Medalhões Catarina de Bragança e Carlos II de Inglaterra
A Casa-Museu possui no seu acervo um par de medalhões que se insere num grupo de peças relacionadas com D. Catarina de Bragança (enquanto rainha de Inglaterra), que se encontram expostas num espaço a si dedicado.
Trata-se de um par de medalhões ovais, em carvão cannel (cannel-coal), esculpidos em baixo relevo, representando o rei Carlos II de Inglaterra e a sua mulher, a rainha Dona Catarina. Os medalhões são delimitados por moldura vegetalista no mesmo material e assentam numa base/moldura retangular de madeira dourada à qual estão colados e seguros por meio de escápulas (estas últimas acrescentadas para maior segurança durante um restauro quando as peças já formavam parte da coleção da Casa-Museu).
No medalhão referente ao rei Carlos II, este aparece representado de corpo inteiro, a cavalo, ostentando a coroa real (Coroa de São Eduardo), o manto de arminho, o colar da Ordem da Jarreteira (colar que se usa sobre o manto composto por nós que alternam com medalhões de ouro esmaltado, cada um mostrando uma rosa rodeada pela Jarreteira) com o Jorge pendurado (Great George, figura de São Jorge, montado a cavalo, matando um dragão), e segurando o cetro na mão direita. Ao fundo, à esquerda, uma edificação que poderia ser Westminster Abbey, lugar da sua coroação em 23 de abril de 1661.
Catarina de Bragança, aparece representada já como Rainha Consorte do Reino de Inglaterra, Reino da Escócia e Reino da Irlanda como atesta a coroa à direita, embora provavelmente ainda numa data próxima da sua chegada a Inglaterra em 1662, como se pode deduzir pela sua juventude e pelo penteado que ostenta. Trata-se de um retrato de meio corpo, com pérolas a adornar o vestido e colar e brincos também de pérolas. Ao fundo, um cortinado que se abre para um exterior com paisagem. De cada lado da rainha uma cornucópia (símbolo da fertilidade, riqueza e da abundância), e no canto superior esquerdo uma coroa de louros. Na parte inferior, separado por uma moldura horizontal, escudo de Portugal representado muito esquematicamente, sendo que faltam dois dos sete castelos (um de cada lado).
Em ambos os retratos o trabalho, embora com grande cuidado na pormenorização, é definido pela dureza do material, dando lugar a representações de certa rigidez plástica, com traços geometrizantes e um tanto caricaturescos que lhes outorgam um certo aspeto naïf. No caso do retrato de Carlos II, esta impressão é reforçada pelas incoerências nas proporções, resultado do destaque dado a algumas partes da fisionomia de modo a facilitar a identificação (veja-se, por exemplo, o tamanho da cabeça, peito e mão que segura o cetro em relação ao resto do corpo, pontos onde se concentram os símbolos reais.
Estes símbolos foram criados para a coroação, visto que as anteriores regalias tinham sido destruídas durante o período da Commonwealth.
Na parte posterior das peças, na base de madeira, existe um nome gravado: J Le Grew, ainda não identificado, assim como dois papéis colados: uma etiqueta referente a um empréstimo para uma exposição e um texto manuscrito que, no caso do medalhão de Dona Catarina de Bragança se encontra incompleto e rasgado [ver subtítulo sobre a proveniência].
Carvão, azeviche, ébano?
Registadas no inventário do Museu como medalhões em azeviche, datados de cerca 1662 e atribuídos a autor desconhecido, as peças foram objeto de novo estudo que levou a alterações na sua classificação. Assim, observou-se que na documentação dos medalhões existiam discrepância quanto à designação do material; na já anteriormente referida etiqueta de empréstimo para exposição, estes são identificados como “retratos em ébano”; durante a troca de correspondência entre o antiquário Ronald A. Lee e António de Medeiros e Almeida os relevos aparecem denominados como “jet carvings” (esculturas de azeviche) e “coal sculptures” (esculturas em carvão), e na fatura de compra são somente descritos como “Stuart carvings” (esculturas do período Stuart).
Descartado o ébano por se tratar de uma madeira, o que não é manifestamente o caso, o azeviche (uma variedade específica de lignito) parecia ser o material mais plausível utilizado nestas peças inglesas, uma vez que existe uma importante jazida deste material em Inglaterra, conhecido como Whitby jet. Este material foi explorado desde a Pré-História e teve a sua época dourada durante a Era Vitoriana, quando se transformou no material por excelência para a joalharia de luto, nomeadamente após as mortes de Jorge IV (1830), do duque de Wellington (1852) e do Príncipe Alberto (1861). Porém, embora existam nos medalhões algumas das características próprias do azeviche: cor escura, brilho, suavidade ao tato, ligeireza ou semelhanças nas particularidades do talhe, chamou desde logo a atenção a ausência de peças similares em outras coleções, sendo que o azeviche é usado maioritariamente em peças de joalharia e no fabrico de figuras de pequenas dimensões, não se coadunando com as duas peças em questão tanto em tipo de trabalho como em dimensões.
