DESTAQUE MARÇO 2024
Um piano de mesa: instrumento musical e peça de mobiliário
DESTAQUE MARÇO 2024
Um piano de mesa: instrumento musical e peça de mobiliário
Entre os vários instrumentos musicais da coleção encontra-se um invulgar piano inglês, de cinco oitavas e meia, com assinatura de John Broadwood and Son (atualmente John Broadwood and Sons), fornecedores reais durante quase três séculos e um dos fabricantes de pianos mais antigos do mundo ainda em atividade.
Datada de 1802, esta peça é não só testemunho de uma época em que os instrumentos musicais de teclas estavam em rápida transformação, mas também um belo exemplar de mobiliário, uma mesa de abas estilo Sheraton.
O piano de mesa do Museu Medeiros e Almeida
Existe na coleção Medeiros e Almeida uma mesa de abas estilo Sheraton, de inícios do século XIX, período George III, com tampo retangular fixo e extremidades de cantos arredondados articuladas por dobradiças que, quando levantadas, são suportadas por um braço ou mísula móvel. Por baixo do tampo, oculto em ambos lados por falsas frentes de gaveta com puxadores de latão em anel, um piano de mesa que pode ser parcialmente retirado para ser tocado.
O conjunto é suportado por dois grupos de três colunas, ligadas por travessas, sobre pernas de sabre reforçadas na extremidade por revestimento de latão liso e rematadas em rodízios. A cobertura de latão no fim das pernas é comum nas mesas Sheraton a partir de 1800; num primeiro momento, como no exemplar do Museu Medeiros e Almeida, este elemento é liso e quadrado, evoluindo depois para motivos mais sofisticados com formas de garra de leão ou folha de acanto.[1]
De modo a dar maior estabilidade e suportar o peso adicional do piano, os grupos de colunas das laterais estão unidos por uma travessa reforçada constituída por alternância por segmentos quadrangulares e segmentos torneados.
Toda a peça está cuidadosamente folheada e marchetada com diversas madeiras – entre as quais mogno, pau-cetim, buxo – num jogo de cores e desenhos muito ao gosto da mobília Sheraton. Destaca-se o folheado de enquadramento no tampo e abas, cercadura muito usada desde o início do século XVIII para realçar a madeira dos tampos,[2] e os finos marchetados em pau-cetim que emolduram e delimitam os diferentes constituintes da peça: falsas gavetas, tampo, elementos de suporte, etc. De ressaltar, a decoração das laterais exteriores da gaveta/piano, nas quais o folheado e marchetado foram só aplicados na secção que fica visível ao retirar o piano para ser tocado.
Tampo da mesa onde se pode apreciar o folheado de enquadramento e pormenor do lateral da gaveta/piano. Museu Medeiros e Almeida, FMA 216
O aro da mesa simula, tanto na parte frontal como posterior, a existência de gavetas, não só através do desenho criado pelos marchetados como também com a presença de puxadores e fechaduras. Na verdade, enquanto na parte traseira estes artifícios são meramente decorativos, na parte dianteira existe um gavetão único que conforma a caixa do piano de mesa, sendo que a parte central da frente deste gavetão, onde está patente a única fechadura operacional, abre por meio de dobradiças situadas na parte inferior, deixando à mostra o teclado do piano.
O piano de mesa é suportado por uma estrutura de madeira com um par de rodízios metálicos em cada extremidade que permitem que este deslize. Existem duas pequenas peças de madeira, uma em cada ponta, que atuam como travões e podem ser ajustadas para permitir que o piano se retire unicamente o suficiente para poder ser tocado ou que a gaveta seja totalmente removida para afinação.
