No átrio do Museu, projetado no início dos anos setenta por Medeiros e Almeida para ser a entrada da instituição, destacam-se duas peças de mobiliário de exceção, obra de um marceneiro de exceção: François Linke (1855-1946).
Estas duas peças pertencentes à coleção da Casa-Museu Medeiros e Almeida, foram originalmente concebidas para serem expostas no stand do marceneiro François Linke, na Exposição Universal de Paris de 1900.
Nesta exposição, o autor apresentou um total de dezasseis peças de mobiliário, das quais se destacaram – para além das duas aqui referidas – o Grand Bureau e a Grande Bibliothèque.
Para a realização deste extraordinário conjunto, Linke contou com a inestimável colaboração do escultor e bronzista Léon Messagé (1842-1901), sendo que em parceria desenvolveram um estilo completamente novo que, com base nas linhas do Rococó, transitava já para o decorativismo sensual da Arte Nova, o que é bem patente nas duas obras aqui tratadas.
A realização das peças para a Exposição Universal de Paris, traduz não só o investimento de muitas horas de trabalho, como uma grande aposta de Linke no seu futuro, já que toda a produção decorreu a seu cargo, sem a existência de encomendas prévia, o que o poderia ter conduzido à bancarrota.
A sua ideia era dar-se a conhecer e atrair a atenção dos novos-ricos com um estilo completamente novo que o diferenciasse dos seus pares, assim como chegar também a uma clientela internacional. A aposta foi claramente ganha com o unânime reconhecimento da crítica e do público que, à época, era ávido frequentador deste tipo de exposições.
Charles Dambreuse, um dos críticos que assistiu à exposição, escreveu atestando a opinião pública: “L’Exposition de la maison Linke est le gros événement de l’histoire du meuble d’art en l’an de grâce 1900” (A exposição da casa Linke é o maior acontecimento da história do mobiliário no ano de 1900).
François Linke
François Linke nasceu a 17 de junho de 1855 em Pankraz na então Boémia (atual Áustria). Após um período de formação com um marceneiro local, Linke viajou pela Europa como assalariado entre 1873 e 1878, até se estabelecer finalmente em Paris. Em 1881, após ter trabalhado em ateliers de mestres alemães, abre a sua própria oficina na rua do Faubourg de Sainte-Antoine (a artéria parisiense onde se concentravam os marceneiros). Nesse mesmo ano, casa com Julie Teutsch, com quem teve quatro filhos; dois rapazes e duas raparigas.
O início do seu percurso não foi fácil já que havia muita concorrência na capital nessa época; durante praticamente as primeiras duas décadas de abertura da sua loja-atelier, Linke sobrevive vendendo a sua mobília a outros marceneiros mais bem estabelecidos como as casas Jansen e Krieger que atuavam como intermediários para a clientela.
Em 1900 a situação muda radicalmente com a sua participação na Exposição Universal de Paris, na qual ganha a medalha de ouro pelo seu Grand Bureau, conseguindo um número importante de encomendas que lhe proporcionam benefícios tais que lhe permitem abrir uma sala de exposições permanente na famosa e seleta praça Vendôme em 1903.
A partir desse momento a sua carteira de clientes diversifica-se, atendendo importantes pedidos de industriais, banqueiros surgindo nomeadamente uma grande encomenda do rei Fuad do Egito para mobilar o palácio de Ras al-Tin em Alexandria.
O marceneiro participa também em outras feiras internacionais como a Exposição de St. Louis nos Estados Unidos da América em 1904 – onde também ganha a medalha de ouro -, ou a exposição Franco-britânica de Londres, de 1908. Em 1906 é nomeado Chevalier de l’Ordre de la Légion d’Honneur, a mais alta distinção francesa.
Até à ocupação alemã de Paris em 1940, Linke continua o seu trabalho atendendo inúmeras encomendas nacionais e internacionais. Morre seis anos depois, a 17 dias de completar os 91 anos, trabalhando sem parar.
