DESTAQUE JUNHO 2024
Relógio com châtelaine
DESTAQUE JUNHO 2024
Relógio com châtelaine
Entre os mais de 600 relógios que integram a coleção Medeiros e Almeida, destacamos aqui um relógio com châtelaine assinado “Barwise Londres No 10 798”, habitualmente em exposição permanente na vitrina 2 da Sala de Relógios do Museu.
Com caixa em ouro e decorado com guilhochado com esmalte azul enriquecido com aplicações de prata, diamantes e pérolas, sobressai neste relógio a presença de um “hair memento”, um medalhão com cabelos louros entrançados.
Relógio com châtelaine em exposição. Museu Medeiros e Almeida, março 2024.
Relógio com châtelaine (FMA 7811)
Este elegante relógio ostenta uma caixa em ouro de 18 quilates, decorada na parte posterior por esmalte transparente azul royal sobre guilhoché, com orla formada por meias pérolas e cercadura de esmalte branco. Ao centro, medalhão delimitado por diamantes de lapidação em talhe rosa, que contém fios de cabelo loiro elegantemente entrançados e, rodeando-o, uma grinalda de folhas e flores formada por aplicação de prata e diamantes, também de lapidação em talhe rosa. Na parte frontal da caixa, repete-se a orla de meias pérolas sobre esmalte azul com cercadura branca, emoldurando o mostrador.
O mostrador, todo ele em ouro, apresenta guilhoché mate ao centro e anel das horas em ouro picotado brilhante, com numeração árabe de algarismos em ouro polido. No exterior, anel com a marcação dos minutos por meio de pontos, um maior a cada intervalo de cinco minutos. Junto do número 3, furo para a corda.
Os ponteiros são também em ouro, com o indicador das horas terminado em espada e o ponteiro dos minutos em forma de lanceta (spade hands).
Frente e verso de relógio. Barwise, c. 1835-45. Museu Medeiros e Almeida, FMA 7811
O movimento possui placa traseira completa, em latão dourado, com pilares cilíndricos e oscilador de balanço monometálico de três braços com diamante. O escape é de reencontro, com espiral plano e fonte de energia por corda e fuso.
A placa traseira ostenta assinatura gravada “Barwise London” e, em placa própria, “No 10 798”.
Relógio com châtelaine. Barwise, c. 1835-45. Museu Medeiros e Almeida, FMA 7811
A châtelaine que acompanha este relógio configura-se a partir de duas placas octogonais esmaltadas a azul, com moldura de meias pérolas e ornamentação de diamantes formando grinaldas de flores e folhas, seguindo o mesmo esquema decorativo do relógio. As placas estão unidas por três correntes de elos circulares, com pérolas intercaladas nas correntes externas e pequenas placas esmaltadas a azul na corrente do centro. A placa maior apresenta na parte posterior um alfinete e, a partir dela, pendem cinco correntes rematadas em dois berloques, dois selos (um com monograma por identificar e outro com leão sejant erect sobre virol) e a chave do relógio.
Pormenor da placa maior e pingentes da châtelaine. Museu Medeiros e Almeida, FMA 7811
Pormenor dos selos da châtelaine, Museu Medeiros e Almeida, FMA 781
Embora atualmente desaparecido, sabemos que este relógio com châtelaine tinha um estojo próprio, como era habitual para este tipo de peças, provavelmente em marroquim e com o interior forrado a seda, similar ao pertencente a outro relógio com châtelaine da coleção (FMA 1159).
Estojo de relógio com châtelaine. Museu Medeiros e Almeida, FMA 1159
O estojo não aparece mencionado no catálogo do leilão da Christie’s de 1983[1], onde António de Medeiros e Almeida adquire o relógio, nem em qualquer outra documentação alusiva a esta compra. Porém, no catálogo do leilão da Antiquorum celebrado no ano anterior em Genebra, onde este relógio também esteve à venda, sim é mencionada a existência da caixa: “BEAUTIFUL GOLD, ENAMEL, DIAMONDS AND PEARLS WATCH WITH CHATELAINE, signed BARWISE LONDON, No. 798, WITH ITS CASE, c. 1829”.[2]
Barwise: uma família de relojoeiros[3]
A casa Barwise, em Londres, foi fundada em c. 1780, por John Barwise, filho do relojoeiro Lot Barwise.[4]
Nascido em Cockermouth, Cumberland, em c. 1756, John Barwise muda-se para Londres com 24 anos. Em 1790, ano do seu casamento com Elizabeth Weston – filha do esmaltador William Weston, que trabalhava com ele –, a firma está registada em St. Martin’s Lane, onde também mora e onde morre em 1820.
