Palitar os dentes é um hábito social cujas origens remontam à Pré-História quando o Homem, sentindo necessidade de tirar os restos de comida de entre os dentes, recorreu a objetos contundentes como lascas de pedra, de madeira, ossos e espinhos de animais. Vestígios arqueológicos desses objetos bem como sinais da sua ação nos dentes foram verificados em enterramentos datados desde a Idade da Pedra. A cuidada higiene observada nas civilizações Grega e Romana contemplava o uso do palito. Este era um objeto de uso pessoal e continuado, aconselhando Plínio o Novo (61-113), como ideal, o espinho do porco-espinho. O Budismo também praticou desde sempre a higiene oral tendo assim alastrado o hábito no Oriente.
Na Idade Média, apesar dos poucos hábitos de higiene pessoal também está registado o uso de palitos em público – a garra de abetouro era um dos materiais – sendo, porém, a época do Renascimento que viu desenvolver esta prática. Em ambiente erudito, os palitos tornaram-se verdadeiras peças de joalharia sendo usados como adorno ao pescoço ou à cinta (1); o palito – normalmente em forma de garra – seria em ouro, prata, marfim ou osso, sendo por vezes protegido por uma bainha ricamente decorada com pedras preciosas, pérolas e esmaltes coloridos assumindo diferentes formas (2). Associados a estes objetos, surgem também estojos completos, com raspadores de línguas, uma espécie de colher para limpar os ouvidos e talheres e outros objetos de higiene como penicos e escarradores.
Neptuno / Anfitrite / Ameríndio / Pastor
Os séculos XVI e XVII viram nascer as preocupações com a etiqueta tendo-se desde logo publicado manuais onde se aconselha a que o palitar de dentes à mesa seja feito com discrição. Na centúria seguinte a arte da mesa conheceu o seu apogeu; o uso do palito é generalizado e aceite à mesa tendo sofrido, como os outros hábitos, um processo evolutivo de adaptação e consolidação do manuseamento consoante cada país. O Padre Rafael Bluteau dizia no seu “Vocabulário Português e Latino” em 1720: “Palitar – Alimpar os dentes com palito. De quem depois da comida está conversando com o palito na mão, costumão dizer, Está palitando”(3).
Foi neste âmbito que se deu o aparecimento do paliteiro que conquistou também o seu lugar à mesa pelas suas funções utilitárias e decorativas. Surgiram em diversas formas e materiais, desde os mais nobres – prata e porcelana – até aos mais populares de faiança, madeira e cartão. Em Portugal, no final do século, regista-se o funcionamento em todo o país de pequenas fábricas de palitos de madeira que, por razões óbvias, vão conquistando o lugar dos individuais: “…os palitos metálicos (…) com grande escândalo da higiene (…) constante desinfecção (…) ofender o esmalte dos dentes (…) o início da cárie dentária.” (4). Ao longo do século XIX, diferentes compêndios de civilidade abordaram este hábito sendo unânimes que se tratava de falta de delicadeza conservar o palito na boca depois de comer, limpar com ele os ouvidos bem como pô-lo atrás da orelha ou no bolso da casaca. Diversos inventários de bens e relações de recheio de casas mencionam a existência de paliteiros traduzindo a adesão social a este hábito.
Sol-Lua / Matança do porco / Toureiro / Pescador
Paulatinamente o uso do palito à mesa foi desaparecendo, mas o dos paliteiros sobreviveu – pela sua função decorativa – até se extinguir já no século XX, quando se tornam objetos de antiquariato e de colecionismo.
Conjunto de paliteiros de prata da Casa-Museu:
A prataria oitocentista portuguesa, se bem que pouco inovadora “…encontra na produção de paliteiros uma vertente distinta, sociologicamente rica e esteticamente representativa do gosto de uma época, que se prolongou pelo século XX.” (5). A tendência eclética e de cariz saudosista do século romântico trouxeram para a ribalta os revivalismos estéticos como o gosto do neoclássico, a valorização do passado, o apego à Natureza, a busca do exótico, a valorização do Homem e a curiosidade científica. De tipologia e gramática decorativa muito diversificadas, o conjunto de paliteiros de prata da Casa-Museu é representativo dessa produção, seguindo as tipologias descritas por Leonor d’Orey (6):
Os principais centros de ourivesaria estão representados na coleção com nomes como António Gonçalves da Cunha (act.1843-1870), José da Costa Torres (act.1822-1874), VAD (act. meados séc. XIX) de Lisboa, José Ribeiro Figueiredo (act. 1784-1810), Manuel Pinto da Costa (act. 3º quartel séc. XVIII) e Cândido Joaquim Correia (act. 1887-1937) do Porto, e ICL (act. finais séc. XVIII, inícios séc. XIX) de Guimarães.