Piano de mesa. Museu Medeiros e Almeida, FMA 216
O piano propriamente dito, corresponde ao tipo de piano de mesa produzido por Broadwood entre c. 1780 e c. 1806. Como é próprio deste tipo de pianos, as cordas (neste caso o instrumento é totalmente bicórdio) estão dispostas na horizontal, diagonalmente à linha do teclado, e acima dos martelos. A amplitude tonal é de cinco oitavas e meia (FF a c4), abrangência convencional dos pianos de mesa Broadwood a partir de 1796, embora até o fim do século continuem também a construir-se pianos de cinco oitavas. A solução para adicionar as novas notas agudas sem comprometer o arranjo da caixa de ressonância e da ponte, solução idealizada por William Southwell em 1794,[3] foi conseguida encaixando as alavancas adicionais debaixo da caixa de ressonância, sendo que os martelos entram em contacto com as cordas através de uma abertura na parte posterior desta.[4]
O design do teclado neste exemplar também é influenciado pelo aumento tonal de cinco a cinco oitavas e meia. O teclado é formado por quarenta teclas para as notas diatónicas – revestidas por duas placas de marfim cada uma, coincidentes com a diferente largura da cabeça e da cauda da tecla[5] e 28 teclas correspondentes às notas cromáticas, em ébano. De forma a poder acomodar as novas cordas sem alterar significativamente as dimensões apropriadas para uma mesa de abas, existe uma curvatura no lado direito do teclado que, por sua vez, dá lugar a que a parte visível e revestida das teclas agudas se encontre reduzida. Para manter a simetria, esta modificação repete-se no extremo contrário, o que justifica a presença da pequena balaustrada curva que fecha a parte superior do teclado, onde, noutros pianos de mesa, se localizam placas quadrangulares rendilhadas em madeira. Esta balaustrada, forrada na parte posterior com veludo de seda vermelho, possibilita também a saída do som, ao mesmo tempo que protege o interior do piano.
O mecanismo de ação deste piano,[6] sem escape, deriva do mecanismo desenvolvido por Johannes Zumpe[7] na década de 1760, às vezes chamado de mecanismo de ação única, mas com abafadores de latão, patenteados por John Broadwood em 1783.[8] Neste piano os abafadores foram omitidos de a2 a c4 inclusive.[9]
As cravelhas (ou pinos de afinação), de cabeça oblonga, estão situadas num conveniente arranjo do cepo ao longo da parte traseira da caixa e, cada uma delas, está assinalada com a letra da nota correspondente. Conserva-se, ainda, a chave de afinação.
À direita dos pinos de afinação, escrito a caneta, encontra-se o número de série do piano, nº 7073. Existe um outro número, R12213, gravado na lateral esquerda da caixa do instrumento, cujo significado ainda desconhecemos.[10]
Pormenor onde se podem apreciar os pinos de afinação, a abertura da caixa de ressonância e o número de série do piano. / Pormenor do número gravado no lateral interior do piano. Museu Medeiros e Almeida, FMA 216
No canto superior direito da caixa de ressonância do piano, situa-se um triângulo de madeira com um ornato vazado e forrado na parte posterior por seda vermelha. Este elemento foi também uma inovação idealizada por Southwell e que Broadwood adota, a partir de 1800, em praticamente todos os pianos de mesa.[11] Embora a ideia deste componente seja a de contribuir para a saída do som, na verdade, nos pianos de mesa como o da coleção, em que apenas é visível durante a afinação, não tem um significado acústico percetível nem uma razão de caráter estético que justifique a sua existência, devendo-se a sua presença mais a uma convenção formal do que propriamente a uma finalidade prática.
Na parede frontal acima do teclado, ao centro, situa-se a “placa de nome”, de pau-cetim, com a inscrição “John Broadwood and Son / Makers to his Majesty and the Princesses / Great Pulteney Street London 1802 Golden Square”.
Pormenor da placa de nome com assinatura de John Broadwood and Son. Museu Medeiros e Almeida, FMA 216
Estado de conservação do piano de mesa do Museu Medeiros e Almeida [12]
Embora a precisar de alguns restauros, tanto a nível do móvel como do mecanismo, o piano de mesa do Museu Medeiros e Almeida apresenta-se, aos dias de hoje, num bom estado de conservação para exposição, preservando-se a quase totalidade dos seus constituintes originais, tanto das partes mecânicas como dos componentes estruturais, embora o instrumento não se encontre em condições de ser tocado.
A mesa de abas que contém o piano está estável, com o desgaste natural espectável e a presença de pequenas rachas e falhas nalgumas zonas do folheado e embutidos. A alteração mais destacada é uma mancha no tampo, provavelmente devida à presença de líquido, sendo que se conserva nos arquivos do Museu Medeiros e Almeida uma fotografia antiga, da época em que a casa era habitada pelo casal Medeiros e Almeida, e esta peça fazia parte da mobília do salão, onde, coincidentemente, se pode ver um grande vaso com flores na zona da mancha.
