Atrib. Pierre-Simon Gounouilhou (1779-1847) – movimento do autómato
Genebra c. 1805 – 1820
Ouro, esmaltes, latão e aço
Diam. 6cm
Relógio de bolso de duas faces; mostrador simples em esmalte com numeração árabe e reverso com autómato, em ouro e esmalte, com representação de interior de cozinha com corda própria. Mecanismo de latão e aço com escape de cilindro e oscilador de balanço.
O desejo de medir ou controlar (?) o tempo levou o Homem ao longo de séculos a inventar sistemas que lhe permitissem concretizar através de um aparelho ou instrumento a medição da passagem de algo incorpóreo, regido por um ciclo natural de noite e dia. Dos instrumentos solares aos de água, durante séculos muitas foram as formas criadas para tentar medir o tempo.
Só no século XIII, terá surgido uma novidade que irá revolucionar a medição do tempo: a invenção do relógio mecânico, que todavia, permanece envolta em mistério, quanto ao local de origem. É nesta época que várias referências literárias são feitas à existência de relógios mecanizados nas torres das igrejas.
Esta invenção leva a uma alteração do quotidiano, em particular nos meios urbanos, que passam a reger-se por uma sucessão de divisões do tempo e não do ciclo natural (preferencialmente usado no campo) da noite e do dia. Estes relógios não tinham ponteiros e as horas eram dadas pelo toque dos sinos.
Este tipo de mecanização está na origem dos designados Jacquemarts, personagens mecânicas que tocam nos sinos com um martelo. Se, inicialmente eram duas figuras humanas, progressivamente vão sendo criadas novas personagens e mais tarde, cenas animadas que anunciam as meias horas e os quartos de hora. Este modelo de mecanismo adquiriu grande popularidade na Europa disseminando-se por locais visíveis para a maior parte da população como torres de igrejas, castelos, torres em portas de muralhas, tendo subsistido em muitos casos até à actualidade.
São os Jacquemarts que estão na base de uma invenção posterior: o autómato, máquina que apresenta figuras que se movem, em geral accionadas por um mecanismo de relojoaria, tendo-se tornado muito popular junto das elites europeias a partir do século XVI. Estes autómatos podiam apresentar-se tanto sob a forma de relógio, como de surtout de table (centro de mesa) de grande aparato, verdadeiras peças de ourivesaria animada, que entretinham e distraíam os convidados entre pratos nos demorados banquetes. Cenas mitológicas, carros triunfais, cenas de Natividade, navios, fazem parte dos temas mais em voga. Muitas destas peças foram fabricadas em Augsburgo e Nuremberga, cidades que se especializaram neste tipo de produção, realizando peças artísticas em materiais diversos materiais, de grande complexidade técnica e beleza artística.
Havia ainda relógios de mesa com autómatos também eles fabricados em materiais caros como ouro, prata e pedras, que adquiriram também, grande fama na Europa sendo ainda frequentemente utilizados como presentes diplomáticos no médio e extremo oriente, regiões onde eram muito apreciados.
O século XVIII tornou-se o século de ouro deste tipo de produção, no seu final, assistimos ao desenvolvimento da Suíça como país produtor de autómatos, onde prolifera a moda de objectos luxuosos com música e das caixas (com ou sem relógio) das quais saem da tampa passarinhos que cantam, rodopiam, batem as asas e abrem o bico (a Casa-Museu possui três exemplares desta tipologia).
Genebra constitui-se como o principal centro produtor destes desejados objectos de luxo, no bairro da “Fábrica” ao qual afluíam artistas vindos de todo o país, aí se criavam relógios, joias e caixinhas, todos animados. Não eram apenas luxuosos pelos seus mecanismos que lhes permitiam mexer, mas também, pelos materiais de que eram feitos como ouro, prata, cristal de rocha, pedras preciosas, pérolas e ainda, pelas técnicas decorativas empregues: guilhoché (gravação de motivos decorativos repetitivos) e esmaltagem com pintura miniaturizada.
O aparecimento do relógio de bolso remonta ao século XVI, produzido no sul da Alemanha em centros como Augsburgo, Nuremberga e Munique. Resulta da miniaturização dos relógios transportáveis que já existiam, providenciando-lhes ainda uma protecção para o mostrador e colocando-lhes uma corrente ou fita de forma a poderem ser usados na pessoa. Objectos de luxo (por vezes) de materiais caros ricamente decorados por arabescos florais e vegetalistas, não se limitavam a medir a passagem do tempo mas, assumiam um relevante papel de aparato e status. Da forma em tambor, à redução de tamanho e ao seu arredondamento levou ao aparecimento do relógio de bolso que se podia pendurar à cintura ou ao pescoço.
A decoração destes relógios evolui para o uso de outros matérias como as pedras as pérolas e a pintura miniaturizada em esmalte. A transposição para estes objectos de cenas animadas automatizadas foi apenas mais um passo na sua evolução decorativa e mecânica, que da simplicidade das personagens que se movem, progressivamente se transforma em cenas mais complicadas, pressupondo a integração de maior número de complicações no mecanismo – são famosas as cenas de cariz erótico.
Mecanismos de relógios são igualmente colocados noutro tipo de peças como caixas (de tabaco, bombons, moscas) ou frascos de perfume passando estes a terem também como propósito ver as horas, cujo mostrador frequentemente estava dissimulado sob uma tampa decorada. Designam-se por objectos “de virtude” (“de vertu”) associando em geral estética e mecânica, sendo frequente a decoração por autómatos e mais frequente ainda, terem música.
