A Sala do Lago possui um notável conjunto azulejar do primeiro quartel do século XVIII, cujos painéis, em brilhante decoração azul e branco, são provenientes de uma quinta – a chama Quinta dos Inglesinhos -, que se situava na Luz, Carnide, uma zona, à época, fora de Lisboa, que albergou um colégio católico inglês até finais dos anos sessenta do século XX.
Este estudo visa o conjunto de painéis representando os Quatro Continentes: Europa; África; Ásia; América; inscritos em moldura recortada e profusamente decorada.
A mensagem da imagem
A publicação em 1593 da Iconologia ou emblemas morais de Cesare Ripa, irá revolucionar a importância da imagem enquanto veículo transmissor da mensagem.
Cesare Ripa (c.1555-1622) foi um académico, escritor, historiador da arte, crítico, filósofo italiano, de Perugia que muito novo entrou ao serviço do cardeal António Maria Salviati como escudeiro, tendo tido acesso a bibliotecas e coleções de arte importantes que serviram de objeto de estudo e fonte para as suas publicações.
A obra (Iconologia overo Descrittione dell’Imagini universali), cuja primeira edição não foi acompanhada de gravuras, teve por objetivo ajudar os artistas poetas, pintores e escultores, a representar as virtudes, os vícios, os sentimentos e paixões humanas. Trata-se de uma compilação por ordem alfabética, cujas alegorias são traduzidas por atributos e simbologia. Percebendo a valor que esta poderia ter, Ripa codifica através de símbolos as características de conceitos abstractos, transformando-os em alegorias, (em princípio) inteligíveis por todos. A interpretação de um conceito tornava-se assim palpável e visível, assumindo as mesmas características identificadoras de modo a ser reconhecido. Ripa transpõe assim, uma ideia num objecto visual e concreto, que posteriormente e ao longo de séculos, será (re)interpretado por diferentes artistas, mas seguindo as directrizes por si criadas.
Usou como fonte para a realização destas imagens, a tradição iconográfica clássica greco-romana assim como, a egípcia e a contemporânea italiana, como refere o frontispício da sua obra. O método usado por Ripa é o mesmo para todas as representações: faz a descrição e representação gráfica das características de vícios, virtudes, sentidos, estações e meses do ano, continentes, elementos, etc. permitindo assim, a sua leitura e interpretação iconológica. A interpretação da pintura, escultura, têxteis, (num tempo de baixa literacia) devia ser coerente e acessível através da identificação dos símbolos, associando-os a elementos característicos, que permitissem uma fácil percepção e reconhecimento da mensagem que se pretendia transmitir, mas que também implicava o conhecimento dessa tradição.
É em particular no período barroco, que assistimos ao desenvolvimento da importância da imagem como transmissor da mensagem. Consequência do Concílio de Trento desenvolve-se esta forma de comunicação, muito usada pela Igreja, em que o aparato se faz sentir como forma de atrair fiéis, influenciando comportamentos, através das emoções geradas pelas imagens, que se prolongam na memória tanto mais tempo quanto mais intensas são, frequentemente com um intuito moralizador, recorrendo-se à alegoria como forma de transmissão.
Foram inúmeros os artistas que fizeram representações iconográficas (por vezes alterando alguns elementos) a partir das normas estabelecidas por Ripa como por exemplo, Jean Delafosse, Bernard Picart, Jean Baptiste Boudard, Hubert François Gravelot, Raymond de Petit que também publicaram Iconologias, seguindo as regras e símbolos por si preconizados, variando na forma mas, não no conteúdo. Este tipo de representação não se confinou aos desenhadores, tendo sido também utilizado por pintores, escultores, gravadores, que também transpuseram para os seus trabalhos alegóricos, de forma mais aproximada ou mais livre e autónoma “as recomendações” de Ripa, passando a arte a poder ser entendida e reconhecida em qualquer lugar, época ou por qualquer um, desde que familiarizado com a cultura judaico – cristã, com a mitologia clássica, com a literatura, com as lendas… pressupondo desta maneira alguma erudição, sem nunca esquecer o contexto e a época em que esta é feita.
Em Portugal este exemplo foi seguido pelo padre Ignacio da Piedade Vasconcellos no seu Artefactos Symmetriacos e Geometricos editado em 1733, no qual descreve pormenorizadamente os Quatro Continentes.
