Par de vitrais representando Santo António e Santa Margarida, de corpo inteiro, Santos onomásticos dos donos da casa, realizados por Luís Filipe de Abreu por encomenda de António de Medeiros e Almeida, para serem montados em janelas de luz numa das salas da ala nova da Casa-Museu.
A técnica dos vitrais
Os vitrais são painéis compostos por pedaços de vidro coloridos montados de modo a formar uma imagem que pode ser figurativa ou não. Embora a técnica da produção de vidro colorido se conhece desde a Antiguidade, será no Medievo que a arte dos vitrais alcança o seu auge, transformando-se numa forma de embelezar as igrejas e catedrais, mas também de fazer chegar as narrativas bíblicas a uma população maioritariamente iletrada. No Renascimento o vidro, até então muito caro, torna-se mais acessível, de modo que certas camadas da sociedade começaram a ter janelas envidraçadas nas suas casas e, em ocasiões, também pequenos vitrais. A produção de vitrais, religiosos ou profanos, continuou até os nossos dias, com momentos de mais ou menos produção ou ênfase artístico.
Embora existam diversas formas de produção de vitrais, a técnica básica tem-se mantido praticamente igual desde a Idade Média. O primeiro passo é a escolha do motivo, que é plasmado num desenho inicial; este desenho é passado a tamanho real num cartão no qual se apresentam já as cores dos vidros e todos os pormenores a ser futuramente considerados, assim como as linhas de guia que dividem o desenho e limitam cada peça de vidro. As peças de vidro são cuidadosamente escolhidas e cortadas seguindo o desenho prévio e posteriormente são trabalhadas de forma individual, usando diversos pigmentos e instrumentos para dar forma a cada detalhe de modo a criar as sombras, texturas e efeitos desejados. Estes fragmentos de vidro vão ao forno para a fixação da pintura ficando prontos para a montagem do painel. Utilizando o cartão como base, as peças de vidro são montadas usando as linhas de guia de chumbo (ou cobre) que com antecedência foram cortadas no tamanho certo e soldadas de modo a assegurar o conjunto. O passo final é a aplicação de um cimento (o excesso é retirado), que ajuda na impermeabilização e estabilidade do painel.
Os vitrais da Casa-Museu: a encomenda
Quando em finais da década de sessenta do século passado António de Medeiros e Almeida decide transformar a sua residência num museu para expor a sua vasta coleção, o primeiro passo foi o de ampliar a casa. Este projeto foi entregue ao Arq. Alberto Cruz (1920-1990), que desenha uma nova ala de cerca de 1000 m2, distribuídos por dois andares, sobre o antigo jardim da sua vivenda. A obra, uma sucessão de salas nas quais são recriados diversos ambientes, é finalizada em 1974 pelo Arq. Frederico George (1915-1994) e pelo Arq. José Sommer Ribeiro (1924-2006), que também se ocupa da museografia.
Uma das salas da nova ala é a chamada Capela, espaço destinado a reunir o grosso dos objetos de arte sacra do espólio. Para esta divisão o colecionador encomenda, já no início da década de setenta, ao artista plástico Luís Filipe de Abreu, um par de vitrais representando Santo António e Santa Margarida, Santos homónimos dos donos da casa: António e Margarida de Medeiros e Almeida.
Na documentação que integra o arquivo da Casa-Museu, conserva-se a correspondência entre Medeiros e Almeida e o artista, através da qual ficamos a conhecer todo o processo de aquisição dos vitrais. Com data de 20 de novembro de 1971, encontramos uma primeira proposta de fornecimento de Luís Filipe Abreu na qual, aludindo a uma conversa prévia com o Arq. Frederico George, apresenta o orçamento para a: “…concepção e execução dos cartões à escala, desenhos preparatórios em tamanho natural, fornecimento dos trabalhos finais do vitralista e seu assentamento no local a designar pelo Arquitecto”, de: “…dois vitrais destinados à zona sacra do Museu-Fundação António Medeiros d’Almeida, com as dimensões de 1.00×2.00m, cada.”
Em 21 de agosto de 1972, após a concordância de Medeiros e Almeida em relação aos cartões para os vitrais, começa a: “…transposição para os materiais definitivos”, mediante pagamento de um terço da quantia previamente estipulada. Quase um ano depois, em julho de 1973, estavam a ser preparados os trabalhos de montagem e iluminação, dado que ficamos a conhecer através da carta na qual o artista apresenta: “…a nota da parte restante” dos honorários e se mostra disponível para: “…acompanhar todos os trabalhos de montagem e iluminação”. Em janeiro de 1974, o colecionador escreve a Luís Filipe de Abreu informando o artista que: “…por motivo de acidente um dos vidros que compõem os vitrais fornecidos por V. Exa. se encontra danificado” pedindo-lhe para se deslocar ao local para: “…tratar dos pormenores da execução de um novo vidro”.
