Conjunto escultórico representando a cena bíblica da deposição de Cristo no túmulo em madeira talhada a meio relevo, apresentando vestígios de dourado, policromia e puncionado e desenvolvendo-se em dois registos horizontalizantes, o que aponta para um trabalho já quinhentista. O registo inferior é composto pelas figuras de Cristo deitado no túmulo e Maria Madalena ajoelhada e o registo superior é composto pelas quatro figuras de pé; José da Arimateia, Maria, João e Nicodemos. A composição estrutura-se à volta das seis figuras; o corpo de Cristo morto, seguro pelo sudário é depositado no túmulo pelas figuras masculinas dos lados da composição; José da Arimateia (à esquerda) e Nicodemos (à direita), a acompanhar cena, na frente do túmulo, Maria Madalena ajoelha-se amparando o braço direito de Jesus que descai do lençol. Atrás do túmulo surgem, em figuras de meio corpo, a Virgem Maria e São João.
José da Arimateia, Nicodemos e Madalena apresentam-se vestidos à maneira flamenga da corte do séc. XVI, com diversos pormenores realistas, tão ao gosto flamengo. Os homens usam o característico chapéu à ‘bourguignone’, túnica comprida e manto, note-se igualmente a chinela em bico de Nicodemos – um ‘escarpin’ feito de cordovão (couro de cabra) e Maria Madalena um vestido decotado no peito, de mangas tufadas, um colar ao pescoço com pendente e um elaborado ‘hennin’; uma espécie de chapéu que se usava por cima da coifa decorado com joias e pérolas tendo duas saliências laterais para ocultar os cabelos que eram penteados em duas tranças presas aos lados da cabeça e que podia assumir diversas formas; cónico, truncado, borboleta, coração e garfo.
Escarpin / Hennin / Sudário
Esta obra apresenta uma poderosa forma plástica na expressão dos rostos que espelham desgosto, na postura e caracterização dramática das figuras, no volume dos corpos, na definição das vestes e no movimento dos panejamentos (apesar das pregas algo hieráticas) que transmitem vida e emoções aos personagens; José de Arimateia e Nicodemos cumprem desgostosos a sua tarefa – note-se o pormenor do sudário a ser agarrado pelas mãos de Nicodemos -, o corpo inanimado de Cristo, marcado pela violência das sevícias infligidas – coroa de espinhos e chagas sangrando -, amparado pelo sudário, jaz encurvando-se e descaindo a cabeça, Maria Madalena emociona-se e lança-se aos pés de Jesus morto e João comove-se com a cena amparando Maria que espelha no rosto o desgosto de Mãe. O aspeto formal da composição era ainda reforçado pelo trabalho de policromia (do qual só restam vestígios) que emprestava à obra mais realismo e dramatismo, para além do dourado – sempre associado à alusão de divindade – é notório o trabalho de lavrado e puncionado nas orlas dos mantos de José da Arimateia e Nicodemos ou no vestido e adereços de Maria Madalena.
Note-se que estes personagens – na realidade pessoas de condições humildes – trajam à moda da corte flamenga apontando para o contexto – certamente erudito – em que esta encomenda foi produzida. A proveniência da peça é desconhecida, podendo eventualmente tratar-se de uma encomenda para o mercado português.
Curiosa é ainda a representação de Maria Madalena que, com as suas belas vestes profanas e preocupações terrenas com o adorno – o colar e o elaborado toucado – indica a sua condição de mulher comum, versus a de Maria, mãe de Jesus que traja panejamentos indistintos remetendo para a sua condição divina.
O chapéu ‘a la bourgignone’:
O chamado chapeirão ou chapéu ‘a la bourgignone’ (à borgonhês) era um tipo de chapéu masculino, geralmente preto, com abas largas e cachecol incorporado (próprio para o clima frio do Norte da Europa) usado por Filipe o Bom e a sua corte flamenga. Filipe III duque de Borgonha, (1396- 1467), um poderoso senhor feudal era casado em terceiras núpcias com a infanta portuguesa, D. Isabel (mãe de Carlos o Temerário), filha de D. João I. As relações diplomáticas e comerciais entre a Flandres e Portugal levaram à divulgação do gosto flamengo na moda peninsular. O Infante D. Henrique é normalmente representado com este tipo de chapéu.
A Devotio Moderna:
A Devotio Moderna foi um movimento associado ao Humanismo Cristão, de renovação espiritual da Igreja Católica que se desenvolveu nos séculos XIV e XV nos Países Baixos e que tinha como objetivo a redescoberta das práticas pias genuínas e o estabelecimento de uma atitude individual perante a fé e a religião. O mote era a imitação da vida de Cristo numa tentativa de promover a aproximação pessoal a Deus; uma pretensão audaz para a época! Nesse sentido, a meditação e a devoção particular foram muito estimuladas sendo uma das formas de oração privilegiada a utilização de Livros de Horas. Outra das formas era a oração frente a imagens, maquinetas ou oratórios particulares, o que levou ao grande desenvolvimento da produção de imagética religiosa, nomeadamente na região da Flandres.