Puxador e pormenor dos furos de fixação no interior da gaveta. Museu Medeiros e Almeida, FMA 216
Em data desconhecida, muito provavelmente já no século XX, foram realizadas algumas intervenções no piano, como a fixação da extremidade aguda da ponte à caixa de ressonância por meio de cinco parafusos, ou a troca das cordas originais de ferro e latão por cordas em aço.
Alguns dos problemas que, à primeira vista, são evidentes no atual estado do piano são, entre outros, a existência de um martelo quebrado; o manifesto desgaste do revestimento de martelos e abafadores; as rachas patentes no cepo, possivelmente causadas aquando da troca das cordas; a corrosão de alguns dos chumbos das alavancas, patologia comum nos primeiros instrumentos de teclado e que impede o normal funcionamento de algumas das teclas; a sujidade acumulada ao longo do tempo no interior da caixa do piano;[13] o facto dos travões da gaveta estarem partidos e a possível falta da tampa da pequena gaveta interior ao lado esquerdo do teclado.
Na grande maioria dos pianos de mesa Broadwood existe uma pequena etiqueta, colada no interior, com instruções para a solução de pequenos problemas que podiam surgir, com o uso, em abafadores e martelos. No exemplar da coleção Medeiros e Almeida não se conserva qualquer registo ou marca deste rótulo, o que pode dever-se a que o mesmo nunca existiu, ou a que este se tenha perdido a dada altura, algo muito frequente.
John Broadwood & Son
A origem da John Broadwood and Son remonta a 1728, quando Burkat Shudi (1702-1773), fabricante de cravos de origem suíça, estabelece a sua oficina em Londres. Em 1761, John Broadwood (1732-1812), um escocês recém-chegado a Londres, começa a trabalhar para Shudi, casando com a filha mais nova deste, Barbara Shudi (1748-1776), em 1769 e herdando o negócio familiar dois anos depois continuando, porém, a assinar os instrumentos como Burkat Shudi et Johannes Broadwood até muito depois da morte do primeiro em 1773.
A partir de meados da década de 1770 ou inícios da década seguinte,[14] Broadwood consagra os seus esforços à construção de pianofortes, seguindo de perto, num primeiro momento, o modelo de pianos de mesa estabelecido por Zumpe – que também tinha trabalhado com Shudi à chegada a Londres fugindo da Guerra dos Sete Anos – e acompanhando a tendência inovadora dos construtores de instrumentos de teclas em Londres.
A 17 de julho de 1783, John Broadwood regista a patente nº 1379 sob o nome de New Constructed pianoforte, which is far superior to any instrument of the kind heretofore constructed [15] (Novo pianoforte, muito superior a qualquer instrumento do tipo até então construído)[16] e na década seguinte abandona definitivamente a manufatura de cravos.
Entre 1795 e 1808, com a incorporação de James Shudi Broadwood (1772-1851), filho mais velho de Broadwood, a firma passa a denominar-se John Broadwood & Son, etapa em que se insere o piano de mesa do Museu Medeiros e Almeida, datado de 1802. Em 1808, com a integração de um novo membro da família – Thomas Broadwood (1786-1861), filho de John Broadwood e da sua segunda mulher, Mary Kitson – o nome muda novamente, agora para John Broadwood & Sons, nome que se mantém até ao presente, embora a firma já não se encontre nas mãos da família.
John Broadwood & Sons são dos fabricantes de pianos mais antigos do mundo ainda em atividade, fornecedores oficiais da Casa Real desde a altura do Rei Jorge III (Royal Warrant by Appointment), mantendo, ainda hoje, este privilégio.[17] Prolíficos construtores de instrumentos de teclado, dedicaram-se primeiro à manufatura de cravos, depois pianos e, desde 2021, também clavicórdios, tendo alguns dos mais importantes músicos de todos os tempos tocado nos seus instrumentos: Mozart, Beethoven[18], Chopin, Liszt, …
Thomas Sheraton e as “sofa-tables”
Thomas Sheraton nasce em Stockton-on-Tees, cidade do nordeste de Inglaterra, em 1751 e em 1770 muda-se para Londres, onde reside até a sua morte em 1806. Embora hoje em dia o seu nome esteja indiscutivelmente associado a um estilo de mobiliário, é provável que ele próprio nunca tenha construído uma única peça, tendo ganho a vida principalmente como professor de desenho.
