A coleção de António de Medeiros e Almeida integra um importante núcleo de 210 leques, entre os quais se destaca um leque com uma folha comemorativa dos casamentos de duas princesas de Saboia: no anverso, o de D. Maria Adelaide, princesa de Saboia (1685-1712), com D. Luís, delfim de França e duque da Borgonha (1682-1712), celebrado em 1697; no reverso, o de D. Maria Francisca Isabel de Saboia (1646-1683) com o príncipe regente D. Pedro, futuro D. Pedro II de Portugal (1648-1706), em 1668.
Anverso – “A visita do duque da Borgonha à princesa de Sabóia”
No anverso da folha encontra-se representada a visita do duque da Borgonha à princesa de Saboia, presumivelmente nos jardins de Versalhes.
A figura de D. Luís possui uma inscrição que o identifica como “Monseig.r Le Duc” – denotando-se, assim, a ausência de uma legenda referente à princesa. A cena é também identificada por uma inscrição à direita da composição: “Monseig.r Le Duc de Bourgogne rendant visitte a Madame La Princesse de Savoye” (Monseigneur o Duque de Borgonha visita a Madame Princesa de Saboia).
A imagem é evocativa, portanto, não deste casamento, celebrado em 1697, mas antes do noivado, em 1696 – caso contrário, Maria Adelaide seria identificada como duquesa, em vez de princesa.
De igual modo, D. Maria Adelaide é acompanhada por uma figura feminina, em pé e à sua direita, identificada através de uma legenda: “La Duchesse de Lude”. Marguerite-Louise Suzanne de Béthune (c. 1643-1726), casada em segundas núpcias com Henri de Daillon, Duque de Lude (1622-1685), foi dama da rainha Maria Teresa da Áustria de 1667 a 1683 e, já viúva, primeira-dama da princesa Maria Adelaide de Saboia, de 1696 a 1712.
À direita da composição figuram quatro outras personagens, em segundo e terceiro plano. As três figuras na linha da frente poderão ser interpretadas como um séquito de cortesãos, ou, talvez mais plausivelmente, como a repetição das figuras principais (da esquerda para a direita: Marguerite de Béthume, D. Maria Adelaide e D. Luís), dadas as semelhanças da sua indumentária. A figura em terceiro plano, de cabeleira branca, poderá representar Luís XIV (1638-1715), avô de D. Luís, duque de Borgonha. Ao fundo e ao centro da composição, distinguem-se ainda as silhuetas de duas outras figuras, junto a uma fonte.
As três figuras centrais da imagem e a legenda que a descreve relacionam-na com uma gravura da autoria de Nicolas Arnoult (at. 1650-1722), desenhador, gravador e editor parisiense, especializado em gravuras de moda, retratos e alegorias. Esta imagem é acompanhada pela legenda “Monseig.r le Duc de Bourgogne rendant visitte à Madame la Princesse de Savoye à sa toillette”, que a identifica como a fonte iconográfica do anverso do nosso leque. Datada de novembro de 1697, a gravura confirma igualmente que esta representação é comemorativa do noivado, e não do casamento dos seus protagonistas, em dezembro de 1697.
A principal diferença entre as duas imagens reside nos cenários que lhes servem de fundo – na gravura, a “visita” do duque à princesa tem lugar numa câmara interior, onde a princesa se encontra sentada junto ao seu toucador, com um espelho e alguns utensílios de toilette. Contudo, a disposição das figuras, os seus gestos e inclusivamente a cadeira de toucador onde a princesa se encontra sentada, são idênticos nas duas imagens.
“Monseig.r le Duc de Bourgogne rendant visitte à Madame la Princesse de Savoye à sa toillette”. Nicolas Arnoult. Paris, 1697. Gravura. Bibliothèque nationale de France, département Estampes et photographie, RESERVE FOL-QB-201 (72).
Reverso – “Caça na Tapada, em Lisboa”
A folha do reverso deste leque apresenta uma imagem alusiva ao casamento do príncipe regente de Portugal, D. Pedro (1648-1706), com D. Maria Francisca Isabel de Saboia (1646-1683), celebrado em 1668.
Ao centro encontra-se representada uma caçada na Tapada Real de Alcântara, em Lisboa. Em primeiro plano, destaca-se um coche conduzido por três parelhas de cavalos brancos, a partir do qual, presumivelmente, Maria Francisca assiste à caçada. Esta decorre ao longo da margem do rio Tejo, observando-se, à esquerda do observador, dois veados perseguidos por cães e batedores apeados, seguidos dos cavaleiros. Ao fundo, avista-se a “outra banda”. A cena é encabeçada por uma filactera identificativa da temática: “CHASSE. DANS. LA. TAPADA. a Lisbonne” (Caça na Tapada em Lisboa).