Um episódio que dá conta do sucesso e reputação de Barwise à época é o facto de ter sido um dos quinze relojoeiros selecionados pelo Board of Longitude,[5] em 1805, como júri na disputa entre os relojoeiros John Arnold (1736-1799) e Thomas Earnshaw (1749-1829) relativa às qualidades dos cronómetros das suas correspondentes autorias. É também nestas primeiras décadas do século que a firma atinge o seu apogeu no comércio de relógios de alta qualidade e procura estabelecer-se como fornecedores reais, como atestam duas etiquetas de relógio que apresentam as armas reais e nas quais se apresenta como relojoeiro de vários membros da família real. Segundo alguns investigadores, em 1820, com a subida de Jorge IV ao trono, Barwise é de facto nomeado fornecedor do rei.[6]
Após a morte de Barwise o negócio é continuado por dois dos seus filhos, Weston Barwise (1793-1826) e John Barwise (1795-1869), que já figuravam como sócios, o que justifica a assinatura “Barwise & Sons” patente em alguns relógios.[7]
Weston Barwise morre prematuramente em 1826, com apenas 33 anos, o que deixa a firma a cargo do seu irmão que, ao longo dos anos, se associa com parceiros muito diversos, entre os quais o inventor escocês Alexander Bain (1810-1877), junto de quem obtém a patente de um modelo de relógio eletromagnético (patente Nº 8783 de janeiro de 1841) e o suíço Pierre Frédéric Ingold (1787-1878), fundador da British Watch and Clockmaking Company, empresa ativa entre 1842 e 1845 cujo objetivo era estabelecer uma fábrica em Londres para produzir relógios em massa e de forma industrial.
É, provavelmente, a sua aventura com Ingold que leva John Barwise à bancarrota, o que o obriga a transferir em 1855 o negócio com seu nome para a companhia Lattey & Co., sendo que o nome comercial, “John Barwise”, sobrevive sob diversos proprietários até 1988.
Na (escassa) literatura sobre a firma Barwise de Londres existe uma discrepância de critérios no uso e interpretação da palavra “relojoeiro” (clock and watchmaker), sendo que muitas vezes é difícil decifrar qual o papel exato dos diversos membros desta família no universo relojoeiro inglês de finais do século XVIII e primeira metade do século XIX. Porém, parece que o mais plausível e mais comummente aceite atualmente é que John Barwise sénior, apesar de, presumivelmente, ter aprendido o ofício de relojoeiro com o seu pai, Lot Barwise, se tenha estabelecido como comerciante de relógios aquando da sua chegada a Londres. Há que esclarecer que, neste contexto, a definição de comerciante não é a de um simples vendedor de relógios, mas sim a de uma pessoa com sólidos conhecimentos do ofício e com uma consistente experiência no mundo da relojoaria que realiza as encomendas, coordena o trabalho e lida com o comprador final. O motivo do nome “Barwise” (“John Barwise” ou “Barwise & Son”) aparecer inscrito no mecanismo ou no próprio mostrador dos relógios era prática frequente entre os comerciantes da época, assim como também o era a criação de números de série próprios, o que não só respondia a uma estratégia de publicidade, como também ao fato de assumir a responsabilidade última sobre as peças.
Embora mais conhecidos pelos seus relógios de bolso, como a peça em estudo ou o relógio da imagem a baixo, os Barwise dedicaram-se também à venda de outro tipo de relógios e cronómetros, como fica patente nos seguintes exemplos atribuídos a esta casa:
Relógio de bolso (Nº158), John Barwise, Londres, 1799-1800. Nº Inv. L2015-3345 ©The Board of Trustees of the Science Museum
Problemáticas de classificação inerentes a este relógio (FMA 7811)
Aquando da compra do relógio em 1983, este estava classificado no catálogo de venda da Christie’s como sendo de c. 1800, data provavelmente relacionada com a errónea leitura da numeração patente na placa traseira do relógio como sendo “Nº 798”. No catálogo da Antiquorum do ano anterior, embora o número de série esteja igualmente incorreto, a data proposta é de c. 1829.