Em exposição permanente no local para o qual foram concebidos desde 1974, estes vitrais constituem, junto com os retratos de família de Veloso Salgado, um raro exemplo dentro da coleção de peças fruto de encomenda direta do colecionador.
Os vitrais da Casa-Museu: “Santo António” e “Santa Margarida”
Situados numa das paredes laterais da Capela da Casa-Museu, os vitrais representando Santo António e Santa Margarida exibem-se montados numa falsa janela que é, na verdade, uma caixa de luz para permitir a adequada fruição das peças. Os dois painéis apresentam-se divididos em três seções transversais separadas por moldura de ferro pintado a preto, sendo a secção inferior de um e outro ligeiramente maiores que as outras duas (86cm. e 67cm. respetivamente).
Os vitrais representam os Santos de corpo inteiro, numa visão frontal, ocupando a quase totalidade do espaço. A representação dos corpos ajusta-se à divisão tripartida dos vitrais, estando a parte inferior reservada para os membros inferiores, a secção do meio para o tronco e membros superiores e a parte superior para a cabeça e respetiva auréola. O fundo sobre o qual se apresentam as figuras é de caracter abstratizante, confundindo-se em algumas partes com os próprios corpos que não aparecem claramente recortados, variando nas suas tonalidades e disposição em ambos os vitrais.
O painel dedicado a Santo António representa Santo António de Pádua, sacerdote, predicador e teólogo nascido em Lisboa, primeiro Doutor da Igreja franciscano e hoje em dia um dos santos mais venerados do Catolicismo. A sua iconografia é muito variada, focando os diferentes aspetos da sua vida. Nesta representação, Luís Filipe de Abreu apresenta o Santo na sua forma mais habitual: a de um jovem tonsurado – embora a auréola que emoldura a cabeça do Santo e a representação frontal não nos permitam apreciar a cabeça rasurada -, trajando o característico hábito franciscano no qual, porém, não conseguimos identificar o cordão de três nós que simboliza os votos de pobreza, obediência e castidade. Nas mãos do frade alguns dos seus atributos mais frequentes: o livro – que representa o Evangelho e enfatiza a sua sabedoria e o seu labor como pregador e teólogo – e uma flor, uma haste de açucenas ou um lírio; símbolos de pureza e castidade, indicadores da estação do ano em que o Santo morreu e na qual se celebra a sua festa onomástica (13 de Junho).
Santa Margarida será neste caso Santa Margarida (ou Marina) de Antioquia, Santa e mártir cristã. Embora o culto a Santa Margarida esteja muito divulgado, nomeadamente na igreja ortodoxa, a sua veracidade histórica não está comprovada. Neste vitral a Santa aparece com um dragão (demónio) enrolado aos seus pés em alusão ao dragão que a teria engolido e do qual ela se consegue libertar através do sinal da cruz. Numa das mãos ostenta a palma do martírio e traz à cintura a cruz que a teria salvo do dragão. Na parte superior três pombas como referência ao episódio no qual a Santa é coroada por uma pomba no momento em que estava a ser interrogada pelo povo e, em lugar de renegar a Deus como lhe era pedido, citou uma passagem do evangelho de S. Mateus: “quando fordes levados diante de governadores e reis, não vos preocupeis em saber como ou do que haveis de falar. Naquele momento vos será indicado o que haveis de dizer porque não sereis vós que falareis, mas o Espírito do vosso Pai é que falará em vós” (Mateus 10: 18-20).
Ambos os painéis são assinados “Luís Filipe de Abreu Pint. / Atelier JAM”, num dos cantos inferiores e os Santos identificados “S.to António / S.ta Margarida” em cartela própria, igualmente no terço inferior dos vitrais.
Luís Filipe de Abreu
Luís Filipe de Abreu nasceu em 1935 em Torres Novas. Em Lisboa estuda pintura na Faculdade de Belas Artes, onde será mais tarde catedrático. O seu longo percurso é muito diversificado, tendo-se dedicado não só à pintura de cavalete ou mural, como também à ilustração editorial, ao design gráfico, desenho de tapeçarias, painéis de azulejos, vitrais, criação de cenografias e figurinos para teatro, ópera e bailado, medalhística, desenho de selos postais e notas, etc.
Tal como o próprio salientou numa entrevista publicada a 4 de junho de 2016 no Diário de Noticias por mor da exposição retrospetiva que a Festa da Ilustração de Setúbal lhe dedicou: “…a minha obra é toda baseada no desenho (…) é sempre a mão que está na base desta atividade”.
Em relação ao seu trabalho em vitral, para além do patente na Casa-Museu Medeiros e Almeida, realizou trabalhos para a Academia Militar em Lisboa, para o Hospital Regional de Portalegre ou para o Hotel Eden no Estoril.
Samantha Coleman Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Luis Filipe Abreu (1935 - )
1971-1974
Portugal
Vidro pintado e chumbo
Altura (com moldura): 235 cm. / Largura (com moldura): 90 cm. cada vitral