Os Quatro Continentes são representados artisticamente sobretudo a partir do século XVII como refere Maria João Freitas na sua tese de mestrado (Iconografia da Memória na Azulejaria do Século XVIII Quatro Estações, Quatro Elementos, Quatro Partes do Mundo) passando a ser encarnados por figuras femininas que trajam “à maneira imaginada” de cada um deles, junto a elementos característicos dos mesmos, baseados na tradição clássica na qual Ripa se inspira.
Ripa estabelece na sua Iconologia que a Europa será representada por: ” uma figura feminina ricamente vestida, sentada entre duas cornucópias, uma com cheia com todo o tipo de grãos e a outra com uvas brancas e pretas; segura um templo com a mão direita e apontando com o indicador da esquerda para ceptros e coroas; um cavalo entre troféus e armas; um livro com uma coruja em cima; muitos instrumentos junto a si; uma paleta com lápis para um ilustrador; Todos demostram ser esta a principal parte do mundo para as artes, religião e guerra.”
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África é representada: “por uma figura feminina moura negra [núbia?], semi-nua e com o cabelo frisado. Com uma cabeça de elefante como toucado, um colar de coral; e brincos do mesmo [coral] nas orelhas; um escorpião na mão direita e uma cornucópia com espigas de trigo na esquerda; junto a si de um dos lados, um leão selvagem e dou outro uma serpente e uma víbora.
Nua porque a riqueza não abunda. O elefante só existe em Africa. Os animais mostram que abundam aqui.”
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“Ásia – figura feminina com grinalda de flores e frutos, num vestido ricamente bordado, na mão direita segura ramos com frutos de cássia, pimenta e cravinho, um incensório afumegar, e um camelo a seus pés.
A grinalda significa que a Ásia produz coisas óptimas necessárias à vida humana. O vestido a grande quantidade de materiais ricos, as especiarias são distribuídas pela Asia às outras partes do mundo. O incensório mostra os produtos perfumados que produz. O camelo é o animal da Ásia.”
https://exhibits.library.pdx.edu/exhibits/show/the-envious-tooth-of-time/item/247
“América – figura feminina quase nua, de aspecto bronzeado, tem sobre o ombro manto dobrada e à volta do corpo, um enfeite de penas coloridas, numa mão um arco e ao seu lado uma aljava. Sob um dos pés um crânio humano atravessado por uma seta e um lagarto no chão. Nua porque os [seus] habitantes estão todos [assim]. As armas são o que tanto homens como mulheres lá usam. A cabeça mostra que são canibais. Os lagartos são tão grandes aqui, que devoram homens.”
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Painéis versus gravuras
Desconhecendo-se a autoria dos painéis de azulejos (e à falta de assinatura) esta foi atribuída por Santos Simões a Bartolomeu Antunes (1688 – 1753) pelo estilo de pintura que é comparável com outros trabalhos que também lhe são atribuídos.
Mais recentemente, Celso Mangucci através da análise da documentação da vida e morte de Bartolomeu Antunes, considera que este, nunca foi pintor, mas sim mestre ladrilhador, recorrendo ao trabalho de outros pintores para a execução e gestão das encomendas que recebia, sendo responsável pela ligação com o cliente. Esta discrepância de opinião leva a que ainda permaneça desconhecida a sua autoria.
De gosto barroco, são enquadrados por molduras que simulam estruturas arquitectónicas decoradas por putti, enrolamentos, urnas, mascarões, pilastras assumindo a moldura nesta época e neste caso, um papel cenográfico relevante, típico da Grande Produção Joanina, cuja datação se situa entre 1725 e 1750. Cada moldura apresenta ainda inscrita uma filactera na parte inferior dentro de uma cartela com o nome do respectivo continente.
Como era comum, a iconografia baseou-se num conjunto de gravuras que neste caso são da autoria de Pierre – Alexandre Aveline dedicadas às Quatro Partes do Mundo, actualmente pertencentes ao acervo do British Museum, apresentando uma datação atribuída entre 1717 e 1760.
Tendo-se tornado identitária na arte portuguesa, a azulejaria tem, no entanto, frequentemente por base gravuras (que podiam corresponder a séries ou programas iconográficos pré-definidos) com origem em diversos países e que circulavam por toda a Europa, não representando ou retratando por isso obrigatoriamente, um ambiente português. Por outro lado, não raras vezes, estas gravuras também não eram copiadas de forma totalmente fiel, sendo adaptadas ao gosto do pintor ou do encomendante ou podendo até mesmo sofrer cortes ou acrescentos, em função do espaço disponível. A encomenda podia ainda obedecer a um programa iconográfico, adaptado ao espaço a que se destinava num determinado edifício.