Durante muitos anos a peça esteve assente no inventário do Museu Medeiros e Almeida como sendo de fabrico inglês, da autoria de John Barwise e datada de c. 1810-1820. Recentemente esta classificação foi revista tendo por base, em primeiro lugar, uma leitura mais atenta da assinatura patente no mecanismo como “Barwise London Nº 10 798”.
Como já referido no anterior capítulo, Barwise é uma família de relojoeiros que, desde o seu estabelecimento em Londres se dedicaram ao comércio de relógios, nomeadamente relógios onde a elegância – como é o caso desta peça – é a principal característica; como nota Alexander Stewart “Barwise watches are noted less for originality than for their elegance” (“os relógios Barwise são mais conhecidos pela sua elegância do que pela sua originalidade”).[8] Ao longo do século XIX, com muito poucas exceções, os retalhistas britânicos apenas permitiam os seus próprios nomes nos relógios que vendiam, sendo que estes nomes foram muitas vezes confundidos com os dos relojoeiros, erro que se tem vindo a retificar na bibliografia mais recente.[9] Assim, Barwise não é o fabricante da peça no sentido mais estrito do termo, mas sim o comerciante que assume a autoria e responsabilidade sobre a mesma.
Tendo em atenção o número de série, “Nº 10 798”, e atendendo à listagem (ainda em aberto) que Allan Purcell tem vindo a desenvolver sobre os relógios Barwise durante os últimos anos, a nova datação proposta para o exemplar da coleção é a de c. 1835-45, altura em que a firma estava a cargo de John Barwise filho. Embora o escape patente no relógio seja já um modelo um pouco antiquado para a data sugerida, os escapes de reencontro continuam a ser utilizados até muito depois da introdução do escape de âncora, sendo que, na opinião de Laura Turner, conservadora da coleção de relógios do British Museum, a sua robustez e confiabilidade fazia com que alguns clientes o preferissem aos escapes mais modernos, que podiam ser mais complexos de reparar;[10] de resto, a precisão não terá sido a maior preocupação para o encomendante deste exemplar, mas sim a decoração, nomeadamente o “hair memento” exibido na caixa, o que o torna um objeto de afeto.
O tipo de mostrador, em ouro mate, com numeração árabe – cada vez mais presente em detrimento da numeração romana -, os algarismos em ouro polido e onde a numeração dos minutos já desapareceu, foi muito usada em Inglaterra a partir de 1800, assim como o padrão decorativo da caixa, com esmalte transparente azul sobre guilhoché, muito popular a partir de finais do século XVIII, provavelmente devido à influência dos relógios Breguet, sendo muitas vezes, como é o caso, enriquecida com aplicação de diamantes e pérolas.[11] Muito popular no início do século XIX, este modelo de relógio está já um pouco desfasado no segundo quartel do século, porém, tendo em atenção à tendência romântica e à possibilidade de ser fruto de uma encomenda específica de forte teor sentimental, pensamos que não resulta descabida a datação proposta.
De um ponto de vista comparativo, encontramos na coleção do British Museum dois exemplares, também com châtelaine, formalmente muito semelhantes, inventariados como sendo de fabrico inglês, embora com datações um pouco anteriores ao relógio em estudo:
Relógio com châtelaine. James Tregent e Gideon Macaire. Londres (Inglaterra), 1791. Nº Inv. 1921,1109.1 ©The Trustees of the British Museum
Relógio com châtelaine. Richard Clarke & Son. Londres (Inglaterra), 1815-25. Nº Inv. 1905,0210.1 ©The Trustees of the British Museum
Conforme mencionado anteriormente, e baseando-nos na presença do medalhão contendo o “hair memento”, a hipótese que se afigura como mais provável é que este relógio tenha sido fruto de um encargo através do qual o encomendante pretendia honrar a memória de um ser querido a partir do uso do seu cabelo como adorno numa peça sofisticada e elegante. O relógio, não seria assim um relógio de uso quotidiano, o que justifica o seu muito bom estado de conservação, sem marcas de ter sido utilizado, sendo que a única falha neste conjunto é a já mencionada ausência do estojo e o extravio da ponta da chave de corda.
