Biografia:
Jean-Baptiste Pillement, bisneto, neto, filho e sobrinho de pintores, foi um pintor de paisagens, de marinhas, de género e de flores mas também aguarelista, desenhador e gravador. Nasceu em Lyon a 24 de maio de 1728 e morreu na mesma cidade a 26 de Abril de 1808. O seu filho – Victor – será um desenhador e gravador de talento em Lyon. Notável e versátil artista em vida, nunca lhe faltou trabalho nem clientes por onde passou porém morreu arruinado e incógnito ficando esquecido pela historiografia artística durante largos anos. Só em 1928 se realizou em Paris uma grande exposição comemorativa dos 200 anos do seu nascimento.
Não se conhecem detalhes de formação académica, sabe-se unicamente que terminou os seus estudos em Paris tendo trabalhado na Real Manufatura de Gobelins como desenhador. Desde muito novo viajou pelas cortes europeias onde foi desenhador, pintor e decorador, nomeadamente em Madrid, Lisboa, Londres, Paris, Bona, Turim, Milão, Roma, Avinhão, Lyon, Viena e Varsóvia sendo conhecido como o ‘vagabundo da arte’. Em Varsóvia foi nomeado ‘Primeiro Pintor do Rei da Polónia’ (1767), em Paris foi ‘Pintor da Rainha Maria Antonieta’ (1778) – o único e fugaz reconhecimento em território francês – por lhe terem sido encomendadas três obras para o Petit Trianon. Pillement distinguiu-se ainda no género chinoiseries que desenvolveu entre 1750 e 1770 na decoração mural, de mobiliário e no desenho têxtil. A partir de 1755 dedica-se quase exclusivamente à pintura de paisagem.
Quanto à sua primeira estadia em Portugal sabe-se que em 1755 já cá se encontrava, a historiografia portuguesa identifica a razão da sua vinda como motivada por um contrato com a Real Fábrica das Sedas. Esta suposição baseia-se num único documento identificado por Sousa Viterbo (citado por JESUS, 1933, pp.12-14); uma estranha denúncia apresentada à “Mêsa das Denúncias da Inquisição”, em 18 janeiro de 1755 por um compatriota seu, acusando “…Pillement debuxador que foi da fabrica da seda, e pintor da mesma nesta corte…”, como “…pedreiro livre, sodomista, descrente dos santos e murmurador dos misterios e sentenças da Igreja…”, esta acusação despoletou a sua providencial saída do país antes do terramoto. Faz sentido a eventual contratação deste francês – sem, porém, qualquer fama na época – pela sua experiência anterior numa das mais famosas manufaturas têxteis de então. Não era estranha a vinda a Portugal de artistas estrangeiros que, desde o reinado de D. João V, chegavam atraídos pela hipótese de trabalho numa corte que alardeava o seu fausto pela Europa. O próprio D. João V mandou vir de França artistas como o ourives Germain (1673-1748) e o pintor Quillard (1700-1733), este nomeado ‘Pintor do Rei’ em 1727. Na época que Pillement chegou a Lisboa eram as iniciativas pombalinas, nomeadamente no apoio ao desenvolvimento industrial e à formação profissional, que traziam especialistas a Portugal destinados a dar know how às novas fábricas como a Real Fábrica das Sedas (já fundada no período joanino mas renascida em 1730-31 em Santa Catarina pela iniciativa do francês Robert Godin e transferida para o Rato em 1740), dos relógios (Fábrica Real), a Real Fábrica de Louças do Rato, o Arsenal Real do Exército, a Régia Oficina Tipográfica ou a Casa da Moeda.
Voltou a Portugal em 1766 e entre 1780 e 1786, o seu período mais fecundo, altura em que abriu com sucesso a Escola de Desenho no Porto onde teve como alunos Domingos Francisco Vieira e o seu filho Vieira Portuense e lecionou também em Lisboa onde teve como discípulos Joaquim Marques (1755-1822), Joaquim Costa e Joaquim Mellissent. Quando partiu organizou uma ‘lotaria’- leilão das suas obras em que os bilhetes foram muito caros para a época, o que revela a alta cotação do pintor bem como o mal-estar entre os artistas contemporâneos.