Centros produtores:
A vasta produção de escultura devocional flamenga do período do gótico final – entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI -, divide-se em três cidades integrantes do Ducado do Brabante, cada uma com suas características formais e estilísticas; Malines, Bruxelas e Antuérpia. As três cidades, que exportavam para toda a Europa, marcavam as suas peças denunciando o sistema de corporações dos ofícios:
A produção de Malines caracteriza-se por imagens de pequena escala (para serem integradas em maquinetas ou oratórios), estereotipadas nos traços físicos e vestes (produção em série), representando a Virgem com o Menino, o Menino Jesus e Santos (em Portugal existem inúmeros exemplares). O centro de Bruxelas era especializado na produção retabular, fazendo igualmente imaginária individual, mas de maiores dimensões havendo alguma cooperação entre estas duas oficinas que, por vezes, dificulta a identificação das imagens. A escultura de Antuérpia – a mais erudita – afirma-se pela produção de retábulos, segundo Maria João Vilhena de Carvalho (2002):
“…. Nas expressões e nas atitudes das figuras esculpidas, as oficinas de Antuérpia imprimiam habitualmente algumas tónicas caricaturais para que elas pudessem distinguir-se individualmente entre a multidão de personagens sagrados que povoava as caixas dos retábulos, chegando a integrá-las com algum sabor dramático nas narrativas sujeitas aos preceitos iconográficos correntes.”
Parece esta frase descrever o conjunto escultórico da Casa-Museu nas características acima apontadas…, a ausência de marcas e a falta de um exame pericial levam a que não se possa atribuir a peça a um dos centros produtores, não deixando, no entanto, de se poder afirmar que estamos em presença de uma peça de elaborada feitura.
As dimensões do conjunto e as terminações planas, algo abruptas, dos lados da peça sugerem a hipótese de este conjunto fazer parte integrante de um retábulo historiado que poderia ser dedicado à temática mariana das ‘Sete Dores de Maria’ invocando um dos episódios desta narrativa. A invocação a Nossa Senhora das Dores ou Mater Dolorosa é uma devoção mariana difundida na Europa Central no século XIV que fixa simbolicamente as sete dores de Maria correspondentes a outros tantos episódios narrados pelo Evangelho. A invocação foi inscrita oficialmente no calendário litúrgico (15 de setembro) pelo Papa Pio VII em 1815.
As sete dores de Nossa Senhora são:
Fontes Iconográficas:
O episódio da ‘Deposição no Túmulo’, insere-se no Ciclo da Paixão de Cristo relatada pelos quatro evangelistas no Novo Testamento, contando a descida do corpo de Jesus da Cruz após a crucificação e posterior sepultamento:
“…40Tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no em ligaduras, juntamente com os perfumes, segundo a maneira de sepultar usada entre os judeus. 41No lugar em que Ele tinha sido crucificado havia um horto e, no horto, um túmulo novo, no qual ninguém fora ainda depositado. 42Por causa da Preparação dos Judeus, como o túmulo estava perto, foi ali que puseram Jesus.” (Jo 19:40-42)
A narrativa desenrola-se numa sexta-feira – a Sexta-feira Santa. Posto que no dia seguinte era sábado, os Judeus pediram às autoridades romanas que, ao contrário do costume, se retirassem os corpos do Gólgota para serem sepultados (Gólgota significa Cálvario em aramaico – nome dado à colina onde Jesus foi crucificado, o nome em latim – Calvaria – relaciona-se com a forma geográfica do monte que se assemelha a um crânio). Assim, acelerou-se a morte dos ladrões partindo-lhes as pernas e Jesus, apesar de já estar morto, foi trespassado com uma lança no lado. Procedeu-se então à descida da Cruz e posterior sepultamento. (Jo 19:31-37). As figuras que participam nesta narrativa são geralmente seis:
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
AA.VV. ; O Brilho do Norte – Escultura e Escultores do Norte da Europa em Portugal, Época Manuelina, Lisboa: Comissão Portuguesa dos Descobrimentos, 1997
AA.VV., CURVELO, Alexandra; MATOS, Maria Antónia Pinto de; CARVALHO, Maria João Vilhena de (Coord.); Da Flandres e do Oriente, Lisboa: Instituto Português dos Museus, 2002
VILAÇA, Teresa, Um Tesouro na Cidade, Lisboa: Fundação Medeiros e Almeida, 2002
Fonte:
Bíblia Sagrada, Novo Testamento, Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1966
Desconhecido
Séc. XVI (início)
Flandres / Brabante – Bruxelas (?), Antuérpia (?)
Madeira dourada e policromada
Alt. 42cm x Larg. 14cm