O relógio do Munson-Williams-Proctor Arts Institute
Na coleção do Munson-Williams-Proctor Arts Institute, em Utica (Nova Iorque), existe um relógio (Nº Inv. PC. 1023.8;317733) cuja caixa é em tudo similar a esta.[12] O movimento desse exemplar está assinado “Morisset & Lukins London 1875” e no inventário da instituição consta como sendo um relógio inglês, datado de 1774-93 e da autoria de Morisset & Lukins.[13]
Embora sem acesso direto à peça, que apenas conhecemos por uma imagem do verso da caixa e pela sucinta descrição patente no inventário online,[14] podemos assumir que existem algumas diferenças com o relógio do Museu Medeiros e Almeida, nomeadamente a decoração perfurada de urna, pano e louro patente na ponte do balanço, motivos todos eles próprios da joalharia funerária, como também o é o medalhão que apresenta o “hair memento”, neste exemplar de cabelo acastanhado.
A existência deste relógio levanta diversas questões, por enquanto, sem resposta inequívoca. Será este modelo um protótipo de um ourives/relojoeiro que abastecia outros relojoeiros e comerciantes? Numa época de grande propensão ao luxo e onde os “hair mementos” eram muito apreciados, existia com certeza demanda por este tipo de requintados objetos onde se podia inserir uma madeixa de cabelo de um ser querido.
Sabemos que, à época, relojeiros e ourives, tanto ingleses como estrangeiros, forneciam peças aos comerciantes, que muitas vezes já eram entregues com as assinaturas dos mesmos. No caso do relógio da coleção Medeiros e Almeida, a assinatura patente na placa traseira tem de ser, com quase total certeza, coeva com a data de produção do mecanismo, já que a gravação é prévia ao douramento. Assim sendo, como explicar a diferença de mais de quarenta anos entre a produção de ambos os relógios? Uma hipótese é que o relógio da coleção portuguesa, já com a inscrição “Barwise London”, seja anterior à datação previamente proposta e estivesse na posse de Barwise que, aquando da venda, adiciona a placa com o número de série, número que corresponde, aproximadamente, com os anos de 1835-45.
Se contemplarmos esta conjetura,[15] a presença de um escape de reencontro já não seria uma característica ultrapassada à data de fabrico e a análise formal realizada no capítulo anterior continua a sustentar-se. Nesta classificação alternativa, a data de produção recua para algures na última década do século XVIII, o fabrico pode continuar a ser inglês ou, eventualmente, suíço (à altura existiam fortes relações entre Londres e Genebra neste nicho de mercado), ou francês e continuamos a desconhecer o nome do relojoeiro, mantendo-se Barwise como comerciante que, devido à mudança na datação, referir-se-á a John Barwise sénior.
Châtelaines e seus usos
A châtelaine é um objeto que, em diferentes versões, tem existido em diversas culturas ao longo da história. Formalmente consiste numa placa que, através de um gancho ou broche, se pendura à cintura e da qual, a partir de diversas correntes, pendem objetos mais ou menos utilitários.
Anteriormente conhecidos pela palavra francesa equipages, em 1828 passam a ser conhecidos como châtelaines quando a revista The World of Fashion publica um artigo sobre este tipo de objetos.[16] Este novo termo, châtelaine, pode derivar do vocábulo “castelã”, guarda do castelo, pessoa que guardava as chaves dos diferentes aposentos.[17]
As châtelaines seguravam todo tipo de artefactos: tesouras, dedais e outros utensílios de costura; pequenas facas, pinças, lupas, apitos, chaves, amuletos. Originalmente destinadas para ser utilizadas por governantas, enfermeiras ou costureiras, com o tempo o seu uso estende-se às classes mais abastadas, passando a ser objetos de luxo e ostentação, nomeadamente durante a segunda metade do século XVIII e grande parte do século XIX, muitas vezes fabricados por joalheiros de renome, juntando à sua vocação funcional a decorativa. Os objetos que nelas constam também se adaptam à nova realidade e elegantes châtelaines fabricadas em metais preciosos e ornamentadas com esmaltes e gemas, portam agora espelhos, caixinhas, pequenos cadernos, pomanders, leques ou relógios.