François Linke trabalhou no início do seu percurso, como a maioria dos marceneiros seus contemporâneos, influenciado pelos estilos Luís XV e Luís XVI, porém, pouco a pouco, as suas peças – nomeadamente as peças mais extravagantes para exposição – ver-se-ão influenciadas pela Arte Nova. Nas últimas décadas do século XIX, Linke estabelece a sua frutífera colaboração com Léon Messagé, escultor, bronzista e designer, que continua até a morte deste último em 1901.
Grande parte do sucesso de Linke, que ficou conhecido como o mais importante fabricante de mobiliário da Belle Époque, reside na originalidade dos desenhos, bem como na grande qualidade do trabalho das suas peças. Para Christopher Payne, curador do Arquivo Linke, este será: “…possivelmente o marceneiro mais procurado de finais do século XIX e inícios de século XX”.
Fotografia de Linke no seu atelier: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/d/d6/Fran%C3%A7ois_Linke%2C_ebeniste%2C_%281855-1946%29_at_his_desk.jpg
Léon Messagé
O escultor francês nasceu a 8 de março de 1842 numa pequena localidade da Borgonha. Pouco se sabe da sua vida antes dos vinte anos, altura em que existem registos da sua presença em Paris, onde trabalhou como escultor e designer de mobiliário, de pratas e outros objetos decorativos. Embora Messagé tenha desenvolvido os seus próprios projetos no estúdio da rua Sedaine, realiza também colaborações com outros marceneiros, como Eugene Brunet da Roux et Brunet ou Joseph-Emmanuel Zwiener (1848-1895).
Nestas colaborações, Messagé fica frequentemente com os direitos sobre os seus modelos, permitindo-lhe o seu uso e adaptação posterior, o que explica que bronzes praticamente iguais apareçam em peças de diferentes autores. É provavelmente através de Zwiener que Messagé entra em contacto com François Linke, por volta de 1885, iniciando a sua produtiva colaboração.
Linke e Messagé trabalharam muito de perto na realização das peças para a Exposição Universal de Paris de 1900. Após a realização dos desenhos prévios, Messagé fazia maquetes em cera que eram passadas para a escala adequada em madeira por parte dos colaboradores de Linke.
Posteriormente Messagé realizava os moldes das figuras decorativas em cera, em tamanho real e estes eram acoplados ao móvel para poder ter uma visão de conjunto e serem realizadas as necessárias alterações antes de fazer o investimento nos bronzes definitivos.
Esta colaboração leva François Linke a ganhar a medalha de ouro na Exposição de 1900, mas esta não seria a primeira para L. Messagé que já tinha ganho uma medalha de ouro na Exposição de 1889.
Em 1890, Messagé publica um livro, Cahier des Dessins et Croquis Style Louis XV, onde reúne 36 desenhos de móveis, pratas e outros objetos. Morre a 16 de maio de 1901, com 58 anos de idade.
A Exposition Universelle de Paris 1900
A ideia das exposições universais surge, em meados do século XIX, como uma forma de recuperação dos orgulhos nacionais. Estas exposições eram ponto de encontro entre diferentes sectores – a indústria, a ciência, as artes plásticas, a etnologia –, sendo o seu objetivo principal ser montras para o mundo de todos os avanços de uma sociedade que se queria moderna e industrializada. A primeira Exposição Universal foi a inaugurada em Londres, a 1 de maio de 1851, pela rainha Vitória, sendo a França o país estrangeiro com maior representação.
Embora Paris já tivesse experiência na organização de grandes eventos, as feiras industriais eram apenas de âmbito nacional e as exposições de arte eram maioritariamente organizadas pelo estado, com especial destaque para os salons. Após a exposição de Londres, a capital francesa junta-se rapidamente à corrida na organização destes eventos internacionais e interdisciplinares, acolhendo o primeiro evento em 1855, com o qual o monarca Napoleão III, pretendia consolidar a sua posição política e afirmar o papel de França no mapa. A esta seguiram-se as exposições de 1867, 1878, 1889 (inauguração da Torre Eiffel) e de 1900.