Conjunto de paliteiros de porcelana da Casa-Museu:
A Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, situada em Ílhavo e fundada em 1824, iniciou a produção de paliteiros em meados do século XIX tendo-se intensificado a partir de 1920 e até à década de sessenta surgindo grande diversidade de modelos. À falta da função utilitária, os paliteiros continuaram a cumprir uma função decorativa, sendo igualmente alvo de colecionismo; “No Catálogo de 1883 que se deveu a Joaquim de Vasconcelos, mencionam-se como ‘peças de fantasia’ jarros e vasos para flores, lamparinas, paliteiros, moringues, …” (7).
Com o gosto marcado por persistências vindas de oitocentos, as tipologias dos paliteiros de porcelana seguem de perto as atrás enunciadas para a ourivesaria. Assim, na coleção da Casa-Museu encontram-se animais como uma vaca malhada, uma cabra com cabrito, coelhos, uma lebre e um leão, frutos como a abóbora, flores como uma rosa, profissões como toureiros (‘Capinha e Touro’), padeiro, pescador, músico (‘José Redondo’) e juiz, tipos populares como a varina, a banhista, a matança do porco, um homem barrigudo e os curiosos ‘Sol e Lua’ e um Arlequim corcunda.
As peças da Vista Alegre são marcadas em baixo com a marca VA, identificando-se assim o período de produção. Os paliteiros da Casa-Museu são maioritariamente do 5º (1870-1880) e 6º (1881-1921) períodos, havendo também alguns do 4º (1852-1869) e do 8º período (1947-1968).
A Fábrica da Vista Alegre mantém no seu Museu as fichas de catálogo com os desenhos originais dos paliteiros, datas de criação e autorias. Muitos desenhadores como J. Cazaux e pintores conceituados como Duarte José Magalhães, Roque Gameiro, Raul Lino e Leitão de Barros colaboraram com a fábrica Vista Alegre. Algumas peças mais raras atingem preços consideráveis em leilões, nomeadamente, nos da Vista Alegre.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Notas:
(1) Na National Gallery da Irlanda, um quadro de Alessandro Oliverio de cerca de 1510-20, representa um desconhecido usando um cordão ao pescoço com um estojo de palito pendente (NGI 239)
(2) O Museu Victoria & Albert em Londres possui alguns palitos renascentistas (nºs 294-1854 e 2-2010) bem como o British Museum que também possui um exemplar muito curioso (WB.188)
(3) Bluteau, 1720:VI, 202, citado por Ferreira, 2006, p.8
(4) Brandão, João; “A indústria de palitos dos dentes na 2ª circunscrição dos serviços technicos da industria”, 1910:4, citado por Ferreira, 2006, p.11
(5) Sousa, 1999, p.7 (6) A autora é mencionada por Sousa, 1999, p.18 (7) Ferreira, 2006, p.26
Bibliografia:
BLUTEAU, Rafael; Vocabulário Português e Latino (…), (1720) Lisboa: Arquivo Histórico de Portugal, 2ª edição, 1933
FERREIRA, Jorge Manuel; Paliteiros da Vista Alegre, Casal de Cambra: Caleidoscópio – Edição e Artes Gráficas Lda., 2006
PEREIRA, Ana Marques; Mesa Real Dinastia de Bragança, Lisboa: Edições Inapa, S.A., 2000
SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e; Os Paliteiros de Prata do Club Portuense, Porto: Club Portuense, 1999
Sécs. XVIII / XIX Marcas de 1852 a 1968 – 4º, 5º, 6º e 8º períodos
Portugal
Conjunto de 36 paliteiros de prata - Prata repuxada e cinzelada Conjunto de 50 paliteiros de porcelana - Porcelana moldada, relevada e pintada à mão ou esmaltada