Caricaturas de John Leech (1817-1864) publicadas no revista Punch em 1849: “The Chatelaine; a Really Useful Present” e “How to Make a Chatelaine a Real Blessing to Mothers”
Desde 1730 e até à primeira metade do século XIX, os relógios eram um importante acessório de moda, em grande parte devido ao uso de châtelaines,[18] nomeadamente por parte das senhoras, embora existam também châtelaines para homens, normalmente mais simples, sendo que, em muitas ocasiões, o relógio era oculto num bolso para o efeito e apenas os acessórios (chave para a corda, selos e pingentes decorativos) ficavam visíveis.
As châtelaines para relógios seguiam, habitualmente, a mesma linguagem ornamental do relógio que acompanhavam e, como estes, seguiam de perto as modas de cada época existindo, inclusive, relógios e châtelaines de luto, particularmente populares durante a era vitoriana.
“Hair mementos”
Através de diferentes épocas e culturas o cabelo esteve sempre ligado a variadas simbologias e relacionado com diversos cultos. O fato de o cabelo preservar-se uma vez cortado, torna-o numa matéria-prima a partir da qual se podem criar trabalhos intemporais que usam o cabelo não só como forma de ornamentação, como também para a produção de objetos de afeto, servindo as mechas de cabelo como “representações” de um ser querido.
Embora existam peças de joalharia com uso de cabelo desde o século XVI, é no final do século XVIII que se desenvolve uma verdadeira moda de joias com cabelo, desde alfinetes, a pendentes ou pulseiras. Com o romantismo e a ênfase na emoção, os objetos com cabelo são vistos como lembranças sentimentais, símbolos eternos de amizade, amor fraternal ou amor romântico.
Um género particular deste tipo de joalharia é a joalharia “momento mori”, com peças decoradas com objetos alusivos à morte – como esqueletos, caveiras, caixões, salgueiros-chorões, ampulhetas ou urnas – que lembravam a quem as usava, tal como o nome indica, a sua própria mortalidade, e nas quais se passou a incluir também mechas de cabelo de um ser querido falecido, passando a ser joias de luto.
Porém, o uso de cabelo não estava restrito ao âmbito da joalharia, existindo muitas outras formas nas quais a “arte do cabelo” (hairwork) era usada, como a criação de árvores familiares a partir do cabelo dos diferentes membros de uma família; o uso de cabelo no bordado ou em arranjos florais; a “pintura” com uma mistura de cabelo moído aglutinado com cola, etc. No mundo da relojoeira (intimamente ligado ao da joalharia) o cabelo foi usado para o fabrico de correntes de relógio ou, em forma de “hair memento”, na decoração de caixas, como na peça em estudo, ou de châtelaines.
Em Inglaterra, a rainha Vitória foi uma figura chave no desenvolvimento da “arte do cabelo”. Ao longo da sua vida, a Rainha trocou com outros membros da sua família, em datas comemorativas, madeixas do seu cabelo ou do cabelo dos seus filhos e netos, inseridas em medalhões ou entrançadas em forma de joias.[19] Com a morte do Príncipe Alberto, em 1861, a rainha Vitória populariza a joalharia de luto, com o uso de azeviche e, também, com a integração de cabelos de seres queridos falecidos, como um colar com cabelo entrançado do defunto Príncipe que a Rainha alegadamente usava.[20]
Inicialmente realizado por artesãos, nomeadamente artesãs suecas que difundiram este tipo de trabalho pela Europa durante o início do século XIX, o trabalho com cabelo tornou-se rapidamente num passatempo popular para as mulheres vitorianas, estendendo-se também a moda aos Estados Unidos, com variadas publicações – como Godey’s Lady’s Book, Self-instruction in the Art of Hair Work ou Peterson’s Magazine – que incluíam padrões e instruções para a manufatura de objetos com cabelo.
