2 Canapés / 4 Cadeiras de braços
Pierre-Benoît Marcion (1769-1840) – Paris, França
Início do séc. XIX (?)
Madeira de faia(?) dourada e entalhada, veludo carmesim
De Paris a Lisboa
Possui a Casa-Museu Medeiros e Almeida no seu acervo, um conjunto de móveis de assento constituído por quatro cadeiras de braços e dois canapés, em madeira dourada e entalhada estofados a veludo carmesim, adquiridos em 1949 por António Medeiros e Almeida, em Lisboa, pertencentes aos condes de Paris, à época exilados em Portugal, na quinta do Anjinho em Sintra. https://www.enb.pt/outros/Quinta_do_Anjinho-historiaWEB.pdf
Em 1938, o conde de Paris, Henrique de Orleães (1908-1999), putativo herdeiro do trono de França, vendo aproximar-se a II Guerra Mundial, resolve esvaziar o palácio de Arc en Barrois sua propriedade, vindo a transferir parte dos bens para a sua quinta de Sintra, a quinta do Anjinho, onde a família real francesa se virá a instalar em 1947.
Os móveis em madeira de faia(?) dourada entalhada, são estofados a veludo carmesim, mantendo as percintas originais, marcados com coroa ducal sob a qual apresenta as iniciais LB e uma segunda marca ARC.
A identificação e percurso histórico destas marcas apostas em diverso mobiliário, foi cabal e pormenorizadamente identificado por Mathieu Caron no seu artigo LB – The Furniture Legacy of Louise Bathilde d’Orleans, Duchesse de Bourbon (1750-1822) publicado em 2017 pela Furniture History Society, Vol. LIII, o que nos permite também aferir a proveniência das peças da Casa-Museu.
Segundo este historiador, a marca LB sob coroa ducal, pertence a Louise-Marie-Thérèse Bathilde d’Orléans (1750-1822), filha do duque de Orléans Louis-Philippe (1725-1785), irmã de Philippe Égalité (1747-1793), tia de Adélaïde-Louise d’Orléans (1777-1847) e do seu irmão Louis-Phillipe I (1773-1850), último rei de França.
Em 1770 Louise Bathilde casou com Louis, Duque de Bourbon e Príncipe de Condé (1756-1830), na altura com apenas quatorze anos, mas o casamento foi desfeito dez anos mais tarde levando ao seu afastamento da corte. Em 1787 comprou o Hôtel d’Evreux (hoje Palácio do Eliseu) a Luis XVI. Apesar de ser apoiante da Revolução, foi exilada só tendo regressado a Paris após a Restauração Bourbon, em 1814, altura em que negociou com Luis XVIII a troca do Eliseu com o Hôtel Matignon, conhecido como Hôtel de Mónaco, situado na Rue de Varennes nº23 (atualmente nº57) que fora a residência de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838), Príncipe de Bénévent, diplomata e político, que aí viveu de 1807 a 1811, ano em que retornou aos bens da Coroa com todo o seu recheio (11 dezembro 1811).
As peças serão, provavelmente, anteriores à sua posse uma vez que regressada do exílio em Espanha, em 1815 Louise-Bathilde adquiriu o palácio de Matignon / Mónaco com todo o seu recheio, do qual constavam inúmeros móveis de assento de estilo Império do Príncipe de Bénévent.
Terão sido encomenda de Talleyrand? Levanta-se ainda a hipótese de os móveis terem sido encomenda do rei Luis XVIIII ao Garde-Meuble, com posterior oferta a Louise-Bathilde…
As peças terão sido por isso, marcadas entre 1815 e 1822 data da morte de Louise-Bathilde. É nesta data que a propriedade é herdada por Adélaïde-Louise, sua sobrinha e irmã do rei Louis-Philippe, que a mantém até à morte em 1847. Nesta data passa para o seu sobrinho Antoine d’Orléans que, consequência da chegada ao poder de Napolleão III, a vende ao duque de Galliera. Em 1870, a duquesa de Galliera põe à disposição do chefe da casa de Orléans, Philippe conde de Paris, o rés-do- chão do Hôtel Monaco.