Em Portugal existem inúmeros testemunhos da(s) sua(s) passagem(ns); são-lhe atribuídas pinturas de teto no Palácio Fronteira e frescos nos Palácios de Seteais e do Ramalhão em Sintra e as suas telas estão presentes em diversos Museus e coleções particulares. Foi o Dr. Ricardo do Espírito Santo Silva (1900-1955) que ‘redescobriu’ este autor, constituindo uma grande coleção das suas obras (algumas expostas no Museu de Artes Decorativas – FRESS), chamando a atenção dos colecionadores portugueses para o excecional valor do petit maître lionês como lhe chamava. Das suas obras mais reconhecidas no estrangeiro, destacam-se as cinco vistas dos jardins de Benfica, datadas de 1785 e expostas no Museu de Artes Decorativas de Paris. A partir de 1768 data as suas obras.
A obra:
Pintor de grande minúcia, graciosidade e fantasia, usou os óleos mas também o guache, a aguarela e o pastel e pintou sobre vários suportes como tela, cartão, estuque, mobiliário e mesmo sobre os famosos botões de marfim para casaca expostos no Museu dos Coches e na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva. Nas suas obras está patente o gosto por uma descrição elaborada, realista (verdadeira), onde a paisagem surge juntamente com a marinha, as vistas topográficas e a pintura de género, temáticas que eram procuradas pela clientela aristocrática e burguesa da segunda metade do século XVIII, numa expressão de abertura em relação à consideração, do início do século XVIII da paisagem como um género menor. A nova mentalidade regista o renascer do apelo do mundo natural (o mesmo se verificou na Holanda do século XVII devido à emergência de um público mercantil), a pintura de paisagem tornou-se uma comodidade urbana, adquirida para ser admirada dentro de casa pelo seu poder descritivo e encanto de uma fuga para paisagens desconhecidas e diferentes condições climatéricas. Fica para trás a paisagem idealizada, os esquemas típicos do classicismo propostos pela Academia.
A arte de Pillement carrega o modo de pintar francês na tradição da pintura de temas galantes (fêtes galantes) e pastorais de Watteau (1684-1721), François Boucher (1703-1770) e Fragonnard (1732-1806) mas também da pintura de Joseph Vernet (1714-1789) cuja obra foi fundamental para o cimentar do gosto pela paisagem. A sua observação da natureza não era directa pois trabalhava no estúdio, mas o resultado do estudo de outros autores (Lorrain, Chardin, Poussin, Ruysdael e Hobbema) e de estampas coevas trabalhado pela experiência pessoal das suas inúmeras viagens juntamente com uma imaginação inspiradora, transmitem uma relação sincera para além de uma grande facilidade técnica apesar da falta de aprendizagem específica e da tipologia algo fácil e estereotipada.
O seu sentimento – numa atitude romântica avant la lettre – perpassa para a tela na imaginação e no equilíbrio e contraste das cores que, apesar de nada terem de novo, são aplicados de modo a conseguirem um interessante jogo de sombras e luz. É característico o trabalho da paleta de azuis que esclarecem as diferentes fases do dia e emprestam um encanto às invulgares paisagens noturnas. É ainda típico o uso de personagens populares como pastores, lavadeiras, crianças, pescadores, viajantes e de animais semeados pelas intricadas paisagens onde imperam as árvores, os rochedos, a água, os caminhos, as pontes e as ruínas em diferentes horas do dia e estações do ano numa síntese de paisagem e género.
Em Portugal conheceu o trabalho de Quillard e foi conterrâneo de Alexandre-Jean Nöel (1752-1834) e de Nicola Delerive (1755-1818) cujas obras se desenvolvem no mesmo sentido. O seu sucesso em Portugal explica os vários seguidores e imitadores como Joaquim Marques que virá a fazer a ponte para o paisagismo nacional da centúria seguinte.
Em análise:
Duas obras do mesmo ano, pintadas com cerca de 65 anos em Pézenas, uma pequena comuna francesa na região do Languedoc-Roussillon (departamento de Hérault na fronteira com Itália), para onde se mudou em 1789 após a Revolução Francesa, com medo de – vivendo em Lyon, uma cidade que sempre tinha sido realista – poder sofrer represálias pelas suas ligações às diferentes cortes. Desta época – com idade avançada e sem grandes recursos financeiros – datam as suas paisagens mais atmosféricas carregadas de sensibilidade, expressando o seu amor à natureza e revivendo as paisagens percorridas ao longo da sua vida errante que confirmam a qualidade deste artista original que imprimiu forte personalidade ao seu trabalho.