A sua fama deve-se à publicação de vários livros sobre design de móveis. O primeiro deles, The Cabinet-Maker and Upholsterer’s Drawing Book, foi publicado em vários fascículos entre 1791 e 1794, os dois primeiros abordando temas de geometria e perspetiva e o terceiro formado por um conjunto de desenhos através dos quais Sheraton pretendia ilustrar o gosto da época. Em 1803 é publicada a sua segunda obra, The Cabinet Dictionary, glossário de termos relacionados com o fabrico de móveis que conta também com pormenorizadas ilustrações do autor. O seu último livro, The Cabinet-Maker, Upholsterer and General Artist’s Encyclopaedia, ao qual dedica os últimos três anos de vida, encontra-se incompleto.
Os seus desenhos, como era habitual na época, foram difundidos entre os marceneiros, que se inspiraram neles dando lugar a um estilo, em voga em Inglaterra entre c. 1790 e 1820, posteriormente conhecido como “Sheraton”, e que se caracteriza pela sobriedade e elegância das peças, de formas geométricas proporcionadas, com destaque para os ricos folheados que ressaltam os elementos constitutivos, características todas elas patentes na peça da coleção Medeiros e Almeida em estudo.
Thomas Sheraton é, provavelmente, o primeiro a escrever sobre as sofa-tables (mesas de sofá) no seu The Cabinet Dictionary, onde explica que são mesas usadas em frente ao sofá para desenhar, escrever ou ler (“those used before a sofa, and are generally made between 5 and 6 feet long (…); the frame is divided into two drawers (…). The ladies chiefly occupy them to draw, write, or read upon”)[19], salientando que o seu uso é principalmente feminino.
Este tipo de mesa parece ter sido uma invenção inglesa, muito usada durante o período da Regência e, embora não explícito no texto de Sheraton – mas sim no desenho que o acompanha -, têm, de modo geral, abas nos lados menores, podendo ser consideradas uma variante das mesas Pembroke, tipo de mesa também descrita por Sheraton no seu dicionário como “um tipo de mesa para o pequeno-almoço cujo nome deriva da senhora que primeiro a encomendou e que provavelmente deu a ideia de tal mesa aos operários” (“a kind of breakfast table from the name of the lady who first gave orders for one of them, and who probably gave the first idea of such a table to the workmen”),[20] sendo a maior diferença entre uma e outra que as abas nesta última estão situadas nos lados maiores.
No final do século XVIII e início do XIX, as sofa-tables situavam-se em frente ao canapé, tal como explicitado por Sheraton e, em ocasiões, entre dois sofás situados próximos da lareira, que seria o ponto focal da sala de estar. Assim sendo, tanto a frente como as costas da mesa estavam decorados, já que ambos lados estavam expostos ao olhar. Este pormenor torna-se evidente na mesa de abas com piano da coleção Medeiros e Almeida onde, embora todo o aro da mesa esteja ocupado por uma única gaveta, a parte traseira deste apresenta decoração por meio de um folheado simulando frentes de gaveta, na verdade um efeito meramente ornamental. Com o tempo, o foco principal de luz da sala deixa de ser a lareira e as sofa-tables migram para a parte posterior do sofá ou são encostadas a uma parede, daí serem muitas vezes conhecidas como “mesas de encostar”, termo incorreto atendendo ao seu uso inicial.[21]
Pianos inseridos em móveis
Embora exista uma longa tradição de incorporar versões de diferentes tipos de pequenos instrumentos de teclado, como órgãos, espinetas ou, posteriormente, pianofortes, em diversos tipos de mobiliário (ver, por exemplo o contador com órgão de c. 1600 da coleção do Victoria and Albert Museum), o período mais marcante para esta tendência será no final do século XVIII e início do século XIX, período que trouxe rápidas mudanças no design e construção de pianos e no qual os instrumentos de teclado se tornam amplamente disponíveis, transformando-se numa marca de status entre a burguesia.