Ladeando a reserva central, sobre um fundo encarnado com motivos vegetalistas a dourado, encontram-se duas filacteras de maiores dimensões, onde se lê: “DIDIÉ. A. S. M. LA. REINE. MARIE / FRANÇOIS. ELISABETH. DE SA / VOYE. A L’OCCASION. DE. SON / MARIAGE. AVEC. S. A. R. DOM / PIERRE. PRINCE. REGENT. DE // PORTVGAL. LE. 3. MARS. 1668 / L’EVÊQVE. DE. TARGA. DOM / NA. LA. BENEDICTION. EN / VERTV. DV. BREF. CONFIR / ME. PAR. LE PAPE. INNOCENT” (Dedicado a Sua Majestade a Rainha Maria Francisca Isabel de Saboia por ocasião do seu casamento com Sua Alteza Real D. Pedro, Príncipe Regente de Portugal, a 3 de março de 1668, o Bispo de Targa deu a bênção em virtude do mandado confirmado pelo Papa Inocêncio), inscrição que suscita algumas questões.
De seguida, no sentido das guardas do leque, encontram-se simetricamente representadas as armas de Saboia, em lisonja, e as de Portugal, estas últimas sem completa conformidade com o brasão da época em causa.
Nas extremidades laterais da folha figuram duas cartelas adicionais, lendo-se, na da esquerda, uma reiteração da data “3 Mars 1668” e, na da direita, “A. S. M. / La Reine / S. T. H. S. NA” (À Sa Majesté La Reine / Son trés humble serviteur / NA).
Armação
A armação, em marfim profusamente esculpido e vazado, com aplicação de bronzes dourados de duas tonalidades, apresenta no colo três reservas: ocupando as três varetas centrais, um medalhão oval esculpido e dourado onde figura um casal galante com uma criança, sobre um fundo vazado em padrão de finas estrias paralelas; ladeando-o encontram-se duas reservas em simetria, com duas pombas douradas sobre um fundo vazado em grillé. A zona superior do colo exibe grinaldas vegetalistas e florais, suspensas por figuras infantis aladas. O topo das guardas apresenta vestígios de lâminas de mica sob o trabalho vazado do marfim, que representa músicos tocando o alaúde. O pescoço das varetas é liso, e o seu rebite metálico tem cravados, de cada lado, vidros incolores.
Esta armação integra-se na produção francesa característica da segunda metade de setecentos, na qual são frequentemente utilizados como materiais de suporte o marfim, a tartaruga ou a madrepérola.
Conclusões
Consideramos que este leque terá provavelmente sofrido uma remontagem durante o século XIX, ou mesmo no século XX, resultando no aproveitamento de uma armação francesa do século XVIII e de uma folha dupla de temática comemorativa.
Pode mesmo tratar-se de uma reprodução de duas folhas mais antigas, porventura a título comemorativo dos centenários dos acontecimentos mencionados – talvez até dois séculos depois dos casamentos das princesas retratadas, aquando da subsequente ascensão de uma princesa de Saboia ao trono português: D. Maria Pia (1847-1911).
Proveniência
Este leque foi adquirido por António de Medeiros e Almeida ao antiquário António Costa, em Lisboa, em data desconhecida.
Joana Ferreira
Museu Medeiros e Almeida
[1] Marguerite-Louise Suzanne de Béthune (c. 1643-1726), casada em segundas núpcias com Henri de Daillon, Duque de Lude (1622-1685), foi dama da rainha Maria Teresa da Áustria de 1667 a 1683 e, já viúva, primeira-dama da princesa Maria Adelaide de Sabóia, de 1696 a 1712.
[2] Desenhador, gravador e editor parisiense com período de atividade conhecido entre 1650 e 1722, especializado em gravuras de moda, retratos e alegorias.
[3] Bibliothèque Nationale de France, Département Estampes et Photographie, RESERVE FOL-QB-201 (72). https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84072799.r=nicolas%20arnoult?rk=1630909;2#.
[4] Assinale-se que, enquanto no primeiro catálogo este leque se encontra denominado “The apotheosis of the line of Louis XIV”, datado de cerca de 1697, e as figuras ao centro identificadas como D. Luís e D. Maria Adelaide, na publicação posterior o mesmo leque é intitulado “La victoire sur l’hérésie” e datado de cerca de 1685 a 1690, data anterior ao casamento dos príncipes. Tendo em conta a absoluta semelhança entre as imagens reproduzidas, consideramos que estas disparidades se devam a divergências de opinião entre os autores. De igual modo, a primeira autora referencia este leque como pertencente a uma coleção privada, em França. Por ocasião da segunda exposição enunciada, este encontra-se catalogado como pertencente à coleção do The Fan Museum (N.º inv. 2000 HA), deduzindo-se, portanto, que este museu o tenha adquirido entre as duas exposições (?). Pamela Cowen, A fanfare for the Sun King: unfolding fans for Louis XIV, 44-47; José de Los Llanos e Georgina Letourmy-Bordier, Le siècle d’or de l’éventail. du Roi-Soleil à Marie-Antoinette, 82-83.