Pierre-Simon Gounouilhou
Pierre-Simon Gounouilhou relojoeiro de renome, de origem protestante, nasceu em França (Bergerac / Dordonha) em 1779. Mudou-se para Genebra, Suíça em 1799, onde se instalou (Quai Neuf en Isle 241) e dedicou ao fabrico de relógios de cilindro de repetição, em ouro, de repetição musical, com complicações, autómatos e relógios de carruagem dando grande contributo à relojoaria suíça da época.
Relojoeiro de topo dada a sua criatividade e capacidade técnica, foi um dos poucos fabricantes – junto com Dubois & Fils (fundado em Le Locle em 1785) – que se dedicou nesta época à produção de relógios autómatos de temáticas diversificadas, muito apreciados tanto na Europa como noutros mercados como os impérios otomano e chinês para onde eram exportados em grandes quantidades por agentes especializados.
Morreu em 1847 em Peissy /Satigny na Suíça.
The (Dutch) Kitchen
Possui a Casa-Museu na sua colecção de relojoaria um dos (apenas) doze relógios que se conhecem no mundo, designados por “cozinha” ou por vezes também referenciados como Dutch Kitchen ou cozinha holandesa (a origem desta atribuição é desconhecida), temática que atingiu grande popularidade à época, possuindo diferentes versões, cujos autómatos estão atribuídos a Pierre-Simon Gounouilhou.
Relógio com caixa em ouro, de dupla face com mostrador em esmalte branco com numeração árabe (indicação de horas: 1 a 12 e quartos: 15-30-45-60) e ponteiros tipo Breguet – ponteiros “maçã” (círculo antes da ponta) em aço.
A face com autómato é decorada por pintura miniaturizada em esmaltes e num trabalho de ouro cinzelado amarelo e rosa, representando o interior de uma cozinha. Da decoração em baixo-relevo com elementos em ouro destaca-se ao centro uma lareira com peças de carne penduradas ao fumeiro e um frango a assar no espeto. Junto à lareira, uma figura feminina (criada) sentada com um almofariz a pisar especiarias, na parede à direita, dentro de uma roda corre um pequeno cão, no chão outro cão brinca com um esquilo, junto a uma cesta com legumes, encostadas à parede, uma vassoura e uma arca. A pintura a esmaltes policromados compõe o cenário; o tecto travejado, a parede com prateleiras com diversos objectos como taças, jarras, potes, um sapato e livros, destacando-se a presença de uma ampulheta pendurada na parede, objecto simbólico na iconografia do Tempo. À esquerda abre-se uma janela por onde espreita uma figura feminina representada numa escala um pouco desproporcionada.
É neste ambiente que se escondem as 5 funções deste autómato. Uma vez accionado; o braço da criada (articulado) movimenta-se para cima e para baixo simulando a utilização do almofariz; a roda onde corre o cão gira; esta está ligada a um fuso vertical que se movimenta em espiral; que, por sua vez, está ligado ao espeto onde assa um frango fazendo-o rodar; frente à lareira onde o lume crepita alegremente.
O autómato tem corda própria com entrada no mostrador.
As outras versões deste tema são muito semelhantes, apresentando variações na decoração da cozinha, na actividade da senhora ou no tipo de carne no espeto, tal como podem apresentar também, um número variável de funções, sendo os de 5 funções os mais simples (o da FMA) e os de 7 os mais complicados.
As peças foram desde cedo descritas em publicações de referência como : “Le Monde des Automates“, Paris (1928) de Alfred Chapuis e Edouard Gelis e em: “Histoire et Technique de La Montre Suisse“, Suíça (1945), de Eugène Jaquet e A. Chapuis, investigadores de renome da relojoaria.
O Museu Patek Philippe em Genebra, possui um destes relógios no qual, para além das funções iguais às do da Casa-Museu, apresenta ainda outra (6); uma fonte que jorra água, assim como, uma decoração pintada diferente onde se vê uma porta aberta (em vez da janela) com uma figura masculina.
Proveniência
Adquirido em 30 de Setembro de 1975, em leilão na Uto Auktionen (lote 185), realizado no Dodler Grand Hotel em Zurique na Suíça.
Nota: Agradecemos a colaboração do Museu Patek Philippe, Genebra, no fornecimento de dados sobre a peça do seu acervo (n.º inventário S-962).
NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
Christie’s Review of the Season, 1983
BAILLIE, G. H. – Watchmakers and Clockmakers of the World, N.A.G. Press Ltd. Londres, 1966
FLÉCHON, Dominique – The Mastery of Time. Flammarion, Paris, 2011
MAINGOT, Éliane – Les Automates. Librairie Hachette, [s/L], 1959
MEIS, Reinhard – Les Montres de Poche – de la montre-pendentif au tourbillon. Office du Livre, Fribourg, 1980
OLIVEIRA, Fernando Correia de – Dicionário de Relojoaria o universo do tempo e dos seus medidores. Âncora Editora, [s/L), 2007
THOMPSON, David – Watches in the Ashmolean Museum. Ashmolean Museum, Oxford, 2007
https://www.patek.com/fr/entreprise/patek-philippe-museum
https://catalog.antiquorum.swiss/en/lots?q=dutch+kitchen
www.invaluable.com/auction-lot/attributed-to-pierre-simon-gounouilhou-59-mm-13-61-c-1634e34ad4
https://www.uhren-muser.de/en/45013
http://fr.worldtempus.com/lexique/aiguille-pomme-3.html
Pierre – Simon Gounouilhou (1779-1847)
c. 1805-1820
Genebra, Suíça
Ouro, esmaltes policromados, latão e aço
Diam. 6cm