Convém recordar que instrumentos como o cravo, antepassado do piano e o mais popular instrumento de teclado em Inglaterra até c. 1790, não tinham, originalmente, suporte, sendo que o instrumento e a sua base não eram encarados como um todo. Porém, a partir de finais do século XVIII, tanto os cravos como os novos pianos de mesa seguem de perto as rápidas mudanças do desenho de mobiliário, adaptando a sua configuração aos estilos em voga, transformando-se em verdadeiras peças de mobiliário e fazendo parte da decoração dos salões onde moravam.[22]
O piano de mesa da coleção Medeiros e Almeida enquadra-se dentro da tendência de instrumentos inseridos em peças de mobiliário e faz parte de um restrito grupo de pianos incluídos em mesas de abas, dos quais apenas conhecemos três exemplares, fabricados por John Broadwood & Son nos primeiros anos do século XIX. As três peças – que pela sua raridade e importância pertencem hoje em dia a coleções museológicas -, inserem-se todas no estilo vigente à época, o estilo Sheraton, tendo uma configuração formal e decorativa muito similar, embora só a do Museu Medeiros e Almeida tenha cinco oitavas e meia, sendo que os outros dois contam apenas com cinco.
O mais antigo destes três pianos, de 1801, esteve muito provavelmente desde a sua origem em Ham House, palácio londrino hoje sob tutela do National Trust, onde ainda se encontra, atualmente exposto no Quarto da Rainha.[23] Segundo Christopher Nobbs, que examinou esta peça e escreveu um relatório de conservação em 2001, algumas características e particularidades deste exemplar levam a pensar que possa ter sido um protótipo.[24] [Para mais informação sobre este piano: https://www.nationaltrustcollections.org.uk/object/1140229].
O piano de 1803 pertenceu à Broadwood Collection e foi vendido no leilão da Sotheby’s de 20 de março de 1980, passando a fazer parte, até 1999, da coleção de W.F. Bradshaw Antique Piano, em Sydney, encontrando-se presentemente na David Roche Foundation.
Piano de mesa inserido em mesa de abas. John Broadwood & Son, 1803 (© David Roche Collection)
Na base de dados Early Pianos Online, iniciado por Martha Novak Clinkscale[25] em 1987 e que serviu de base para os seus dois livros, Makers of the Piano 1700-1820 e Makers of the Piano 1820-1860, publicados na década de 1990, na entrada referente ao piano de mesa Broadwood inserido em sofa-table de 1803, revista pela própria Clinkscale em janeiro de 1995 e em 2002, afirma-se que este é “um dos três únicos pianos de mesa conhecidos, um deles destruído no bombardeio de Londres”.[26] Tendo em conta que o Museu Medeiros e Almeida é inaugurado apenas em junho de 2001 e, na altura, a sua coleção era ainda muito desconhecida pelos investigadores a nível internacional, torna-se plausível que a peça em estudo seja o piano erradamente tido como desaparecido no bombardeio de Londres. Se assim não for, devemos assumir que, na verdade, seriam quatro e não três os pianos inseridos em sofa-tables fabricados por Broadwood, sendo que Clinkscale desconheceria a existência do piano da coleção, o que não é improvável já que a informação nos arquivos da John Broadwood & Sons é, por vezes, muito limitada para os registos anteriores a 1817.
Outros exemplos, de finais do século XVIII e primeira metade do XIX, de móveis metamórficos com pianos são os seguintes:
Contador com órgão. Augsburgo, c. 1600 (© Victoria and Albert Museum, London) / Mesa secretária com piano. Èrard Frères. Paris, 1819 (©KMKG-MRAH)
Proveniência / Historial
Atendendo à inscrição patente na placa de nome do piano, esta peça foi produzida pela firma John Broadwood and Son, nas suas instalações em Great Pulteney Street, em Londres, em 1802, data consistente com o número de série, Nº 7073, patente no interior do piano. A partir dessa data segue-se um período de 155 anos em que se desconhece qual terá sido a história do piano.[27]
Em junho de 1957, no número especial da revista The Connoiseur – The Connoisseur. Antique Dealers’Fair and Exhibition Number – aparece um anúncio, de página completa, do antiquário Leonard Knight,[28] com total destaque para um piano de mesa inserido numa mesa de abas Sheraton, atual exemplar da coleção. No texto especificava-se que o piano estava em perfeitas condições para ser tocado.
António de Medeiros e Almeida – que assinava esta revista, tal como outras publicações na área das artes e antiguidades como a Apollo ou The Burlington Magazine –, após ver o anúncio contata o antiquário a 17 de junho, inquirindo sobre a disponibilidade do piano. Dois dias mais tarde Leonard Knight responde afirmativamente e, após uma breve troca de correspondência em que Medeiros e Almeida tenta negociar o preço, a venda é acordada em inícios de julho por £750.
