Entre as diversas salas do Museu, existe um espaço dedicado à princesa portuguesa, rainha de Inglaterra, Catarina de Bragança, onde se expõem diversas peças que se relacionam com a personagem ou com o rei Carlos II. Aqui destaca-se pela originalidade, um espelho decorado com um tipo de bordado relevado, conhecido como “stumpwork”.
O Espelho:
Espelho retangular rodeado por larga moldura dividida em oito compartimentos decorados num trabalho de bordado sobre cetim de seda chamado stumpwork que alia o bordado direto ao bordado de aplicação. A moldura e a esquadraria que dividem a peça são em tartaruga sobre folha de ouro. O espelho tem os lados chanfrados (bisoté) e será provavelmente da fábrica inglesa em voga na época, a Vauxhall Glass Works, fundada em 1670 pelo 2º duque de Buckingham.
Na decoração da moldura destacam-se as duas figuras de corpo inteiro dos compartimentos laterais do espelho; tratam-se das representações do rei Carlos II de Inglaterra (à esquerda) e da sua mulher D. Catarina de Bragança (à direita). Ambas as figuras são representadas sob baldaquinos, envergam trajes de aparato, estão coroadas e seguram um ceptro (o da figura feminina caiu). O tratamento dos personagens, apesar de bastante naif, permite a sua identificação iconográfica se atentarmos a estampas coevas. O monarca, para além da coroa e ceptro, traja as vestes (capa de arminho) e colar da Ordem da Jarreteira e apresenta a caraterística farta cabeleira encaracolada e escura e bigode. A rainha identifica-se pela coroa e ceptro e pelas vestes de aparato, nomeadamente o vestido com o cabeção de renda imortalizado pelo retrato coevo de Dirk Stoop, realizado em Lisboa em 1661 (National Gallery, Londres).
Os cantos da moldura dividem-se em quatro quadrados apresentando decoração de flores e folhagem variada, de grande cuidado em tons de verdes, rosas e azuis. Entre as diferentes espécies, podem-se identificar rosas e cardos, as flores nacionais inglesas. No topo da composição, ao centro, representa-se uma figura masculina inscrita numa reserva oval, muito provavelmente será o monarca enquanto jovem surgindo a meio corpo, trajando capa, um ceptro e uma estranha coroa de folhagem. Em fundo representa-se uma arquitetura palaciana que alguns autores sugerem tratar-se do Palácio de Withehall em Londres – onde os monarcas viveram -, identificando-se uma porta, hoje inexistente, a King Street Gateway (identificada pelas cúpulas dos torreões em semicírculo), que foi demolida em 1723 para alargar a passagem. A reserva, definida por um folho, está ladeada por dois pássaros assentes num ramo e por dois pequenos lagos com peixes bordejados por rochedos.
No compartimento inferior da composição, ao centro, abre-se em reserva oval delimitada por um folho de tule, onde se representa uma figura feminina a meio corpo em fundo de paisagem onde surge igualmente uma arquitetura palaciana e uma árvore. A reserva está ladeada por um leão frente a uma árvore à esquerda e por um leopardo frente a uma árvore à direita que tanto podem ser considerados simples animais exóticos como podem ser entendidos enquanto símbolos da monarquia inglesa. A figura, de meio corpo, enverga trajes ricos e segura um ceptro mas não se apresenta coroada, usando um toucado com penas. Segundo uma tradição escrita, e ao contrário do que seria expectável, a figura não representa a rainha Catarina; trata-se provavelmente de Mrs. Talbot Batson, suposta autora do trabalho e suposta criada do primeiro filho ilegítimo de D. Carlos II, o Duque de Monmouth, como atesta uma inscrição manuscrita no reverso do espelho (na qual se verificam alguns erros):
“This beautiful piece of needlework representing
King William and Queen Mary
was done by Mrs. Batson wife of the Reverend Edmund Batson
minister of Pauls Meeting Taunton
She had been one of the flag maids to the Duke of Monmouth
her maiden name as Talbot
it was probably worked about the year 1690
Mrs Batson was (I believe)
aunt of my grandmother Brown
S. Brown
The lower figure is supposed to represent Mrs. Batson”
Nota: O Reverendo Edmund Batson (c. 1675-1735) e a sua mulher eram naturais de Taunton, Somerset no sul de Inglaterra. Foi nesta localidade que o Reverendo Batson exerceu funções na Igreja Congregacional Paul’s Meeting desde 1706 até à sua morte. Mrs. Batson é referida no texto como tendo sido ‘flag maid’ do Duque. Apesar de vários esforços, este termo ainda não foi identificado.