A segunda marca, ARC, é referente ao castelo de Arc-en-Barrois, propriedade de Adélaïde-Louise que o herdou de sua mãe e o transmitiu aos seus herdeiros, tendo permanecido na família, até aos condes de Paris.
Situado no nordeste de França, o castelo de Arc-en-Barrois – https://chateau-arc.dk/ – com origem na Idade Média, tornou-se propriedade da família Orléans aquando da compra, em 1693, por parte de Louis-Alexandre de Bourbon, filho legitimado de Luís XIV e da sua amante, Madame de Montespan. O castelo, destruído durante a Revolução Francesa em 1789, foi herdado por Adélaïde d’Orléans por via de sua mãe em 1821, tendo o seu irmão o rei Louis-Philippe abdicado da sua posse.
Adélaïde viria a reconstruí-lo a partir de 1845, mas a sua morte em 1847 impediu-a de ver a obra terminada, no entanto, enviou para Arc-en-Barrois conjuntos de móveis que pertenciam ao Hôtel Monaco, daí a existência de peças com duas marcas: LB (de sua tia Louise-Bathilde) e ARC (Arc-en-Barrois). O palácio foi herdado pelo seu sobrinho François d’Orléans, príncipe de Joinville, tendo-se mantido na posse da família até ao início dos anos 70 do século XX, quando foi vendido a um proprietário privado, que o transformou em hotel. Actualmente, embora tenha mudado de proprietários, mantém-se como hotel / local de organização de eventos.
Outros conjuntos de peças marcados com os monogramas LB e ARC têm aparecido à venda em leilões, todos referindo a mesma proveniência:
https://www.christies.com/en/lot/lot-6242850
https://www.gazette-drouot.com/en/lots/8274308
Estilo Império – móveis de assento
Entre 1804 e 1814 Napoleão Bonaparte governa como imperador. O seu reinado do ponto de vista artístico, pauta-se pela continuidade do gosto neoclássico cujas características são acentuadas e que virá a ser designado por estilo Império. Neste, os elementos decorativos da antiguidade clássica, romana em particular, à qual se juntam influências egípcias, resultado da campanha do imperador no Egipto, ganham um papel preponderante.
Todas as artes se regem agora por estas características, não sendo o mobiliário excepção: o mogno passa a ser a madeira de eleição, em alternativa as peças são douradas ou pintadas de branco em madeiras indígenas, em particular após a declaração do Bloqueio Continental, que restringiu o comércio de produtos chegados das colónias, como as madeiras exóticas.
As linhas geometrizam-se desaparecendo os ondulados, os motivos decorativos são inspirados não só na antiguidade romana e Egípcia, como também no Imperador, tornando-se o bronze o principal material de ornamentação. Os móveis de assento passam a ter formas rectilíneas de ângulos vivos e uma nova técnica construtiva: o assento passa a ser colocado entre os quatro montantes que são constituídos por peças únicas. As costas direitas de forma quadrada ou rectangular, são sempre estofadas, sendo decoradas por bronzes ou madeira entalhada no cachaço. As pernas da frente são direitas enquanto que as de trás de secção quadrada, são ligeiramente encurvadas. Os braços da cadeira apoiam-se no prolongamento das pernas, os manchetes direitos, ligam-se às costas através de palmetas. Veludos, sedas damascos, cetins, couros e tafetás são os tecidos de eleição para os estofos. Os motivos decorativos recorrem frequentemente a figuras femininas de vestidos esvoaçantes, aladas, esfinges, amores, mascarões, cabeças de animais, cisnes. Coroas de folhas de carvalho, grinaldas de vinha, flores quadrilobadas, palmetas, louro, folhas de acanto, cornos da abundância, palmetas gregas…
Pierre-Benoît Marcion
Por aproximação formal e estética será exequível, atribuir a autoria deste conjunto de móveis de assento, ao ebanista Pierre-Benoît Marcion (1769-1840), um dos mais relevantes ebanistas (atrás de Jacob-Desmalter com quem aliás trabalhou) do período de Napoleão e a quem forneceu inúmeros móveis.