Anúncio de Leonard Knight na revista Connoisseur de junho de 1957 / Carta de António de Medeiros e Almeida ao antiquário Leonard Knight, a 17 de junho de 1957, Arquivo do Museu Medeiros e Almeida
No ano a seguir, este piano, juntamente com outras 29 peças e um numeroso conjunto de vidros, é emprestado por António de Medeiros e Almeida para figurar na “Exposição de Arte Decorativa Inglesa”, organizada pela Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva e que teve lugar no Palácio Azurara, em Lisboa, entre fevereiro e março de 1958, aparecendo referenciado no catálogo com o nº121.[29]
Na época em que o casal Medeiros e Almeida residiu na Rua Mouzinho da Silveira nº6, em Lisboa, o piano esteve, segundo registo fotográfico, no salão da casa, por trás de um sofá, funcionando, presumivelmente, como mesa de encostar e não como instrumento musical. Aquando da transformação de casa em museu, no início da década de 70 do século passado, e enquanto a abertura do museu ao público estava a ser preparada,[30] o piano permanece nesse mesmo lugar, agora com estatuto de peça museológica, sendo posteriormente transferido para a chamada Sala do Lago e, finalmente, para o local onde se encontra atualmente em exposição, no extremo oposto do salão onde estava originalmente.
Samantha Coleman-Aller
Museu Medeiros e Almeida
[1] Clisfford Musgrave, Regency Furniture. 1800 to 1830 (London: Faber and Faber, 1961), p. 39.
[2] Ver Andrew Brunt, Guia dos Estilos de Mobiliário (Lisboa: Editorial Presença, 1982), p. 21.
[3] William Southwell (1736/7-1825), foi um inventor e construtor de instrumentos musicais anglo-irlandês que teve grande importância na evolução do piano de mesa.
[4] Patente nº 2017 de 18 de outubro de 1794.
[5] Os pianos Broadwood da época ostentavam, de modo geral, um revestimento de marfim cuidadosamente selecionado, com uma espessura de entre 2,4 e 3 mm (ver “Key Covers”, Square Piano Tech. A Resource for the Restoration of 18th and early 19th Century Square Pianos, consultado a 01 de fevereiro de 2024, https://www.squarepianotech.com/?page_id=274).
[6] O mecanismo de ação de um piano é o mecanismo que leva aos martelos a tocar as cordas quando as teclas são pressionadas.
[7] Johannes Chrisoph (or John Chrisopher) Zumper (1726-1790) foi um marceneiro de origem saxônica que se estabelece em Londres no início dos anos 50 do século XVIII e conhecido como o pai dos pianos de mesa ingleses.
[8] Patente nº 1379 de 17 de julho de 1783.
[9] Descrição técnica facultada por Christopher Nobbs (Christopher Nobbs, correspondência por correio eletrónico com a autora, 17 de fevereiro de 2024).
[10] No piano de meia cauda Erard da coleção Medeiros e Almeida (FMA 73) existem duas estampilhas gravadas, também no interior da caixa, que provavelmente fazem referência aos marceneiros que trabalharam na construção do móvel e caixa harmónica do piano e cuja funcionalidade seria a de responsabilizar os mesmos pelo seu trabalho. (Ver https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/piano-de-meia-cauda-destaque-dezembro-de-2014/).
[11] Ver “Detail/Drawings”, Square Piano Tech. A Resource for the Restoration of 18th and early 19th Century Square Pianos, consultado a 01 de fevereiro de 2024, https://www.squarepianotech.com/?page_id=336.
[12] O piano de mesa não tem sido, desde que se encontra em exposição no Museu, alvo de qualquer intervenção de restauro ou objeto de análise formal por parte de um restaurador qualificado. As apreciações aqui apresentadas são fruto das observações da autora e dos generosos comentários do restaurador Christopher Nobbs, realizados com base em imagens fotográficas (Christopher Nobbs, correspondência por correio eletrónico com a autora, janeiro-fevereiro de 2024).
[13] Durante o estudo desta peça foi realizada uma limpeza superficial do interior do piano, porém, para uma limpeza mais aprofundada, seria necessário desmontar peças do piano, operação a ser realizada por um restaurador experiente.
[14] Existem muitas discrepâncias em relação à data em que Broadwood fabrica o primeiro pianoforte. David Wainwright, no seu livro Broadwood by Appointment (Londres: Quiller Press, 1982) aponta para 1770, enquanto que Michael Cole, em Broadwood Square Pianos (Cheltenham: Tatchley Books, 2005), assinala 1780 como o início da produção de pianos por parte da firma.
