O gomil:
O gomil (hu’ping) é um dos principais exemplares pertencente a um restrito núcleo de porcelana da China chamado ‘primeiras encomendas’; peças encomendadas nos primeiros anos após a chegada dos Portugueses à China em 1513, cuja forma e decoração chinesas convivem com simbologia real e nobre portuguesa.
A tipologia é originária do Médio Oriente, trata-se de um jarro em metal, destinado às bebidas de infusão, O gomil, cujo nome significa “jarro de boca estreita”, é um objeto destinado às bebidas de infusão sendo a sua tipologia inspirada em modelos de peças metálicas persas, chegadas à China através dos contactos da Rota da Seda e logo adotada desde a Dinastia Yuan (1279-1368) na prática diária.
Pela sua datação e pela simbologia real, este importante gomil é um marco na história do comércio da porcelana da China com o Ocidente, neste caso, com Portugal.
A decoração:
A decoração, a azul-cobalto sob o vidrado ligeiramente azulado, alia elementos decorativos chineses e portugueses a uma tipologia típica do mercado islâmico denunciando uma fusão de culturas. A pintura a azul varia com o correr do pincel, criando zonas mais carregadas e zonas mais aguadas. Executado no torno, o corpo foi torneado em duas partes cuja junção é percetível a meio do bojo.
Em argila branca e espessa, o gomil é formado por bojo periforme assente em pé alto oco e colo cilíndrico alongado decorado na base com faixa de cabeças de ruyi e a meio com uma banda de chamas ondulantes, a borda, de seção lisa, apresenta faixa de gregas. O bico em ‘S’ alongado parte do bojo sendo ligado ao colo por uma ponte, as duas extremidades são decoradas com cabeças de dragão moldadas em relevo, lembrando trabalhos de ourivesaria. A asa, algo rígida, parte do colo terminando no bojo numa original cauda de peixe bipartida, no topo molda-se um orifício que serviria para a suspensão (por corrente de metal) de uma tampa em cerâmica (desaparecida).
O bojo, decorado na base com painéis de folhas lótus simplificados, apresenta nas duas faces, inscrito em medalhão circular, o único motivo decorativo português; uma esfera armilar com pé e base atravessada por uma faixa com inscrições. Este motivo decorativo era o emblema do rei D. Manuel I (1469-1521), pelo que a sua presença indica que o destinatário da peça seria o monarca. O pintor chinês, que teria como modelo uma gravura ou um ‘Livro de Horas’ levados pela tripulação das caravelas, encontrou algumas dificuldades na sua compreensão, nomeadamente nas inscrições da faixa que atravessa a esfera armilar, que surgem mal grafadas e onde deveria figurar o mote de D. Manuel I: “IN DEO SPERO” (Espera em Deus). Segundo outras interpretações – talvez mais pertinentes se atentarmos aos elementos constantes da faixa em nada aparentados com letras -, na faixa poderiam figurar os símbolos do zodíaco ou mesmo as iniciais do monarca, conforme também se verifica em exemplos das divisas de D. Manuel I patentes em iluminuras da ‘Leitura Nova’ e nas ‘Ordenações Manuelinas’.
Na base inscreve-se a marca do reinado Xuande (1426-1435) em quatro carateres alinhados verticalmente, em escrita regular kaishu: Da Ming Xuande nian zhi (feito no período Xuande da grande dinastia Ming). Sendo a peça do reinado Zhengde, a marca revela-se apócrifa, denunciando um uso em voga no século XVI, em que os oleiros marcavam as peças com marcas de reinados anteriores, reconhecidos pela qualidade da porcelana.
Proveniência:
A peça foi adquirida pelo colecionador em leilão da Sotheby’s, em Londres, de 7 de fevereiro de 1967, lote 94, pelo preço de 5.000 libras estrelinas.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
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Bibliografia:
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Portugal encontra a China. Testemunhos de uma convivência, 2005
Prov. Fornos de Zhangzhou Fornos de Jingdezhen ?
Dinastia Ming, Reinado Zhengde (1506-1521), c. 1519-1521
Província de Fujian, China Província de Jiangxi ?
Porcelana da China de exportação
Alt.: 26,4cm Diâm. boca 7,6cm Diâm. base: 9,5cm