Filho de um comerciante de diversos produtos (entre os quais móveis) em segunda mão, desconhece-se com quem Pierre-Benoît fez a sua aprendizagem e quando se tornou mestre. Sabe-se, no entanto, que em 1798 possuía uma loja / oficina que mudou de morada, exercendo por isso, a profissão já há algum tempo. A qualidade dos seus móveis levou a que fosse procurado tanto pela casa imperial para quem trabalha a partir de 1805, tendo fornecido mobiliário para os palácios de Compiègne, Fontainebleau, Tuileries, Saint-Cloud, Rambouillet e Petit-Trianon, como pelo círculo familiar, político e militar do imperador, pela aristocracia e alta burguesia. Anteriormente, já tinha trabalhado para o Senado cujos móveis de assento fornece entre 1801 e 1802.
São-lhe também entregues as encomendas do mobiliário do hotel Matignon / Monaco e do palácio Monte-Cavallo (Roma) em 1811. A partir de 1814, a situação financeira de Marcion e de outros ebanistas muda, agravando-se em consequência da situação política, da guerra e da queda de Napoleão, deixando de receber encomendas reais. Marcion termina os trabalhos que tinha em curso vindo a receber o pagamento já sob a Restauração em 1816. Em 1817, decide encerrar a sua actividade e retirar-se para o campo (Château-Thierry), deixando Paris. Permanece aí cerca de 10 anos, regressando à capital após a morte da mulher e onde virá a morrer em 1840.
A sua produção vasta e variada, de grande qualidade de execução, não se restringiu aos móveis de assento de todos os tipos (cadeiras, canapés de diversos tipos, cadeiras com e sem braços), incluindo também, consolas, lavabos, cofres, variadas espécies de mesas.
Como ditava o gosto da época, fabricava móveis de mogno, cuidadosamente selecionado e tratado e que era empregue tanto sob a forma maciça como em folheados sobre faia. Também utilizou a faia pintada e dourada, assim como, outras madeiras autóctones como o carvalho, a nogueira, o limoeiro… Estas, a partir de 1807, terão progressivamente tendência para se sobreporem ao mogno que rareava, dada a imposição do Bloqueio Continental e a crescente dificuldade de acesso ao mesmo.
De proporções equilibradas, os móveis apresentam decoração discreta, não havendo lugar a excessos ornamentais, como era comum à época. Em geral, os seus móveis de assento caracterizam-se pelo gosto Império apresentando espaldar quadrado ou rectangular, pés da frente direitos em balaústre e os de trás inclinados em sabre e as cinturas das cadeiras de braços são ligeiramente convexas.
A produção de Marcion é também reconhecível pelos motivos decorativos que amiúde usou: caules de loureiro e de oliveira, folhas de acanto, corola de lótus ( que faz a ligação entre os outros elementos decorativos), palmetas à grega, tendo demonstrado uma predilecção pelo uso de rosáceas em baixo-relevo com número de pétalas variável que decoram o cachaço dos móveis de assento e a sua cintura e frequentemente a junção da perna com o aro. As corolas de lótus são outro elemento característico do trabalho de Marcion, fazendo a ligação entre os caules de loureiro, oliveira, as palmetas e as rosáceas…
O conjunto da Casa-Museu é constituído por dois canapés e quatro cadeiras de braços em faia (?) dourada. Embora não estampilhados, é exequível a atribuição da sua autoria por aproximação formal e técnica ao estilo do trabalho de Marcion. Tanto a estrutura como a decoração seguem características deste ebanista: gosto Império, espaldar quadrado um pouco inclinado para trás, pés da frente em balaústre ou em coluna e os de trás ligeiramente inclinados, cintura levemente convexa. A decoração também se apresenta sóbria com diversos dos elementos caros a Marcion: rosáceas de quatro pétalas no cachaço e dois “sois raiados”, palmetas à grega (na junção dos braços com o espaldar), corolas de lótus fazendo a ligação entre os caules de loureiro no aro, malmequeres (na junção das pernas com o aro).