Após observação de obras similares em acervos de museus e em publicações, e tendo igualmente em conta a especificidade deste tipo de trabalho, deve concluir-se que as identificações feitas a propósito da decoração do espelho – tanto a que diz respeito à figura da sua autora; Mrs. Batson, bem como à King Street Gate do Palácio de Whitehall – são pouco credíveis pois as composições utilizadas não variavam muito, repetindo-se com frequência a maior parte dos elementos decorativos. Assim, a ‘suposta’ Mrs. Batson pode-se facilmente confundir com diversas figuras femininas representando deusas, alegorias ou simples damas da corte e o palácio de Whitehall poderá ser uma qualquer arquitetura. A própria figura que supostamente representa Carlos I em novo pode ser posta em causa.
Comparando o espelho da Casa-Museu com outras obras, o exemplar pode ser considerado uma versão elaborada, certamente de mão adulta, revelada pela harmoniosa composição, pelo cuidado nos detalhes, para além do emprego de ricos materiais na decoração como as pequenas pérolas (vulgarmente chamadas “aljôfares”) das coroas e do colar da rainha, bem como a carapaça de tartaruga com base de folha de ouro empregues na moldura.
Stumpwork:
Stumpwork é um tipo de bordado sobre cetim de seda que se carateriza pela utilização de vários tipos de pontos de agulha como o ponto de ouro, ponto lançado, ponto de cadeia, ponto a cheio e o ponto de Bolonha entre outros (bordado direto) e pela aplicação de diversos tecidos (veludo, seda, cetim, linho, brocado, chenille, etc.) e materiais como pérolas, lantejoulas, missangas, renda, franjas, galão, etc., compondo os elementos decorativos.
Neste trabalho de agulha, para além de apontamentos em bordado tradicional, criam-se com recurso aos diferentes materiais, elementos figurativos – personagens, fauna e flora -, que são colocados sobre pequenas almofadas de arame, feltro ou algodão e que, por sua vez, são aplicados sobre a matriz de cetim – onde os motivos decorativos eram previamente desenhados (muitos exemplares apresentam zonas por bordar vendo-se o desenho original) -, criando um efeito tridimensional que empresta grande originalidade a este tipo de composições. O espaço é quase totalmente preenchido num quase horror vacui que empresta grande cor e animação às peças.
Esta técnica teve origem nos têxteis eclesiásticos dos séculos XV e XVI, cujo trabalho de agulha envolvia grande diversidade de técnicas e de materiais, estes, porém, a partir da criação da Igreja de Inglaterra no 2º quartel do século XVI praticamente deixaram de existir, criando um novo interesse pelos bordados profanos tanto ao nível do guarda-roupa como da decoração doméstica. O stumpwork é diretamente herdeiro dos bordados da era elisabetiana que se caraterizaram pela enorme complexidade e riqueza e que já demonstravam alguma tendência para o relevo, tendo tido origem na época Stuart provavelmente durante o reinado de Carlos I (1600-1649), e tendo estado em voga até finais do século XVII. A maioria dos exemplares existentes data, porém dos reinados pós restauração da monarquia em 1660.
O declínio deste tipo de trabalho e um pouco dos bordados em geral é explicado pelo exagero que atingiu e que conduziu a uma mudança de gosto para a simplicidade, bem como pela chegada em massa a Inglaterra dos têxteis indianos e orientais. A designação ‘stumpwork’ aplicada a este tipo de trabalho de agulha foi dada no século XIX, na época, os termos aplicados eram: ‘raised work’ ou ‘brodees en relief’.
Os motivos eram copiados de álbuns de padrões e de estampas que circulavam à época que eram livremente interpretados criando cenas historiadas de cariz maioritariamente ingénuo. As figurações mais comuns são cenas do Velho Testamento, temáticas mitológicas, alegorias e as populares representações de casais incluindo os casais reais Carlos II e Catarina de Bragança e os reis William e Mary. Os fundos eram preenchidos com arquiteturas, elementos vegetalistas e animais como os característicos tigre e leão, diversos pássaros e insetos.
