DESTAQUE FEVEREIRO 2024
Par de ninfas em mármore
Par de ninfas em mármore
Estatueta (par) de vulto pleno em mármore. Representa figura feminina nua, sentada sobre panejamento no qual estão caídas flores. Cabelo apanhado atrás caindo em canudos, com coroa de flores. Pernas sobrepostas, mão pousada sobre uma das pernas e leve torção do tronco. Olhar para baixo em direção às flores. Assenta sobre base ovalada, rematada por perlado metálico. Pedestal da mesma forma, esquinado e com caneluras. Apresenta na face frontal aplicação de placa metálica (bronze?) dourada decorada com putto a tocar harpa rodeado por nuvens.
A representação pela sua iconografia poderá remeter para uma invocação da Primavera ou de Flora: uso de flores, rosas no cabelo e espalhadas pelo chão, de que como aliás se conhecem outras representações semelhantes.
A outra figura igualmente sentada e nua, mas em posição diferente, apresenta no cabelo coroa de parras e uvas simbolizando o Outono (?), tendo também alguns cachos junto a si, para além de uma pandeireta. Esta iconografia poderá remeter para uma bacante, visto estas acompanharem Baco, deus do vinho, com este tipo de representação.
Nenhuma das estatuetas é assinada ou datada, o que levanta questões de atribuição de autoria e datação, uma vez que, se conhecem vários exemplares semelhantes, produzidos por diferentes escultores.
Efectivamente, é a Étienne-Maurice Falconet (1716-1791) que é atribuído o “modelo original” que inspirou e popularizou a produção de estatuária de pequeno formato, que fez sucesso na decoração de interiores ao longo do século XVIII, inúmeras vezes repetido por diferentes mãos.
Falconet dotado para a escultura, faz a sua aprendizagem com Jean-Baptiste Lemoyne (1704-1778), escultor retratista de Luis XV, e na Academia de Real Belas-Artes de Paris.
Apresenta os seus trabalhos no Salão de pintura e escultura (conhecido no meio artístico apenas como Salon) evento onde os laureados da academia expunham ao público os seus trabalhos,[1] o que lhe permitiu obter grande sucesso seguido do reconhecimento por parte da elite em particular de Madame Pompadour, que o viria a nomear director artístico da manufactura de Sèvres em 1757. Aí, introduziu a produção de incontáveis peças decorativas de pequenas dimensões destinadas à ornamentação da mesa, muitas delas em biscuit (pasta cerâmica não vidrada). Entre estas, contam-se inúmeras figuras a partir de desenhos do pintor François Boucher (1703-1770) e que lhe granjearam grande popularidade, “concorrendo” com a escultura de grande formato a que também se dedicou, como no caso da estátua equestre de Pedro O Grande, em São Petersburgo, encomendada por Catarina A Grande.
A refinada execução, o movimento, “a graça rococó”, o erotismo de muitas das figuras e das cenas contribuíram para a popularidade deste tipo de escultura de pequeno talhe.
Decoração de interiores
O gosto pela pequena representação de escultura de interior difundiu-se no século XVIII, em mármore, bronze mas particularmente em porcelana, impulsionado pelo trabalho da manufactura de Sèvres e da contribuição dos desenhos de François Boucher e do seu director artístico Étienne-Maurice Falconet. As peças espalhavam-se pelas mesas aos pares ou em pequenos grupos de três figuras. Tanto podiam ornamentar a mesa como se dispersavam por outras peças de mobiliário noutras divisões da casa, criando um ambiente “feminino” e intimista, profusamente decorado.
O estilismo de interiores expandiu-se a outras peças de mobiliário de variadas tipologias como cómodas, secretárias, lareiras… peças funcionais, como relógios e candelabros, ou meramente decorativas, como estatuetas enfeitavam os ambientes. Não raras vezes, dava-se a associação das duas vertentes a prática e a decorativa: relógios inseridos em esculturas, esculturas que são castiçais, jarras esculturais…
Difundem-se os grupos alegóricos tantas vezes de inspiração mitológica. Frequentemente são também representadas figuras aos pares, como no caso das duas estatuetas adquiridas para a colecção do Museu, com tema em comum: estações do ano, continentes, jogos infantis, cenas pastoris, histórias mitológicas, representações quotidianas…
A popularidade destes pequenos modelos foi grande e por isso repetida e reproduzida por diversas mãos, encomendada em diferentes épocas. Atribuídas muitas vezes ao seu autor original, nem sempre assim se revelou, mostrando um estudo mais aturado, pequenos pormenores ou diferenças relativamente ao modelo original, uma outra autoria. De facto, outros escultores, contemporâneos de Falconet, ou ligeiramente posteriores, seus discípulos (?) ou não, reproduziram os seus modelos (ou a si atribuídos). Outras vezes, alteravam o modelo mas seguiam um determinado padrão de beleza: figura feminina nua, cabelo apanhado atrás, nariz afilado, corpo elegante, tratamento cuidado do mármore.