Aproximam-se muito tanto do ponto de vista estilístico como decorativo de outro conjunto de móveis de assento que pertenceu a Charles-Maurice Talleyrand-Perigord, príncipe de Bénévent, igualmente marcados ARC e que apresentam a etiqueta: Mr Le Prince de Benevens 1er Salon après la Bibliotheque.
Para além das marcas LB e ARC uma das cadeiras de braços apresenta ainda uma etiqueta onde se lê: Salon de Musique, (Hotel de Matignon / Monaco?)
Desconhece-se no entanto, a origem ou época de colocação do veludo do estofo, muito desgastado, uma vez que nos inventários (até 1900) tanto do hotel Monaco como no castelo d’Arc-en-Barrois não aparecem referências a peças estofadas a veludo carmesim, levantando-se por isso, a hipótese de estas poderem ter sido forradas numa época posterior a 1900.
Ao invés do que é comum acontecer, neste conjunto de peças é possível traçar quase todo o seu percurso, o que se traduz por um conhecimento bastante completo sobre as mesmas.
Proveniência
O conjunto de móveis de assento foi provavelmente executado pelo Garde-Meuble Imperial e oferecidos pelo rei Luis XVIII (1755-1824), à prima Louise-Marie-Thérèse Bathilde d’Orléans, tendo sido herdado
adquirido pelo colecionador no leilão dos bens do 2º Conde de Paris, Henri d’Orléans (1908-1999), provenientes da Quinta do Anjinho, Sintra, realizado na Casa Liquidadora Leiria & Nascimento Lda., Lisboa, em 23 de fevereiro de 1949.
Os móveis estiveram a uso, no corredor de entrada da casa, até o casal se ter mudado para outra morada, transformando a sua residência em museu.
O Museu agradece a colaboração de Franck Baptiste “perito-aluno” (élève-expert) da CNES – Chambre National des Experts Spécialisés en Objets d’Art et de Collection que identificou as iniciais nas precintas bem como atribuiu a autoria a P.-B. Marcion.
Agradecemos ainda a Mathieu Caron, investigador do Centro André Chastel em Paris, pela disponibilização do seu artigo: LB – The Furnuiture Legacy of Louise Bathilde d’Orleans, Duchesse de Bourbon (1750-1822), de 2009, publicado em 2017 pela Furniture History Society, Vol. LIII
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
BOULANGER, Gisèle – L’Art de Reconnaitre les Styles. Librairie Hachette, Paris, 1960
CARON, Mathieu – LB – The Furnuiture Legacy of Louise Bathilde d’Orleans, Duchesse de Bourbon (1750-1822.) Furniture History Society, Vol. LIII, 2017
MORAND, Annie – Tous les Styles du Louis XIII au 1925. Paris: Sofedis, 1981
PLANCHON, Jean-Pierre – Pierre-Benoît Marcion. Éditions Monelle Hayot, Paris: 2007
SALVERTE, François – Les Ébénistes du XVIII eme siècle, leurs œuvres et leurs marques. Paris: F. de Nobele Libraire éditeur, 1962
Webgrafia
Napoléon.org – TALLEYRAND-PERIGORD, CHARLES-MAURICE DE, (1757-1838), PRINCE DE BÉNÉVENT, HOMME D’ETAT – https://www.napoleon.org/histoire-des-2-empires/biographies/talleyrand-perigord-charles-maurice-de-1757-1838-prince-de-benevent-homme-detat/
Pierre-Benoît Marcion (1769-1840)
c. início século XIX
Paris, França
Madeira de faia(?) dourada e entalhada, veludo carmesim
Canapés Alt. 98 x Larg. 167 x Prof. 65 cm / Cadeiras de braços Alt. 97,5 x Larg. 71 x Prof. 70 cm