[5] Ilustrado e identificado por Françoise de Perthuis e Vincent Meylan, em 1989, como pertencente a uma coleção privada; e por Paulo de Campos Pinto, em 2009, como na coleção do museu de Bordeaux(?). Françoise de Perthuis e Vincent Meylan, Eventails, 25 e 27; Paulo de Campos Pinto, “Ensaio sobre leques comemorativos portugueses”, 132.
[6] A Tapada Real de Alcântara, atual Tapada da Ajuda, é criada em 1645 como reserva de caça real por D. João IV, assim se designando por se encontrar em terrenos do Paço de Alcântara. Constituiu um local da predileção de D. Pedro II, que aí se instala após o seu casamento com D. Maria Francisca e até falecer, em 1706.
[7] “Dedicado a Sua Majestade a Rainha Maria Francisca Isabel de Sabóia por ocasião do seu casamento com Sua Alteza Real o Príncipe Regente Dom Pedro de Portugal, a 3 de março de 1668, o Bispo de Targa deu a bênção em virtude do mandado confirmado pelo Papa Inocêncio” (tradução da autora).
[8] Note-se a utilização das palavras “didié”, em vez de dédié, ou de “domna”, ao invés de donna.
[9] D. Francisco de Sotomaior (ou Sottomayor), capelão-mor e deão da capela real de D. Afonso IV, e depois de D. Pedro II, Bispo de Targa e posteriormente Arcebispo Primaz de Braga, foi também quem havia dado a bênção por ocasião do primeiro casamento de D. Maria Francisca, com D. Afonso VI, e quem viria a batizar D. Isabel Luísa Josefa de Bragança, princesa da Beira, (1669-1690), filha única de D. Pedro II e D. Maria Francisca.
[10] “Pierre Roy de Portugal”. Gravura. Paris, 1683-1696. The British Museum, N.º 1938,0311.6.70. https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1938-0311-6-70; “Pierre Roi de Portugal: Porträt Peter II”. Gravura. Paris, pós-1683. Staatliche Museen zu Berlin, Kunstbibliothek, N.º 14159360. https://recherche.smb.museum/detail/1878174. Infelizmente, as imagens não se encontram disponíveis online, mas a gravura na coleção do British Museum encontra-se descrita como “Pedro II of Portugal seated on a throne with a view of Lisbon”.
[11] Vejam-se outras peças exemplificativas deste tipo de armação nos leques na coleção: FMA 3416, FMA 3444 e FMA 3447.
BIBLIOGRAFIA
Cowen, Pamela. A fanfare for the Sun King: unfolding fans for Louis XIV. Londres: The Fan Museum, Third Millennium Publishing, 2003.
Ferreira, Joana. Biografia de uma colecção: Os leques da Casa-Museu Medeiros e Almeida. Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2016. http://hdl.handle.net/10362/18244.
Llanos, José de Los; Letourmy-Bordier, Georgina. Le siècle d’or de l’éventail. du Roi-Soleil à Marie-Antoinette. Paris: Éditions Faton, 2013.
Perthuis, Françoise de; Meylan, Vincent. Eventails. Paris: Hermé, 1989.
Pinto, Paulo de Campos. “Ensaio sobre leques comemorativos portugueses”. Separata Revista de Artes Decorativas, 3 (2009). Porto: Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa.
Pinto, Paulo de Campos. O leque de folha dobrada em Portugal do século XVI ao século XX – Leques comemorativos portugueses (Dissertação de mestrado). Lisboa, Universidade Lusíada, 2002.
WEBGRAFIA
Gallica, Bibliothèque Nationale de France. https://gallica.bnf.fr/.
Staatliche Museen zu Berlin. Sammlungen Online. https://recherche.smb.museum/.
The British Museum. Collection online. https://www.britishmuseum.org/collection.
COMO CITAR / HOW TO CITE:
Ferreira, Joana. Leque comemorativo de dois casamentos reais. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida, 2023. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/leque-comemorativo/.
NOTAS:
Os nossos agradecimentos a Pierre-Henri Biger (Place de l’Éventail, http://www.eventails.net/), a Thomas DeLeo e a Maria Luísa e Norberto Pedroso, pelas valiosas contribuições ao estudo desta peça.
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.
Anverso da folha: Nicolas Arnoult (at. 1650-1722) (grav.); Reverso da folha: desconhecido, assinado “NA” (Nicolas Arnoult?); Armação: anónimo.
Poss. séc. XVIII ou XIX (folha); 2.ª metade do séc. XVIII, c. 1760-80 (armação).
Portugal ou França (folha); França (armação).
Papel, guache, madeira, marfim, metal dourado, mica e vidro.
11 + 2. 26,5 x 49,5 cm. ∢ 165ᵒ