Entre os mais conhecidos estão os nomes de Jean-Pierre Antoine Tassaert (1727 -1788) escultor de origem flamenga emigrado em Paris, e dos irmãos Broche, Jean- Baptiste Ignace (1741 – 1794) e Joseph (1741 – 1794), todos se dedicaram à produção de pequeno formato.
São conhecidos modelos originalmente atribuídos a Falconet como por exemplo o da Vénus, pertencente ao Museu Cognacq-Jay e que actualmente são dados como pertencendo a escultores como Jean-Pierre Antoine Tassaert, conhecendo-se ainda exemplares na Walters Art Gallery de Baltimore ou no Museu Hermitage em São Petersburgo.
Igualmente de referir a Bachante assise [Bacante sentada] (não localizada) e as Baigneuses assises [Banhistas sentadas] uma pertencente ao museu de Belas Artes de Lons-Le-Saunier e a outra ao Museu Cognacq-Jay, todas atribuídas a Joseph ou a Jean Baptiste Ignace Broche[2].
Banhistas Sentadas [no museu]
O conjunto adquirido por António Medeiros e Almeida em 1973, foi anunciado na revista Country Life de 7 de Junho desse ano, como sendo da autoria de Falconet, estando à venda no antiquário Frank Partridge (144 -146 New Bond Street, London).
A aquisição foi concretizada alguns dias mais tarde, a 25 de Junho, por 4,750 £, tendo as peças sido trazidas para Lisboa por Henrique Soares (antiquário a quem o colecionador recorria como intermediário).
À chegada ao Museu, António de Medeiros e Almeida constata que, as mesmas não são assinadas pedindo então ao antiquário se é possível passar um certificado sobre a sua proveniência, ao que este objectou que não o podia fazer para não revelar a identidade do proprietário anterior, reafirmando, no entanto, a autenticidade da autoria das mesmas dada a sua qualidade.
Face ao exposto, AMA indaga sobre a possibilidade de ser emitido um certificado de autenticidade das peças. É então que Frank Partridge lavra um documento no qual explica que as peças são genuínas, correspondentes à época de Falconet e da sua autoria.
“A tradição “da atribuição deste tipo de escultura a Falconet, parece ter sido criada a partir da produção da sua escultura Banhista (Museu do Louvre) apresentada no Salon de Paris no ano de 1757 e de Pigmalião e Galatea (também do Louvre) apresentados em 1763, (em ambos os casos documentados).
Com as excepções acima mencionadas, persiste até à actualidade uma questão de atribuição de autoria de todas as outras peças, quer por falta de documentação, quer por ausência de assinatura, restando assim, o cruzamento de dados e proveniência para a identificação de todas as outras.
O par de estatuetas do MMA é mencionado pelo historiador da arte Louis Réau em 1922[3] e publicado em fotografia (pl. XX) com o título: Baigneuses assises [Banhistas sentadas] dando-lhes também a sua proveniência: a coleção Fenaille[4], esclarecendo desta forma, uma questão até agora desconhecida para o MMA: a proveniência (parcial visto a publicação datar de 1922 e a compra por António de Medeiros e Almeida de 1973) das peças.
Réau, Louis. Étienne-Maurice Falconet, tome I. Paris : Ed Demotte,1922
Terá sido a partir do livro de Réau que é feita a atribuição inicial da autoria como sendo de Falconet. Não havendo documentação escrita ou trabalhos assinados, esta, apenas poderá ser assumida por aproximação formal e técnica, o que Réau parece fazer segundo a opinião de Henry Hawley[5]. Para este conservador de artes decorativas do Cleveland Museum of Art, Réau parece ser dúbio nalgumas das suas considerações: por um lado, recomenda cautela ao considerar-se “atribuição provável ou possível” para peças não documentadas, por outro, refere uma série de pequenas esculturas em mármore, nas quais se incluem as do MMA, igualmente não assinadas ou documentadas, e às quais Réau não concede o termo “atribuído a”, o que leva Hawley a considerar que Réau presumiu que estes trabalhos foram executados por Falconet.