Rei Carlos II de Inglaterra – Rainha Catarina de Bragança
(estampas pertencentes ao espólio da Casa-Museu – reservas)
Cortejo de casamento de D. Catarina de Bragança – Lisboa, 1662
(estampa pertencente ao acervo da Casa-Museu – reservas)
Como todo o tipo de trabalhos de agulha, o stumpwork era realizado por mulheres que começavam desde meninas, já que os trabalhos de agulha faziam parte da sua educação (existe o famoso cofre assinado e datado (1673) por Martha Edlin, uma menina com 11 anos – Museu V&A, Londres). Devido ao curto período em que foi feito, o trabalho de stumpwork nunca passou de amador. Esta técnica decorativa foi aplicada a pequenas peças de mobiliário como molduras de espelhos, cofres, caixas e contadores bem como a peças de vestuário ou pequenos objetos como almofadas, capas de livro, escovas, espelhos de mão e caixinhas. Na maioria das molduras de espelhos conhecidas verifica-se que a temática preferida era a dos casais, colocados de cada lado, pensando-se que se trataria de uma oferta ligada às celebrações matrimoniais. Não será o caso da comemoração do casamento de Carlos II e Catarina de Bragança que casaram em 1662.
Proveniência:
Alegadamente feito por Mrs. Talbot Batson, criada do 1º duque de Monmouth (1649-1685)
Pertenceu a S(?). Brown, sobrinho(a) neto(a) de Mrs. Batson (meados do séc. XVIII)
Coleção do Capitão J.H. Reynolds,145 Victoria Street, Londres S.W.
Anunciado na revista ‘Country Life’ de 1 de março de 1962
Adquirido na Delomosne & Son Ltd., 4 Camden Hill Road, Kensington High Street, Londres, em maio de 1962, por £1.050. (O vendedor garantia que o espelho e a tartaruga eram contemporâneos do trabalho de agulha.)
Exposições:
‘International Art Treasures Exhibition’,Victoria & Albert Museum, Londres, Abril de 1962
‘Tesouros da Intimidade Real, Objectos do uso pessoal de Príncipes Europeus’, Fundação Medeiros e Almeida, Lisboa, 2005-2006
Maria de Lima Mayer / Ana Melissa Correia (estagiária)
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
Revistas:
ASHTON, Leigh, Martha Edlin: A Stuart Embroideress, The Connoisseur, Julho 1928, nº 323, pp.215-223
KENDRICK, A.F., Embroideries in the Collection of Sir Frederick Richmond, Bart (2 partes), The Connoisseur, Maio 1935, pp.282-288, Junho 1935, pp. 317-321
Webgrafia:
BURGESS, Fred. W., Antique Furniture, Londres, George Routledge & Sons, Ltd., 1915 (Ebook disponibilizado em Out 2013: David T. Jones, Delphine Lettau, Dianne Nolan& the online Distributed Proofreaders Canada team at http://www.pgdpcanada.net/)
REMINGTON, Preston (Curator of Renaissance and Modern Art – Metropolitan Museum of Art), English Domestic Needlework of the XVI, XVII, and XVIII Centuries, 1945 (Ebook disponibilizado em: http://libmma.contentdm.oclc.org/cdm/ref/collection/p15324coll10/id/157078)
REMINGTON, Preston (Curator of Renaissance and Modern Art – Metropolitan Museum of Art), English needlework pictures, S/data http://www.metmuseum.org/ › 3257161.pdf.bannered.pdf
STANDEN, Edith (Associated Curator Textiles – Metropolitan Museum of Art), The Loom, the needle and the printing block, s/data http://www.metmuseum.org/ › 3257516.pdf.bannered.pdf
Desconhecido
Terceiro quartel séc. XVII, c.1675
Londres, Inglaterra
Armação: Espelho, tartaruga, verniz e folha de ouro / Bordado: Cetim de seda, seda, linho, chenille de algodão, fio de lã, fio de seda, fio laminado dourado e prateado, renda, cordão, galão, franja, contas, pedraria falsa e pérolas
Armação: Alt.58,4cm x Larg.45,7cm / Espelho: Alt.48,5cm X Larg.35cm