No caso em análise, a reprodução apesar da fidelidade em especial no que respeita à cena principal, não foi replicada de forma totalmente idêntica, tendo o autor eliminado pormenores sobretudo ao nível da representação dos tecidos, que nos azulejos surgem muito simplificados, fugindo um pouco à ostentação de gosto barroco que os mesmos apresentam no original. Por outro lado, também as cenas e figuras secundárias foram simplificadas ou suprimidas havendo também alterações nos edifícios e paisagens do fundo. Questão de adaptação do painel ao espaço, será talvez a causa mais provável, não justificando esta, no entanto, o facto da simplificação ou da omissão de certos pormenores, que terá ficado ao gosto / capacidade do pintor.
Pierre-Alexandre Aveline (1702 – 1760) o autor das gravuras, era originário de uma família de artistas. O seu avô Pierre (O Velho) era um conceituado gravador, desenhador e editor tendo produzido essencialmente estampas de paisagens (palácios, jardins, topográficas) tendo Pierre – Alexandre seguido o mesmo caminho ao dedicar-se à execução de gravuras. O pai (também) Pierre era pintor e cirurgião, tal como o tio Antoine que era gravador de estampas.
Pierre-Alexandre dedicou-se frequentemente, à reprodução em gravura a partir de trabalhos de François Boucher e de Antoine Watteau mas também executou trabalhos da sua autoria, como os Quatro Continentes (que deram origem aos painéis de azulejo) conforme a marca aposta nas mesmas, que refere que foram inventadas e gravadas pelo próprio Pierre – Alexandre.
Nestas gravuras Aveline segue a Iconologia de C. Ripa pois, encontramos os princípios preconizados por este autor em todos os painéis, tendo ainda sido colocada uma legenda em verso explicando algumas dessas características:
Europa – Mulher ricamente vestida segura um ceptro simbolizando a Europa, conversa com a personificação de Marte, tendo aos pés os atributos das artes e por trás de si uma mitra e um incensório símbolos do cristianismo.
Au culte du vrai Dieu toujours assujetie [ Sempre sujeita ao culto de Deus]
Mais sçachant triompher dans les travaux de Mars [Mas sabendo triunfar nos trabalhos de Marte]
Sous un climat heureux faisant fleurir les Arts, [Sob um clima feliz, fazendo florir as artes]
Je suis de l’Univers la plus noble partie. [Sou a mais nobre parte do Universo]
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1502614&partId=1&searchText=pierre+aveline+Europe&page=1
Ásia – é representada por uma figura masculina ricamente vestida, tendo um turbante na cabeça. Vai de braço dado com uma figura feminina europeia. Em segundo plano são visíveis outras figuras que usam turbante junto a alguns camelos e ao fundo aparecem crescentes no topo de algumas construções, símbolo muçulmano.
Riche et beau continente, que ta gloire est ternie ! [Rico e belo continente, como a tua glória está sombria]
Le luxe et le plaisir t’habitoient autrefois [O luxo e o prazer antes aí habitavam]
À leur place à présent règne la tyrannie ; [No seu lugar agora reina a tirania]
Le beau sexe surtout éprouve les [loix ?] [Sobretudo o belo sexo experimenta as leis]
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1502623&partId=1&searchText=pierre+aveline+Asia&page=1
África – é representada por um casal que usa turbantes e vestes compridas (ao contrário do que é preconizado devido ao clima) junto a uma palmeira, estão rodeados por figuras de pele escura e cabelo encaracolado, por elefantes e leões, que também aparecem em fundo.
Vous [qu’anime ?] sans cesse un dangereux courroux, [Vós que animais continuamente uma perigosa ira]
Sanguinaires Lyons, dont l’ Afrique est l’azile, [Leões sanguinários de que a África é asilo]
Dans les brulants sablons de ce Pais stérile, [Nas areias escladentes deste pais estéril]
Les Hommes ne sont pas plus traitables que vous. [Os homens não são mais tratáveis do que vós]
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1502621&partId=1&searchText=pierre+aveline+Africa&page=1
América – é representada também por um casal apenas vestido da cintura para baixo, ele usa um toucado de plumas e segura um arco e flecha, enquanto ela tem pousado na mão um pássaro. Em segundo plano também surge uma palmeira junto à qual estão outras figuras seminuas, que usam toucado de penas, arco e flecha e por trás da arvore aparece uma ema animal característico deste continente.