Descartado também o azeviche resta considerar a hipótese do carvão, sendo que, durante este estudo, encontrámos dois bustos na coleção do Museu Britânico de Londres que são realizados num tipo específico deste material, o carvão cannel (cannel-coal). Veja aqui as peças: https://www.britishmuseum.org/collection/object/H_OA-16
O cannel-coal é um carvão betuminoso que contém restos identificáveis de esporos e grãos de pólen. Mais compacto do que o carvão comum, pode ser esculpido e polido e as suas características estéticas (o brilho e textura são similares aos do azeviche) e o facto de ser um material suave ao tato permitiu a sua utilização em peças de joalharia desde o Neolítico. Noutras épocas, nos locais onde este minério era extraído era frequente os mineiros realizarem, como passatempo, pequenos ornamentos e brinquedos neste material.
O tamanho dos medalhões da Casa-Museu, a textura e a tonalidade (nuances castanho-escuras) próprias do cannel-coal, bem como a proximidade ao trabalho de talhe dos bustos do British Museum, levam-nos (após consulta com técnicos conhecedores deste material), a classificar estas peças como sendo fabricadas em cannel-coal, facto que deverá ser confirmado por espectrometria de fluorescência de raio X, método analítico não-destrutivo para determinação da composição química de materiais.
Um possível autor: Robert Town
Em Inglaterra, a família Bradshaigh descobriu no século XVI na sua propriedade em Haigh, Wigan (cidade da área metropolitana de Manchester, no norte de Inglaterra), uma jazida de cannel-coal relativamente superficial, o que permitia métodos simples de mineração. Embora este tipo de carvão fosse principalmente utilizado como combustível, sendo muito apreciado por durar mais a arder mais do que a madeira e ter uma chama brilhante e limpa, já desde 1634 que existem registos do seu uso para a realização de trabalhos por artistas locais. Esta prática prosseguiu durante todo o século XVII, atingindo elevados níveis artísticos no século seguinte e continuando no século XIX.
Os bustos em cannel-coal do British Museum, retratando o rei Henrique VIII e a rainha Maria da Escócia, foram atribuídos a um escultor de Wigan, ativo em meados do século XVIII: Robert Town (ou Towne). Embora pouco se saiba deste autor, aparece referenciado nos livros de contabilidade da família Bradshaigh, para quem teria realizado alguns trabalhos de escultura tal como referido por Hugh Tait, num artigo publicado na revista The Connoisseur, em fevereiro de 1965: “Cannel carvings and Robert Town of Wigan”, no qual o autor menciona, para além das peças anteriormente citadas, outros dois bustos de Henrique VIII (o Museu Victoria & Albert de Londres possui um no seu acervo: http://collections.vam.ac.uk/item/O88323/henry-viii-bust-town-robert/), mais dois bustos de Maria de Escócia, dois bustos de Jorge III (um deles na coleção do conde Crawford e Balcarres), um medalhão de Henrique VIII no Rijkmuseum de Amesterdão, medalhões de Sir Roger y Lady Bradshaigh também na coleção do conde de Crawford e Balcarres e outros pequenos objetos e brinquedos de menor importância.
Tendo em atenção a temática (retratos reais), as fontes (gravuras), o material (cannel-coal), a tipologia (medalhões), a técnica e algumas das características estilísticas (a cópia fiel, a atenção ao pormenor, o trabalho dos cabelos e dos olhos, a rigidez das posturas, …), pensamos que os dois medalhões da coleção Medeiros e Almeida possam também ser atribuídos a Robert Town.
Os trabalhos conhecidos deste autor são datados entre 1756-1767, pelo que a data da sua execução já não seria, como anteriormente inventariado, de c.1662 mas sim de meados do século XVIII, tratando-se assim de retratos historicistas e não contemporâneos do reinado de Carlos II (1661-1685).
As gravuras
Tal como os bustos de Henrique VIII e de Maria da Escócia são baseados em gravuras do holandês Jacob Houbraken (1698-1780), retiradas do livro The Heads of Illustrious Persons of Great Britain (London, 1743-1752), também os medalhões do Museu têm como modelo gravuras.
No retrato de Carlos II a fonte será uma estampa do gravador inglês Robert White (1645-1703): “Carlolus II D G Mag Brit Fran & Hiber Rex & C” [https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1854-1113-126]. Embora a inspiração seja óbvia, na gravura, a figura equestre de Carlos II com o traje e regalias da coroação sobrepõe-se a um cortejo em segundo plano que corresponde à procissão entre a Torre de Londres e a Abadia de Westminster (esta foi a última coroação precedida deste cortejo); assim sendo existem dois momentos representados: um anterior e outro posterior à coroação do monarca. No medalhão o enfoque está na figura de Carlos II, desaparecendo o cortejo e mudando a perspetiva da representação da edificação, agora num plano mais próximo e ao lado esquerdo.