[15] Katelyn Clark, “The Early Pianoforte School in London’s Musical World, 1785-1800: Technology, Market, Gender, and Style” (PhD diss., University of Toronto, 2019), p. 33.
[16] Tradução da autora.
[17] A última nomeação como provedores reais foi realizada pela rainha Isabel II, sendo que dois anos após a morte desta a nomeação terá de ser revista pelo novo monarca.
[18] Após conhecer Beethoven em 1817 durante uma viagem a Áustria, Thomas Broadwood envia ao compositor e pianista um piano de 6 oitavas (nº 7362), da Broadwood & Sons, que pertenceu posteriormente ao também compositor Franz Liszt e hoje em dia faz parte da coleção do Museu Nacional de Hungria (“The Musical Instrument Collection. The Historical Repository”, Hungarian National Museum, consultado a 15.02.2024, https://mnm.hu/en/collections/historical-repository/musical-instrument-collection).
[19] Thomas Sheraton, Cabinet Dictionary (Londres: W. Smith, 1803), pp. 305-306. A destacar que as medidas indicadas por Sheraton, 5 a 6 pés (152,5 a 182,9 cm.), são muito próximas das medidas da mesa da coleção Medeiros e Almeida, 153 cm. (206 cm. com as abas abertas).
[20] Idem, p. 284.
[21] Atualmente o termo “mesa de encostar” é aplicado à “mesa que só apresenta decoração na frente e ilhargas, sendo a parte posterior i.e., as costas, não decoradas” (VV.AA. Normas de inventário. Mobiliário (Lisboa: IPM, 2004), p. 76.
[22] Para mais informação sobre a transformação de instrumento a instrumento-móvel ver R.S. Clouston, “Keyboard Instruments and their Relation to Furniture”, The Burlington Magazine for Connoisseurs Vol.8 No.32 (novembro 1905), pp. 110-118.
[23] Em correspondência com Sarah McGrady, gestora de coleções de Ham House, foi-nos transmitido que existe um projeto de transferir esta peça para a sala de estar da casa, onde o piano estava originalmente (Sara McGrady, correspondência por correio eletrónico com a autora, janeiro de 2024).
[24] Christopher Nobbs, “Square piano encased in a sofa-table, Broadwood 1801. Inv. No. H.H. 433”, relatório de conservação (2001).
[25] Martha Novak Clinkscale (1933-2010) foi uma musicóloga, investigadora e professora de piano, especialmente reconhecida pelas suas publicações e pela criação da base de dados Early Pianos Online, ainda em ativo.
[26] Early Pianos Online, CEP-569, www.EarlyPianos.org.
[27] De modo a tentar perceber qual o encomendante ou primeiro proprietário deste piano, assim como outros pormenores do seu fabrico, foi contactada a Broadwood Archive Services para consulta dos arquivos da John Broadwood & Sons. Porém, à data de publicação deste artigo, ainda não temos novas informações.
[28] Leonard Knight foi um antiquário, com sede em King Street, St. James, Londres, membro da associação britânica de antiquários (British Antique Dealers’ Association).
[29] Exposição de Arte Decorativa Inglesa, Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, fevereiro-março de 1958.
[30] Abertura que tem lugar no dia 1 de junho de 2001.
Bibliografia
ARONSON, J. The Book of Furniture and Decoration: Period and Modern. Nova Iorque: Crown Publishers, 1941
BRUNT, A. Guia dos Estilos de Mobiliário. Lisboa: Editorial Presença, 1982
Catálogo da Exposição de Arte Decorativa Inglesa. Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo, 1958.
CLARK, K. “The Early Pianoforte School in London’s Musical World, 1785-1800: Technology, Market, Gender, and Style.” PhD Diss., University of Toronto, 2019.
CLOUSTON, R.S. “Keyboard Instruments and Their Relation to Furniture”. The Burlington Magazine for Connoisseurs, Vol.8, Nº32, pp.110-119. Londres: Burlington Magazine Publications, 1905.
COLE, M. Broadwood Square Pianos. Cheltenham: Tatchley Books, 2005
EDWARDS, R. The Dictionary of English Furniture, Vol.3. Londres: Country Life, 1927
HARVEY, D. “A Guide to Sofa Tables with David Harvey”. Antique Collecting Magazine. 08.12.2021. https://antique-collecting.co.uk/2021/12/08/guide-to-sofa-tables/
LIBIN, L. “Keyboard Instruments”. The Metropolitan Museum of Art Bulletin, Vol. XLVII, Nº1. Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 1989.