Nous reglions nous moeurs suivant notre caprice, [Moderamos a nossa ambição em função dos nossos caprichos]
Nou suivions la Nature en toute liberté, [Seguimos a natureza em toda a liberdade]
Quand traversant les Mers, la cruelle Avarice, [quando a cruel avareza atravessa os mares]
Vin nous faire souffrir un joug peu mérité [vem fazer-nos sofrer um jugo pouco merecido]
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1502619&partId=1&searchText=pierre+aveline+America&page=1
Proveniência
Os painéis representando “as Quatro Partes do Mundo”, hoje patentes na sala do Lago, pertenceram à Quinta dos Inglesinhos em Carnide, onde existiu um colégio católico inglês, em funcionamento até ao final dos anos 60 do século XX, altura em que encerrou, tendo estes sido postos à venda e assim adquiridos por António Medeiros e Almeida, a António João Madeira, rua de Entrecampos, nº48, 4ºdto, Lisboa, em 12 e 26 de Junho de 1969.
Trata-se de um conjunto que decorava “a varanda voltada a norte”, juntamente com um outro grupo representando as Quatro Estações.
O edifício foi peritado pela Câmara Municipal de Lisboa em 1972, após o que foi demolido, funcionando no local atualmente a Escola Secundária de Carnide.
Relatório Dra Irisalva Moita, CML 1972
FOTOGRAFIAS DOS PAINÉIS IN SITU (Arquivo Museu):
Europa / Ásia
América / África
A Casa-Museu agradece a colaboração das investigadoras Rosário Salema de Carvalho e Patrícia Nóbrega, pelo estudo do acervo azulejar do acervo e inclusão na base de dados AZ Infinitum – Sistema de Referência & Indexação de Azulejo (2015) – http://redeazulejo.fl.ul.pt/pesquisa-az/autor_ficha.aspx?id=462
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
NOTA: A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Bibliografia
CORREIA, Ana Paula Rebelo – Da Gravura à Iconografia: uma metodologia de Investigação no estudo da azulejaria barroca, in A Herança de Santos Simões, Lisboa Colibri, 2014
Le Cabinet de l’amateur et de l’antiquaire : revue des tableaux et des estampes anciennes, des objets d’art, d’antiquité et de curiosité. Librairie Firmin-Didot frères, fils et cie (Paris), Librairie Firmin-Didot frères, fils et cie (Paris), 1863
FREITAS, Maria João Lynce da Costa Pais de – Iconografia da Memória na Azulejaria do Século XVIII Quatro Estações, Quatro Elementos, Quatro Partes do Mundo, Tese de Mestrado em História da Arte, vol. I/II, Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1994
JOFFE, Helene – Le Pouvoir de L’image : persuasion, émotion et identification. Presses Universitaires de France, in Diogène, n° 217, 2007
MANGUCCI, Celso – A Estratégia de Bartolomeu Antunes: mestre ladrilhador do Paço (1688-1753), in Al-Madan, II série, nº12, Dezembro 2003
ORDERS, D’Arcy – The Inglezinhos, A Short History, in: The British Historical Society of Portugal, Twenty Second Annual Report and Review 1995
RIPA, Cesare – Iconology or moral emblems. Benj Motte, London: 1709
SIMÕES, João Miguel dos Santos – Azulejaria em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979
Webgrafia
The British Museum – http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/search.aspx?searchText=aveline
Biblioteca Nacional de França – http://data.bnf.fr/14968668/pierre-alexandre_aveline/
AZ Infinitum Sistema de Referência & Indexação de Azulejo – http://redeazulejo.fl.ul.pt/pesquisa-az/autor_ficha.aspx?id=462
Portland State University Library – Digital Exhibits, Iconologia di Cesare Ripa – https://exhibits.library.pdx.edu/exhibits/show/the-envious-tooth-of-time
Bartolomeu Antunes (?) (1688-1753) (oficina de azulejaria) Pierre-Alexandre Aveline (1702-1760) (gravuras)
c.1725-1750
Lisboa, Portugal
Faiança vidrada
Painéis dims.: Alt. 264cm x Larg. 195cm