‘Paisagem noturna com pastores’:
Tela típica deste período representando uma paisagem pedregosa e com árvores, junto a um curso de água. Em primeiro plano, sensivelmente ao centro, representa-se uma família de pastores; o homem sentado apoia-se a um cajado e a mulher em pé segura uma criança ao colo. Os personagens recortam-se – numa escala inusitada e tornando-se os protagonistas da composição – numa plataforma rochosa e bem iluminada pelos últimos raios de sol que projetam as suas sombras. O ambiente é de penumbra dado por um céu carregado de nuvens em diferentes tons de azuis que emprestam uma atmosfera de semiobscuridade, quase noturna. Note-se o lado esquerdo mais carregado com azuis mais fortes e a aberta e suavização das nuvens à direita. Junto ao grupo, uma vaca, uma ovelha e duas cabras pastam e em plano recuado, um outro personagem, de costas parece afastar-se.
A enquadrar a composição surge à esquerda uma árvore retorcida e invadida por musgo e à direita um curso de água e outra formação rochosa onde se ergue uma construção e árvores também parcialmente banhadas pelo sol. É ainda importante o trabalho pictórico da límpida água que reflete a paisagem e se torna luminosa pelos pequenos apontamentos de luz dados por discretas pinceladas brancas. O lençol de água prolonga-se até aos últimos planos de tons plúmbeos confundindo-se com a linha de árvores do horizonte e o céu anunciador de tempestade.
‘Paisagem com lavadeiras’:
Nesta paisagem típica do período de Pézenas (tipo de campo rude e pedregoso) destaca-se, à esquerda da composição, um grupo de três personagens com duas lavadeiras e um pastor com algumas vacas e cabras. Os personagens encontram-se em cima de uns pedregulhos pontuados por vegetação rasteira junto a um curso de água que corre calmamente refletindo em tons acinzentados a outra margem onde se ergue uma humilde construção. Junto à lavadeira que se encontra em pé, a água em primeiro plano reflete o esverdeado das rochas salientando-se novamente os pontos luminosos. À esquerda da composição recorta-se – de um fundo arborizado e entre pedras, musgo e arbustos rasteiros -, uma árvore de dois ramos cuja folhagem ganha vida com apontamentos de dourado.
Nota:
As iniciais da datação de ambas as obras – “L’an,3 D,L,R” significam: Ano 3 De La Révolution – ou seja o ano 3 do Calendário Revolucionário francês que corresponde ao período entre 30 de Setembro de 1794 e 30 de Agosto de 1795. As ligações de Pillement às cortes europeias e o consequente medo de represálias levaram-no a ser um Citoyen muito cumpridor.
O calendário revolucionário foi imposto em França em 5 de outubro de 1793 tendo sido abolido por Napoleão em 31 de dezembro de 1805 restabelecendo-se o calendário gregoriano.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia:
AA.VV.; Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesa – Guia, Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 2001
GORDON-SMITH, Maria; Pillement, Cracow: 2006 JESUS, Júlio; Artistas Estrangeiros em Portugal, O Pintor Jean Pillement, Lisboa: Tipografia Gonçalves, 1933
MITCHELL, Peter; Jean Pillement Revalued, The Apollo Magazine, Londres: Jan 1983
PAMPLONA, Fernando, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses ou que trabalharam em Portugal, 2ª ed., Porto: Livraria Civilização, 1987-88
PILLEMENT, Georges; Jean Pillement, Paris: Jacques Haumont, 1945
SALDANHA, Nuno; Jean Pillement (1728-1808) e o Paisagismo em Portugal no século XVIII, Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 1996
SILVA, Ricardo do Espírito Santo (coord.); Arte de Ontem e de Hoje, DEMETRESCO, Mihail; Jean Pillement, Lisboa: Edições R.E.S., 1948
Jean Pillement (1728-1808)
Out 1794-Ago1795
França
Óleo sobre tela
"Paisagem nocturna com pastores" 43cm. x 67 cm "Paisagem com lavadeiras" 43cm. x 76 cm.