integra a categoria dos designados esmaltes de ourivesaria, distinguindo-se dos esmaltes pintados nos quais as cores de pós de esmalte são diluídas e que a cozedura vitrificou no metal.

As caixas em pedras duras (como a da Casa-Museu FMA 949) eram executadas pelos lapidadores e depois montadas na estrutura de ouro. Tendo sido produzidas em todos os países, sítios houve que por terem jazidas dessas pedras, fizeram as placas que posteriormente podiam ser ou foram montadas noutro país.

As duas caixas em análise fazem parte de um núcleo da colecção que integra cerca de 70 peças, de origens, materiais, temáticas e épocas variadas, apresentando estes dois exemplares um tema decorativo comum: o mito de Dioníso e Ariadne.

 

FMA 949

Caixa em malaquite, sanguínea e ouro de forma oval com representação esculpida do mito de Dioníso e Ariadne na tampa, rematada por cercadura de flores e insectos em ouro. Ariadne sentada, segura o thyrsus (bastão com ramos de hera e videira, fitas, enrolados e pinha no topo, atributo de Baco) enquanto o deus apanha um cacho de uvas junto a um cupido (?) e a um leão (também seu atributo).

Marca de ourives DL atribuída a Catherine-Adelaide Duponnois, viúva do ourives Jean-Louis Leferre e que assumiu juntamente com o filho mais novo, o negócio do marido após a morte deste em 1822, no mesmo espaço – Rue St. Martin 159, Paris, mas que registou uma nova marca: DL.

Punção de Paris em uso entre 1819 e 1838 – touro dentro de hexágono, 3.  Garantia da qualidade do ouro (3) – 750 milésimas.

 

FMA 969 – Caixa de forma rectangular em ouro decorada por esmaltes polícromos. A tampa apresenta cena mitológica com representação de Baco e Ariadne: o deus do vinho com os seus atributos clássicos, capa de pele de leão e thyrsus (varinha rematada no topo por uma pinha e folhas de videira), estende uma taça que Ariadne enche de uma bebida. Por sua vez, a deusa seminua, está reclinada sobre uma chaise-longue segurando também uma taça. A tampa é rematada por emolduramento a ouro de motivos vegetalistas. O fundo guilhochado é coberto por esmalte translúcido em azul-rei.

 

A caixa apresenta no interior da tampa a marca de ourives de Rémond Lamy & Compagnie – RL&C., firma de Genebra que existiu sob esta denominação apenas entre 1801 e 1804, remetendo por isso, a sua execução para este período. A casa tinha sido fundada em 1783, pelo ourives Jean-Georges Rémond, mestre em 1783 que trabalhou até c. 1815-1820 tendo-se associado ao longo da vida com outros ourives.

Possui ainda uma outra punção, com as letras ET dentro de perímetro retangular – marca de contrastaria de Genebra, criada em 1807 (no período em que a cidade esteve sob domínio francês).

 

Até ao momento, não foi possível identificar a fonte iconográfica da decoração da tampa, sabendo-se, no entanto, que esta mesma representação surge num leque pertencente ao museu Victoria and Albert em Londres, a quem agradecemos a colaboração. Pode compará-la aqui:

http://collections.vam.ac.uk/item/O69755/bacchus-and-ariadne-fan-unknown/

 

Proveniência

FMA 949 – Proveniente da colecção Barros e Sá, tendo sido adquirida por Medeiros e Almeida em leilão realizado pela Leiria e Nascimento, em Novembro de 1958.

FMA 969 – desconhece-se a sua proveniência e modo de integração na colecção.

 

Cristina Carvalho

Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

Bibliografia:

D’ALLEMAGNE, Henri René – Les Acessoires du Costume et du Mobilier, tome I. Schemit Libraire, Paris, 1928

GUERBER, H. A. – Myths of Greece and Rome. American Book Company, NY, Cincinnati, Chicago, 1921

HABSBURG – LOTHRINGEN, Géza von – Gold Boxes from the collection of Rosalinde and Arthur Gilbert. R.& A. Gilbert, London, 1983

LLANOS, Jose de los e GRÉGOIRE, Christiane –  Boites et Objects d’Or de Vértu. Musée Cognaq – Jay, Paris, 2011

NORTON, Richard and Mark – A History of Gold Snuff Boxes. S.J. Phillips, Londres, 1938

TATLOCK, Jessie M. – Greek and roman Mythology. Century Company, NY, 1917 – p.171

https://www.christies.com/features/Gold-boxes-collecting-guide-9264-1.aspx?sc_lang=en

https://poincons.interor.fr/

http://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/2018/treasures-l18303/lot.31.html

http://www.sulka.fr/orsuis/

http://collections.vam.ac.uk/item/O69755/bacchus-and-ariadne-fan-unknown/

 

 

 

Artista

Adelaide-Catherine Duponnois / Rémond Lamy & Compagnie

Ano

1822 -1838 / 1801-1804

País

Paris, França / Genebra, Suíça

Materiais

Malaquite, sanguínea e ouro / Ouro e esmaltes policromados

Dimensões

A: 2,50cm x C: 7,10cm x P: 5,50cm / A: 1,40cm x C: 9,80cm x P: 6.80cm

Category
Destaque