Será esta a única razão (até ao presente) que nos leva a induzir que as peças serão da autoria de Étienne-Maurice Falconet, ficando no entanto em aberto a possibilidade de uma outra autoria, face aos pressupostos nos quais se baseia a actual atribuição.
Cristina Carvalho
[1] Até 1737, era designada por “Exposição” mas a partir dessa data, passa a ter lugar no Salão Quadrado do Louvre, assumindo então a designação de informal de Salon.
[2] Guilhem Scherf. Problèmes d’Attribution : marbres de Falconet, Tassaert et Broche. Falconet à Sèvres ou l’art de plaire 1757-1766. Musée National de Céramique, Sèvres. 2002
[3] Réau, Louis. Étienne-Maurice Falconet, tome I. Paris : Ed Demotte,1922
[4] Nascido em Paris, Maurice Fenaille (1855-1937) foi um importante colecionador de arte francês. Empresário, dedicou a vida à importação e transformação de petróleo, a par com o gosto pela arte e pelo mecenato cultural. Amigo de artistas como Rodin, investe em arte, constitui colecções, compra património artístico que recupera, faz doações a museus. Investigador reconhecido, em particular na área da tapeçaria, publica vários estudos sobre as diferentes manufacturas francesas, trazendo à luz inúmeras novidades. Filantropo assumido, cria um centro de recuperação de mutilados da I Guerra Mundial, um sanatório, reconstrói uma aldeia, cria instituições de ensino. Finalmente, adquire um edifício em Rodez, terra natal de sua mulher, que recupera e onde instala as suas coleções de arqueologia e arte que inaugura como museu em 1937, funcionando até à actualidade.
[5] Hawley, Henry. « Tassaert’s “Venus”, Not Falconet’s Flora ». Antologia di Belli Arti, La Scultura -Studi in onore di Andrew S. Ciechanowiecki. Nuova Serie 48-51, 1994. Torino 1995
Bibliografia
Hawley, Henry. « Tassaert’s “Venus”, Not Falconet’s Flora ». Antologia di Belli Arti, La Scultura -Studi in onore di Andrew S. Ciechanowiecki. Nuova Serie 48-51, Torino 1994 – 1995.
Lami, Stanislas. Dictionnaire des sculpteurs de l’école française au dix-huitième siècle. Tome 1. Paris: H. Champion 1910-1911.
Montalbetti, Valérie. « La Vénus au carquois de Jean Pierre Antoine Tassaert et les collectionneurs français du 18e siècle» in Tournefeuille [s/l], 2007.
Objects d’art et de bel ameublement principalement du XVIII e siècle, Paris : Palais Galliera, 1972
Réau, Louis. Étienne-Maurice Falconet, tome I. Paris : Ed Demotte,1922.
Scherf, Ghilhem. « Problèmes d’attribution : marbres de Falconet, Tassaert et Broche » in Falconet à Sèvres ou l’art de plaire 1757-1766. Sèvres : Réunion des Musées Nationaux, 2002.
Webgrafia
https://www.britannica.com/art/Sevres-porcelain, 17-01-2024
https://musee-fenaille.rodezagglo.fr/le-musee/maurice-fenaille/, 20-01-2024
https://www.parismuseescollections.paris.fr/fr/recherche?keywords=tassaert&page= 14-12-2023
https://art.thewalters.org/detail/17652/venus-seated-woman/, 31-01-2024
COMO CITAR / HOW TO CITE:
Carvalho, Cristina. Par de ninfas em mármore. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida, 2024. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/par-de-ninfas-em-marmore/.
NOTAS:
L’auteur remercie toute l’information disponibilisée par le Musée Cognacq-Jay (Paris) à travers la conservatrice Gabrielle Baraud.
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.
Étienne-Maurice Falconet (?), (1716-1791)
França
Século XVIII
Mármore, bronze (?) dourado
32 x 15 x 22 cm
FMA 54 e FMA 64