A Exposição Universal de 1900 – cuja organização começou em 1892 – teve lugar entre 15 de abril e 12 de novembro e foi a maior de todas as exposições parisienses até a altura. (folheie aqui o catálogo da exposição na base de dados Gallica da Biblioteca Nacional de França)
O evento concebeu-se como o encerrar de um século e a chegada de um novo e baseava o seu programa na celebração das conquistas alcançadas nas diferentes áreas abrindo o caminho para o futuro. Os visitantes podiam assistir a várias exibições de arte e indústria, mas também participar numa série de atrações e espetáculos. Porém, e apesar de todos os esforços realizados, esta exposição acabou por ser um grande fracasso a nível financeiro, já que os preços dos bilhetes afastaram em grande parte a população e o número de visitantes foi muito inferior ao inicialmente calculado. Teriam de passar trinta e sete anos para que Paris voltasse a acolher uma nova Exposição Universal.
O Móvel de Aparato
Armário de conter de um só corpo, com duas portas desiguais que dão acesso a um interior compartimentado em cinco nichos assimétricos e duas gavetas. O móvel, encimado por um tampo em mármore “gris des Ardennes” com veios rosas e acinzentados é construído em madeira de carvalho folheada com ornamentação à base de embutidos de outras madeiras (pau-rosa, pau-violeta) e profusão de bronzes dourados.
A decoração alude à deusa Vénus – deusa do amor -, que aparece representada no medalhão central junto ao seu amante, Marte – deus da guerra -, entre vegetação e uma cascata.
Nos cantos superiores do móvel, dois cupidos sustentam um panejamento que se entrelaça passando pela madeira fendida e cujas pontas caem nos lados criando um efeito teatral e dando uma profundidade acrescentada ao móvel. Ladeando o medalhão central painéis embutidos com ramos vegetalistas em madeiras preciosas e nas ilhargas representações simbólicas como uma alijava de setas, normalmente atributo iconográfico de Cupido. Toda a peça parece estar concebida como uma escultura para ser contemplada de diferentes ângulos.
Os bronzes estão assinados pelo próprio Linke num formato pouco habitual (F. LINKE em letras maiúsculas e não manuscritas como era hábito) e não por Messagé como era hábito.
No interior da porta maior, a guarda da fechadura apresenta uma inscrição numa elaborada cartela onde se lê: “Exposition Universelle 1900 F. Linke Paris”.
O Relógio
Relógio de caixa alta, regulador, composto por quatro corpos; base em bronze dourado, quatro pés altos em madeira com aplicações de bronzes ostentando um sino, corpo esguio com frente e lados em vidro e porta traseira que encerra o pêndulo, sendo a composição encimada pelo mostrador em forma de globo celeste estrelado, por sua vez envolto em raios e nuvens e desenvolvida figura de corpo inteiro, de bronze dourado, representado Cronos, a personificação do Tempo, simbologia associada à relojoaria.
O corpo superior tem a frente e as laterais em vidro permitindo ver o painel de fundo pintado com elementos vegetalistas envolvendo uma treliça, simulando embutidos de madeiras tingidas. Na frente da caixa do pêndulo destaca-se um galo em bronze dourado, de asas estendidas, assente num ramo de uma grande macieira que nasce na base da composição e cujos ramos se entrelaçam e percorrem todo o conjunto – um dos troncos da macieira está assinado como os bronzes do móvel de aparato: F.LINKE.
Este módulo termina num corpo arredondado no qual, através de uma reserva circular em vidro, se vê o pêndulo, em bronze dourado, representando uma cabeça feminina de cabelos soltos muito ao gosto da Arte Nova, envolta num quarto de lua crescente e em raios solares, representando a lua e o sol.
O relógio assenta em quatro pés altos que formam um arco de onde se suspende um sino – com uma função meramente decorativa já que não tem badalo, junto ao sino, um putti inclina-se com a intenção de o percutir – o martelo porém, não existe nesta peça (que foi adquirida sem este elemento).
Sobre a base em mármore de Brecha Capraia, desenvolve-se uma composição naturalista com um pequeno curso de água que corre entre rochedos e plantas aquáticas. Nesta base destaca-se assinatura do marceneiro: F. LINKE.
