Prato de porcelana “kraak” ou “kraakporselein” de grande dimensão e aba levemente recortada, decorado em ambas as faces a azul-cobalto sob o vidrado.
A porcelana China de exportação
A porcelana da China era conhecida na Europa muito antes de existir um comércio direto com a China, sendo a via de chegada nomeadamente através dos reinos pelos quais passava a Rota da Seda. Durante os séculos XV e XVI as porcelanas eram apreciadas no Ocidente como objetos de luxo e, em ocasiões, montados em prata e prata dourada como peças decorativas. Após a chegada dos Portugueses à China em 1513 e o estabelecimento de rotas comerciais marítimas, surgem uma serie de companhias de navegação especializadas no comércio entre a Europa e o Oriente – a mais destacada das quais a VOC, Dutch East India Company – e embora as primeiras compras sejam porcelanas executadas ao gosto local, os chineses rapidamente produzem porcelanas especificamente para exportação. Estas peças têm uma manufatura diferente já que, de forma geral, a nível decorativo não têm o habitual significado simbólico e a nível técnico, não têm o apuramento das porcelanas realizadas para o mercado interno.
Embora já durante o século XVI chegassem à Europa grandes quantidades de peças de porcelana, estas eram utilizadas principalmente como balastro, sendo carregadas nas partes baixas dos navios (também porque, contrariamente ao resto da mercadoria, não sofriam tanto com a água), sendo que o verdadeiro interesse para o mercado entre a China e a Europa nessa altura eram as especiarias, o chá, a seda, as lacas e os marfins que eram transportados na parte superior e mais protegida das embarcações.
Durante o reinado Wanli (1573-1620), as encomendas imperiais para os fornos de Jingdezhen vêm-se reduzidas e, como consequência, terão lugar uma serie de revoltas, que finalmente forçam o encerramento dos fornos Imperiais, sendo que uma grande quantidade de artesãos ficam disponíveis para trabalhar nos fornos privados e responder à crescente procura do mercado ocidental. Aquando da queda da dinastia Ming, os europeus viram-se para o comércio com o Japão e é com o Imperador Kangxi (1662-1772), da dinastia Qing, que a indústria da porcelana se reorganiza novamente na China.
Com o aparecimento de fábricas de porcelana na Europa – a primeira das quais a Fábrica de Porcelana de Meissen fundada em 1710 – a procura de porcelana chinesa decai, embora a abertura de novos mercados, como o comércio com a América em finais do século XVIII, mantenha ativo o mercado de porcelanas entre o Oriente e o Ocidente.
A porcelana ‘kraak’
A primeira referência à porcelana kraak (craek e caraek) aparece num memorando de 1638, no qual o diretor da VOC especifica qual o tipo de porcelana mais procurada na Holanda. Em 1639, num documento da Dutch East India Company aparece o termo craecqporceleijn, sendo que a partir de 1675 o termo kraeckwerck (e as suas variantes) é já de uso comum.
Embora existam várias teorias em relação à origem do termo “kraak”, a teoria mais consensual relaciona-o com os navios mercantes portugueses – as carracas -, os quais realizavam o comércio com a Ásia. Em concreto, alguns autores fazem a ligação do nome com a captura por parte dos holandeses de duas “carracas” portuguesas – a São Tiago e a Santa Catarina -, cuja carga foi leiloada suscitando pela primeira vez um interesse de grande escala pela porcelana na Europa. Hoje em dia, entende-se como porcelana kraak a porcelana chinesa para o mercado externo produzida no final da dinastia Ming, exportada em grandes quantidades para Europa, com certas particularidades técnicas e decorativas que a caracterizam.
As porcelanas kraak são maioritariamente peças utilitárias – embora também existam porcelanas kraak puramente decorativas -, nomeadamente pratos e taças de dimensões variáveis, mas também outras tipologias como jarros ou garrafas, sendo estas formas fechadas de mais difícil classificação. A qualidade é muito variável, existindo peças de excelente qualidade e outras de manufatura irregular. Estas porcelanas são de paredes delgadas, o vidrado é brilhante e fino, de matiz azulado e com tendência a desprender-se nas bordas. As peças apresentam pequenos orifícios produzidos pela contração do esmalte durante a cozedura e na base é frequente encontrar areias aderidas. A grande maioria das porcelanas kraak são decoradas a azul sob o vidrado, podendo dar-se diferentes tonalidades, mas também existem alguns exemplos de kraak com esmaltes coloridos. Normalmente os desenhos eram delineados em tom mais escuro e por vezes realizava-se um sombreado por meio de ponteado para dar um efeito de claro-escuro.
O mais característico do esquema decorativo da porcelana kraak é a divisão das peças em painéis com desenhos alternados e que, em pratos e taças, irradiam de uma cena central. Dado ser uma porcelana destinada à exportação e realizada em fornos privados, a decoração é bastante variada e embora os motivos decorativos sejam muitas vezes variações dos motivos tradicionais da porcelana chinesa – flores estilizadas, símbolos auspiciosos, paisagens e animais – a sua simbologia não pode ser lida da mesma forma que a das peças para o comércio interno. Pelo mesmo motivo, as marcas de reinado neste tipo de porcelana são raras, sendo a mais comum a da garça, embora possam aparecer outras. Existem algumas – poucas – peças de porcelana kraak armoriadas, maioritariamente para o mercado português já que foram estes os primeiros a importar este tipo de porcelana, mas também, existem peças destinadas ao mercado espanhol.