Páginas do livro Self-Instructor Art of hair Work, Dressing Hair, Making Curls, Switches, Braids and Hair Jewelry of Every Description, de Mark Campbell (1867)
No início do século XX a moda do uso de cabelo como matéria-prima decai, tornando-se não só uma material obsoleto como adquirindo conotações desagradáveis.
Proveniência
O primeiro registo que temos relativo a este relógio é no catálogo de venda do leilão da Antiquorum, “Vente Nº XXXIV Montres de poche”, celebrado em Genebra a 4 de abril de 1982, lote 185, com a estimativa de venda de 18.000 a 22.000 francos suíços.
No ano seguinte, a 15 de novembro de 1983, o relógio aparece à venda no leilão da Christie’s “Fine Watches and Clocks”, celebrado no Hotel Richemond de Genebra, lote 222, onde foi adquirido por António de Medeiros e Almeida. Nesse mesmo leilão o colecionador compra ainda outros dois relógios, um relógio com châtelaine (FMA 7809), provavelmente destinado ao mercado russo e assinado pelo ourives francês François-Désiré Froment-Meurice (1801-1855) e um outro relógio de suspender (FMA 7806), em forma de racimo de duas cerejas, atribuído aos irmãos Rochat, três irmãos que trabalharam em Genebra entre 1800 e 1835.
Atualmente, o relógio aqui estudado está em exposição permanente na Sala dos Relógios do Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa.
Samantha Coleman-Aller
Museu Medeiros e Almeida
[1] Christie’s, Fine Watches and Clocks (Genebra: 15 de novembro de 1983 ) lote 222
[2] “Elegante relógio de ouro, esmalte, diamantes e perolas com châtelaine, assinado Barwise Londres, No. 798, com o seu estojo, circa 1829” (tradução da autora). Antiquorum, Vente Nº XXXIV Montres de poche/Pocket-Watches (Genebra: 4 de abril de 1982) lote 185
[3] Devido à escassa literatura relacionada e à repetição de nomes na família Barwise, existem muitas divergências em relação a datas e atribuições na bibliografia consultada. Optamos aqui por seguir maioritariamente o artigo de A.D. Stewart, publicado no número de março de 2014 da AHS [A.D. Stewart, “Barwise & Sons: watchmakers to the King. A brief history of family and firm”, Antiquarian Horological Society Vol.35 (março 2014): 621-634], por ser o estudo mais completo ate a data sobre esta família de relojoeiros, apresentando um grande rigor nas fontes utilizadas.
[4] Lot (ou Lott) Barwise (1726-1799) foi o primeiro de uma família de relojoeiros que durante mais de 100 anos operaram em Cockermouth. Ver: John B. Penfold, The Clockmakers of Cumberland (Ashford: Brand Wright Associates, 1977), 124-27
[5] O Board of Longitude foi um órgão do governo britânico formado em 1714 (e extinto em 1828) para incentivar a resolução do problema do cálculo da longitude no mar.
[6] A.D. Stewart é um dos autores que defende a obtenção da Royal Warrant por parte de Barwise (op. cit., p.628) apoiando-se na existência de um documento de atribuição de arrendamento nos London Metropolitan Archives (E/BGS/004) no que se lê “John Barwise, 29 St Martin’s Lane, Middx, watchmaker to H.M. King George IV”.
[7] Para A.D. Stewart (op. cit. p.627) a assinatura “Barwise & Sons” é usada já a partir de 1816, enquanto que em Baille [G.H. Baille, Watchmakers & Clokmakers of the World (Londres: N.A.G. Press, 1951), 18] e Britten [F.J. Britten, Old Clocks and Watches and Their Makers (Londres: Metheuen, 1982), 363] essa nomenclatura é utilizada entre 1819 e 1823. Nas listagens de relógios Barwise publicadas por David Thompson [D. Thompson, the “Watches of Barwise of London”, Antiquarian Horological Society Vol.24 (outono 1998): 240-243] e Allan Purcell [A.Purcell, Barwise Numbers File, Academia.edu, 2020] o relógio mais antigo com a firma “Barwise & Sons” referido é de 1818 e o mais recente de 1861, pudendo este último tratar-se de um reaproveitamento de um mecanismo anterior.