A elaborada decoração deste peça constitui uma referência ao passar do tempo, desde a figura de Cronos a coroar a composição (que, com a sua gadanha, ceifa as vidas), até às alusões à noite e ao dia (globo celeste, lua, raios de sol, galo) e ao constante ciclo de renovação da vida transmitido pela macieira carregada de frutos (que nascem, amadurecem e apodrecem) e pela composição vegetalista na base aludindo às águas e à vegetação.
Embora este relógio tenha sido mostrado ao público pela primeira vez na Exposição de Paris de 1900, parece provado que a colaboração entre Linke e Messagé para o desenvolvimento desta peça teria começado quase uma década antes, já que existe um desenho publicado por Messagé no seu álbum de 1890 e uma fotografia do relógio no seu estúdio na mesma época.
Após o sucesso alcançado na mostra de Paris – Dambreuse dirá deste relógio que é a obra-prima do conjunto em exposição -, Linke realizou várias cópias do mesmo, provavelmente um total de treze, duas depois de 1910, sendo que em 1904 já tinha vendido três exemplares, um deles, logo depois da exposição. (Conheça uma das cópias aqui: https://www.youtube.com/watch?v=1-Rbtr-1yPY).
Fotografias de época mostram-nos que exemplares como o da coleção estiveram expostos na Exposition des Industries du Mobiliaire realizada no Grand-Palais de Paris em 1902, na International Exhibition que teve lugar em St. Louis, no Missouri (EUA) em 1904 e na Exposição Universal de Liège ocorrida no ano seguinte (1905).
Em relação aos mecanismos destes relógios, alguns são assinados com as iniciais de Étienne Maxant, relojoeiro que trabalhou entre 1880 e 1905 na rue Saintonge e que fornecia habitualmente peças para os relógios realizados por Linke porém o da Casa-Museu está assinado pela Casa Dufaud de Paris, relojoeiro igualmente a trabalhar na rue Saintonge desde 1870.
Proveniência
Estas duas peças foram feitas originalmente para a Exposição Universal de Paris de 1900.
De acordo com os registos do investigador inglês, Christopher Payne, perito nos arquivos Linke, o móvel do acervo Medeiros e Almeida foi adquirido pelo financeiro inglês Solomon Barnato “Solly” Joel (1865-1931) logo em 1901, que também adquiriu um dos relógios desta tipologia, não se sabendo ao certo se é este exemplar.
Tanto o móvel como o relógio foram adquiridos para António Medeiros e Almeida, através do antiquário Lopo (Wolf) Steinhardt (Beco da Bicha, nº3, Lisboa), que atuava como seu intermediário, na M. Graus Antiques (125, New Bond Street), um antiquário de Londres, a 3 de fevereiro de 1971, por 9.700 libras. As peças foram transportada para Portugal, no navio Courland, em Março de 1971.
Nota: Um móvel de aparato, da mesma tipologia, foi vendido em leilão do Hotel Drouot, Paris, a 3 de julho de 1996, por 2,1 milhões de francos franceses.
Nota: A Casa-Museu agradece a colaboração do investigador Christopher Payne, autor e perito em mobiliário do século XIX, que visitou a coleção em 2013, tendo fornecido valiosas informações provenientes do arquivo do marceneiro.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia:
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Recursos online:
Christopher Payne & Linke Furniture – François Linke (1855-1946) The Belle Epoque of French Furniture http://www.linkefurniture.com/
Tholozany, P.; The Expositions Universelles in Nineteenth Century Paris – in: Brown University Library Center for Digital Scholarship, 2011 – http://library.brown.edu/cds/paris/worldfairs.html#de1900
Chambre Nationale des Experts Spécialisés en objets d’art et de collection – CNES – Expositions virtuelles : Zwiener et Linke au Musée Medeiros e Almeida – https://exposition-experts-cnes.fr/exposition-zwiener-et-linke-au-musee-medeiros-e-almeida/
François Linke (1855-1946)
1900
Paris, França
Carvalho, pau-rosa, pau-violeta, bronze e mármore Gris d'Ardennes (França)
Alt. 133 x Larg. 74 cm