O prato da Casa-Museu
O que atrai a atenção para este prato pertencente à coleção da Casa-Museu Medeiros e Almeida é a sua grande dimensão. Porem este tamanho não é inusual em peças kraak, cujas dimensões, embora variáveis, teriam sofrido uma padronização aquando da normalização da produção deste tipo de porcelanas para o mercado europeu.
O prato é decorado em ambas as faces a azul de cobalto sob o vidrado. Os desenhos são delineados com um tom azul mais escuro e completados com tons mais claros que, em algumas partes adquirem um matiz violáceo. Em alguns pormenores – como nas fendas dos pêssegos – nota-se o uso de pequenos pontos para dar intensidade e sombreado, o que é próprio de peças de certa qualidade nas quais houve um maior cuidado na pintura.
O esquema decorativo da peça segue as linhas gerais da tipologia kraak. O fundo, ligeiramente convexo, delimitado por um duplo círculo e emoldurado por oito reservas com decoração geométrica, decora-se com uma paisagem pantanosa com três patos e plantas aquáticas e três pássaros em voo picado junto a uma cascata. O covo e a aba são divididos em oito grandes painéis lobulados – nos quais se alternam representações simbólicas como ramos com pêssegos, uma folha de artemísia, um rolo ou um par de livros – e painéis estreitos com o nó infinito terminado por fitas, um dos oito objetos auspiciosos do Budismo. No tardoz sete painéis ovais contendo fungos encimados por pontos, intercalados por painéis verticais com lingzhi estilizados, executados de forma muito esquemática, à base de pinceladas rápidas. Pode afirmar-se que o programa simbólico deste prato gira em torno da longevidade: os pêssegos – que aqui começaram a sua transformação em girassóis – são o fruto da imortalidade, as aves representam calor e vida e os lingzhi são os cogumelos da imortalidade. Note-se, porém, que, este tipo de peças era realizado para o mercado externo que as adquiria pela sua beleza estética e uso e não pela sua simbologia e embora os motivos fossem os mesmos que na porcelana para o mercado interno, o cuidado na representação e na qualidade da pintura não é comparável.
Em relação às características técnicas, este prato apresenta todas as peculiaridades das porcelanas kraak: dimensões, esmalte azulado, orifícios produzidos pela contração do esmalte, descamação do esmalte nos bordos e presença de estrias concêntricas na base devidas ao trabalho do torno.
Proveniência
Este prato foi adquirido em leilão da Soares & Mendonça – Rua Luz Soriano 53, Lisboa –, a 24 de março de 1956. Neste mesmo leilão Medeiros e Almeida adquiriu outras peças de cerâmica chinesa para integrar a sua coleção – um pote “Hu” em terracota vidrada da dinastia Han, uma taça em grés vidrado da dinastia Song, um par de poncheiras Kangxi e um prato Kangxi família verde -, assim como dois termómetros-barómetros ingleses.
A Soares & Mendonça Lda., fundada em 1937 é a mais antiga agência de leilões e avaliações em Portugal.
Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
PINTO, Carla., Alguns Aspectos da Arte no Período Ming aquando da chegada dos portugueses a Macau, in Revista de História da Arte nº9, Lisboa: Instituto de História da Arte, 2012
PINTO DE MATOS, Maria Antónia (Coord.), A Casa das Porcelanas. Cerâmica Chinesa da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa e Londres: IPM – Philip Wilson Publishers, 1996
PINTO DE MATOS, Maria Antónia e SALGADO, Mary, Porcelana Chinesa da Fundação Carmona e Costa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002
TERREROS, Eladio, Motivos simbólicos representados en la porcelana oriental, siglos XVI y XVII. Centro Histórico de la Ciudad de México in Boletín del Gabinete de Arqueología nº 9, La Habana: Oficina del Historiador, 2013
VV.AA., Caminhos da Porcelana. Dinastias Ming e Qing, Lisboa: Fundação Oriente, 1998
VV.AA., Kraak Porcelain. The Rise of Global Trade in the Late 16th and Early 17th Centuries, Londres e Lisboa, Jorge Welsh Books, 2008
Webgrafia
Munger, Jeffrey and Alice Cooney Frelinghuysen, East and West: Chinese Export Porcelain in Heilbrunn Timeline of Art History, Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 2000 – http://www.metmuseum.org/toah/hd/ewpor/hd_ewpor.htm
Página electrónica do The Gotheborg.com Help and Information Website and Forum – http://www.gotheborg.com/glossary/kraak.shtml
Página electrónica do Asian Art – Newspaper for collectors, galleries and museums; Zhangzhou Ware: Found in The Philippines http://asianartnewspaper.com/article/zhangzhou-ware-found-philippines
China, Dinastia Ming, Reinado Wanli, 1610-1620
China
Porcelana com decoração azul sob vidrado
Alt. 10 cm. / Diam. superior 48,7 cm / Diam. base 26,5 cm