[8] A.D. Stewart, op.cit., p.632 (tradução da autora)
[9] Ver David Boettcher, “Names on dials”, Vintage watchstraps, https://www.vintagewatchstraps.com/namesondials.php
[10] Laura Turner, correspondência por correio eletrónico com a autora, 8 de maio de 2024.
[11] C. Clutton e E. Daniels, Watches (Londres: B.T. Batsford, 1965), 79-80
[12] Ver também J. Zapata e A. Tobin D’Ambrosio, Jewels of Time. Watches from the Munson-Williams-Proctor Arts Institute (Nova Iorque: Munson Williams Proctor Arts Institute, 2001), 37
[13] Morisset & Lukins foram, segundo Baille e Britten, joalheiros, ourives e esmaltadores, ativos em Londres entre 1780 e 1799 [G.H. Baille, op. cit., p.225 e F.J. Britten, op. cit., p.547]
[14] A autora contactou o Munson-Williams-Proctor Arts Institute para pedir mais informações sobre este relógio, mas, sem resposta até à data de publicação deste artigo.
[15] Esta hipótese, assim como outras questões todavia em aberto, carecem de confirmação e requerem maiores dados para comparação.
[16] Kris Manty, “Chatelaines Were the Swiss Army Knife of Victorian Fashion Accessories”, Antique Trader, 15 de novembro de 2022 https://www.antiquetrader.com/collectibles/chatelaines-victorian-fashion
[17] Monica F. Cohen, Professional Domesticity in the Victorian Novel: Women, Work and Home, citado por Kris Manty (op.cit.)
[18] E.J. Tyler, The Craft of the Clockmakers (Londres: Ward Lock, 1973), 60
[19] British Museum, “Woven in hair: a recent gift of hairwork jewellery”, https://www.britishmuseum.org/exhibitions/woven-hair-recent-gift-hairwork-jewellery
[20] A. Jonassen, “Remembering the Death: Hair Art”, Museum of Art and History, 19 de outubro de 2022, https://www.lancastermoah.org/single-post/remembering-the-dead-hair-art
Bibliografia
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The British Museum. “Marine chronometer; clock-case; clock-key “. Consultado a 20.05.2024
https://www.britishmuseum.org/collection/object/H_1958-1006-1927
NOTAS:
The author would like to thank David Boettcher (Vintagewatchstraps.com) and Laura Turner (curator of Holological Collectionas at the British Museum), for their generous insights and thought-provoking comments.
We also extend our heartfelt gratitude to Alan Purcell for the gracious sharing of the contents of the Barwise File.
Agradecemos a Inês Gaspar Silva (Conservadora da coleção de Miniaturas do Museu Nacional de Arte Antiga), pela partilha do artigo “A eterna intimidade: a ornamentação de cabelo na miniatura e joalharia da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga”, a publicar proximamente nas Actas do 3º Coloquio Saudade Perpétua. Arte, Cultura e Património do Romantismo.
E como sempre, reconhecer o generoso apoio do mestre relojoeiro Paulo Anastácio e do colecionador Luis Couto Soares, imprescindíveis no estudo da coleção de relógios do Museu Medeiros e Almeida.
COMO CITAR / HOW TO CITE:
Coleman-Aller. Samantha Relógio com Châtelaine e “Hair memento”. Lisboa: Museu Medeiros e Almeida, 2024. https://www.museumedeirosealmeida.pt/pecas/relogio-com-chatelaine/.
O trabalho de investigação acerca das obras da coleção do Museu Medeiros e Almeida está em constante desenvolvimento. Caso tenha alguma informação adicional ou alguma questão, convidamo-lo(a) a entrar em contacto connosco através do endereço de e-mail: info@museumedeirosealmeida.pt. Agradecemos desde já a sua colaboração!
John Barwise
c. 1835-1845
Londres (Inglaterra)
Ouro, prata, aço e outros metais, esmalte, vidro, pérolas, diamantes, cabelo
Ø 48 mm / Châtelaine: 220 x 2,6 mm
FMA 7811