O modelo para o baixo-relevo da rainha Catarina é um desenho de Peter Williamson (ativo 1662-1680): “Donna Catherina Kinge of Portugal sister to Alphonso non Daughter of John the IIII Duke of Braganze Kinge os Portugal & Queene of England, Scotland, France & Ireland” [https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1849-0315-36], que por sua vez baseado, no que à representação da figura se refere (atitude, penteado, adornos), numa aguarela do miniaturista Samuel Cooper (1609-1672). [https://www.rct.uk/collection/420644/catherine-of-braganza-1638-1705]. Sendo o retrato da gravura também ele circunscrito a um medalhão oval, a cópia é muito mais fiel no seu enquadramento do que a do rei. Porém, a decisão do artista de incluir toda a decoração exterior presente na estampa (salvo a inscrição) faz com que existam elementos que se sobrepõem, como as cornucópias dos cantos inferiores e a coroa de louros do canto superior esquerdo, e outros que foram ligeiramente alterados, como o escudo de Portugal que perde a coroa superior e um castelo de cada lado.
Proveniência
Este par de baixos-relevos foi adquirido em Londres, através do antiquário Ronald Alfred Lee (1913-2000) por António de Medeiros e Almeida, em Março de 1968, embora só tenham sido transportados para Lisboa, pelo antiquário António Costa como era habitual acontecer, em Novembro do ano seguinte.
Atendendo à etiqueta que ambas as peças têm colada na parte posterior referente a um empréstimo destas para participar numa exposição realizada em 1930 no Hove Museum (museu fundado na localidade inglesa do mesmo nome em 1927), os medalhões estavam, à época, na posse de Mrs. Claude Baggallay.
Seguindo a mesma lógica, existe também em ambas as peças um papel colado na parte traseira da moldura, com um texto manuscrito que indica que a certa altura estes trabalhos teriam pertencido a uma tal Mrs. Bailey:
“This curious likeneys in ebony of his Majesty was found with its companion concealed in a pannelled wall of an old house in the city of London. When it was pulled down was purchased by Lady Bailey from the circumstance of an ancestor of her father having sheltered King Charles for one or two days during his misfortunes and when the King bade him farewell, he asked what reward his host would choose to have should he ever regain his throne. The reward requested was to quarter the tower in King Charles’ arms with his own from that day knowing full well from Charles character that any title or estate promised would in the way of prosperity be forgotten.
Lady Bailey’s family have ever since borne the tower in their arms.”
[Este curioso retrato em ébano de Sua Majestade foi encontrado com o seu par, escondido no apainelado de uma parede de uma velha casa na cidade de Londres. Quando foi retirado foi comprado por Lady Bailey devido a que um antepassado seu pai ter abrigado o Rei Carlos por um ou dois dias durante os seus infortúnios e, no momento da despedida, o Rei perguntou-lhe qual seria a recompensa que o seu anfitrião escolheria caso algum dia ele recuperasse o seu trono. A recompensa solicitada foi a de poder usar no seu brasão um dos símbolos reais a partir daquele dia, sabendo muito bem pelo caráter de Carlos que qualquer título ou propriedade prometida deveria ser esquecida em favor da prosperidade.
A família de Lady Bailey tem usado desde então a torre (?) no seu escudo.”]
Nenhuma das proveniências anteriores à compra puderam, por enquanto, ser comprovadas.
NOTA: A CMMA agradece a colaboração de Will Murray do Scottish Conservation Studio, da investigadora e arqueóloga Alison Sheridan e do Prof. Frits Scholten, conservador de escultura do Rijkmuseum pelas valiosas informações que nos forneceram.
Samantha Coleman-Aller
Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
BILBEY, Diane & TRUSTED, Marjorie, British sculpture 1470 to 2000: a concise catalogue of the collection at the Victoria and Albert Museum, London. V&A Publications, 2002, p. 159
LEEUWENBERG, Japp, Beeldhouwkunst in het Rijksmuseum, Haia,1973, p.490
TAIT, Hugh, Cannel carvings and Robert Town of Wigan, in The Connoisseur, February 1965, pp.92-99
FLOR, Susana, Aurum Regina or Queen Gold. Retratos de D. Catarina de Bragança Entre Portugal e a Inglaterra de Seiscentos, Bragança. Fundação da Casa de Bragança, 2012
VILAÇA, Teresa, Tesouros da Intimidade Real. Objectos do uso pessoal de Príncipes Europeus, Lisboa: Fundação Medeiros e Almeida, 2005
Atribuídos a Robert Town (ativo ca. 1756-1767)
ca. 1756-1767
prov. Wigan, Manchester, Inglaterra
Carvão cannel (cannel coal)
Alt. 27 cm. / Larg. 21 cm. e 20 cm. respetivamente