MUSGRAVE, C. Regency Furniture. 1800 to 1830. Londres: Faber and Faber, 1961
NOBBS, C. Relatório de conservação “Square piano encased in a sofa-table, Broadwood 1801. Inv.No. H.H.433”. 2011.
SCHOTT, H. Catalogue of Musical Instruments in the Victoria and Albert Museum. Part I: Keyboard Instruments. Londres: V&A Publications, 1985.
SHERATON, T. The Cabinet-maker and Upholsterer’s Drawing-book: in four parts. Londres: T. Bensley, 1802
SHERATON, T. Cabinet Dictionary. Londres: W. Smith, 1803
The Connoisseur. Antique Dealers’ Fair and Exhibition Number. Londres: The Connoisseur, Junho 1957
WAINWRIGHT, D. Broadwood by Appointment. Londres: Quiller Press, 1982
Webgrafia
Christie’s. “A George III Chinese Lacquer and Japanned Small Piano Forte”. Consultado a 11.01.2024
https://www.christies.com/en/lot/lot-6153770
Early pianos online. Consultado a 11.01.2024
https://earlypianos.org/References/StaticView/HomePage
Friends of Square Pianos. Consultado a 31.01.2024
https://www.friendsofsquarepianos.co.uk/
Hammond Harwood House Museum. “The Piano Forte”. Publicado em 11.01.2022
https://hammondharwoodhouse.org/the-piano-forte/
Hungarian National Museum. “The Musical Instrument Collection. The Historical Repository”. Consultado a 15.02.2024
https://mnm.hu/en/collections/historical-repository/musical-instrument-collection
Metropolitan Museum of Art. “Square Piano. John Broadwood & Sons. 1801”. Consultado a 11.01.2024
http://www.metmuseum.org/art/collection/search/505615
National Trust Collections. “Pianoforte. John Broadwood and Sons”. Consultado a 11.01.2024
https://www.nationaltrustcollections.org.uk/object/1140229
Royal Museum of Arts and History. “Square pianoforte”. Consultado a 31.01.2024
Square Pianos. Michael Cole. Consultado a 11.01.2024
Square Piano Tech. A Resource for the Restoration of 18th and early 19th Century Square Pianos. Consultado a 01.02.2024
https://www.squarepianotech.com/
The Art Museums of Colonial Williamsburg. “Piano in the form of a chest of drawers”. Consultado a 31.01.2024
The Cobbe Collection. “Irish piano”. Consultado a 11.01.2024
https://www.cobbecollection.co.uk/collection/10-piano/
The Cobbe Collection. “Bizet’s Composing Table Piano”. Consultado a 11.01.2024
https://www.cobbecollection.co.uk/collection/41-bizets-composing-table-piano/
The David Roche Foundation. “John Broadwood and Son. Sofa table piano”. Consultado a 11.01.2024
The Ontario Museum. “Rectangular piano”. Consultado a 31.01.2024
Victoria and Albert Museum. “Cabinet Organ”. Consultado a 31.01.2024
https://collections.vam.ac.uk/item/O58985/cabinet-organ-unknown/
COMO CITAR / HOW TO CITE:
Coleman-Aller, Samantha. Um Piano de Mesa: Instrumento Musical e Peça de Mobiliário. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida, 2024. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/piano-de-mesa/.
NOTAS
We extend our heartfelt gratitude to Christopher Nobbs, restorer and maker of harpsichords, clavichords, and early pianos, for his generous insights and the sharing of his report on the square piano encased in a sofa-table in Ham House (Richmond, England). / Expressamos o nosso sincero agradecimento a Christopher Nobbs, restaurador e fabricante de cravos, clavicórdios e pianos antigos, pelas suas generosas contribuições e pela partilha do seu relatório sobre o piano de cauda inserido numa mesa sofá na Ham House (Richmond, Inglaterra).
A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@museumedeirosealmeida.pt.
Broadwood & Son
1802
Londres (Inglaterra)
Madeira (mogno, nogueira, pau-cetim, buxo, ébano), marfim, latão, aço, chumbo, couro, feltro, veludo de seda
153 (206 com as abas abertas) x 58,5 x 78,5 cm
FMA 216